Publicação: 15 de junho de 2022

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Índice

Direito Administrativo

  • Disforia de gênero – fornecimento de medicamento off label pelo SUS – bloqueador da puberdade

Direito Civil e Processual Civil

  • Atropelamento em faixa de pedestres – inobservância do semáforo – culpa da vítima
  • Filiação partidária de militar sem consentimento – ônus do diretório nacional da agremiação

Direito Constitucional

  • Programa de descentralização progressiva de ações e órgãos de saúde – inconstitucionalidade 

Direito da Criança e do Adolescente

  • Adoção de nascituro – inexistência de relação socioafetiva e de atendimento ao melhor interesse da criança

Direito do Consumidor

  • Fraude cibernética denominada “golpe do aluguel” – inobservância das regras de cautela –culpa exclusiva da vítima

Direito Empresarial

  • Sócio “de fachada” em empresa de pequeno porte – nulidade por simulação

Direito Penal e Processual Penal

  • Jogo do bicho – inaplicabilidade do princípio da adequação social

Direito Penal Militar e Processual Penal Militar

  • Crime militar de recusa de obediência – ordem de superior hierárquico em estrito cumprimento de dever legal

Direito Tributário

  • Tarifa especial de esgoto calculada sobre a totalidade do consumo de água – legalidade

Direito Administrativo

Disforia de gênero – fornecimento de medicamento off label pelo SUS – bloqueador da puberdade 

Crianças e adolescentes com disforia de gênero – não identificação com o sexo biológico – têm direito ao fornecimento de medicamento padronizado no âmbito do SUS, para uso off label, a fim de inibir a produção de hormônios sexuais e, com isso, diminuir o sofrimento psíquico intenso e a vulnerabilidade social comuns em pessoas transgêneros. Adolescente transgênero, representada pela genitora, ajuizou ação de obrigação de fazer contra o Distrito Federal pleiteando o fornecimento do medicamento triptorrelina para bloqueio da puberdade e, consequentemente, impedir o desenvolvimento de caracteres sexuais masculinos. Sustenta que a medicação é necessária para tratar o quadro de disforia de gênero – conflito entre o gênero com o qual se identifica e o sexo biológico. O Juízo de primeiro grau negou provimento ao pedido, sob o fundamento de que não há indicação, na bula, para a utilização do fármaco no tratamento em questão. A autora interpôs apelação, ao argumento de que a medicação foi justificada e prescrita por junta médica, com a finalidade de reafirmar a identidade de gênero e de evitar eventuais distúrbios psiquiátricos. Ao analisarem as razões recursais, os Desembargadores afastaram a incidência do Tema Repetitivo 106 do Superior Tribunal de Justiça, pois este dispõe sobre medicamentos não incorporados pelo Sistema Único de Saúde ─ SUS. Entenderam que o fármaco pretendido é adotado no âmbito do SUS para o tratamento de puberdade precoce verdadeira, embora, no caso concreto, seja pretendido para uso em desconformidade com as indicações terapêuticas previstas em bula. Ressaltaram que a adolescente, de quatorze anos, apresenta incongruência entre o sexo biológico masculino e o gênero feminino, com o qual se identifica desde os cinco anos de idade. Frisaram que a jovem é acompanhada por equipe multiprofissional da Secretaria de Saúde do DF, a qual prescreveu o uso off label do remédio para inibição puberal. Os Magistrados consignaram que o Ministério da Saúde editou atos normativos com a finalidade de promover o desenvolvimento de políticas públicas de saúde para a população transgênero. Relataram, entretanto, a inexistência de protocolos clínicos específicos sobre hormonioterapia ou inibição de hormônios sexuais em crianças e adolescentes transexuais. Por outro lado, os Julgadores destacaram que o Conselho Federal de Medicina recomenda o bloqueio hormonal com o uso de análogos de hormônio liberador de GnRH, como a triptorrelina, a partir da puberdade. Observaram que estudos científicos apontam a eficácia do tratamento, a segurança do fármaco e a reversibilidade da terapia medicamentosa. O Colegiado registrou ainda a omissão legislativa na regulamentação específica da matéria e a necessidade de a apelante receber assistência especial para o tratamento de disforia de gênero, que, embora não seja doença ou patologia, merece o cuidado do sistema de saúde. Por fim, acrescentou que a ação terapêutica visa diminuir o sofrimento psíquico intenso e a vulnerabilidade social comuns em pessoas transgêneros. Nesse contexto, a Turma deu provimento ao recurso para determinar que o Distrito Federal forneça a medicação pretendida, conforme recomendação médica.

Acórdão 1421631, 07128470620198070018, Relator: Des. ROBERTO FREITAS FILHO, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 5/5/2022, publicado no PJe: 17/5/2022.

Direito Civil e Processual Civil

Atropelamento em faixa de pedestres – inobservância do semáforo – culpa da vítima

A violação do dever de cautela do pedestre ao atravessar faixa de trânsito, no momento em que a pista se encontra aberta ao fluxo de automóveis, exclui a responsabilidade civil do condutor do veículo por eventual atropelamento, sobretudo quando presentes condições adversas de visibilidade. Uma mulher ajuizou ação de indenização por danos morais e materiais contra o motorista que a atropelou em uma faixa de pedestre sinalizada por semáforo, em decorrência das lesões corporais e do abalo psicológico sofridos. A pretensão foi julgada improcedente. Na análise do recurso da autora, os Julgadores explicaram que o art. 69 do Código de Trânsito Brasileiro determina que, ao atravessar uma via, por cautela, o pedestre deve aguardar a interrupção do fluxo de veículos pelo semáforo ou por agente de trânsito. Ao examinarem o contexto fático-probatório, enfatizaram ser incontroverso que o acidente ocorreu em uma faixa de pedestres sinalizada por semáforo. Embora o laudo pericial indique a ausência de reação do condutor do carro para evitar o atropelamento, esclareceram que imagens das câmeras de segurança comprovam que a vítima iniciou a travessia quando o sinal já estava aberto para os veículos. Os Magistrados aduziram que o carro estava em início de aceleração, com baixa velocidade, em situação de pouca visibilidade do motorista, pois entardecia, com chuva, e havia um veículo estacionado na via. Tais circunstâncias não justificam, mas atenuam a responsabilidade do condutor, que não tinha condições de prever que alguém atravessava a pista. O Colegiado aclarou que, na transição entre o verde e o vermelho, o sinal de pedestres pisca para alertar o transeunte de que o tempo de travessia está acabando. Assim, quando cruzou a via com a “mão vermelha” acesa, a requerente assumiu o risco de causar acidente. Com esses argumentos, a Turma concluiu que o comportamento da vítima foi determinante para o sinistro. Em relação à condenação do condutor na esfera criminal pelo crime de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, destacou que, além de não ter havido o trânsito em julgado da sentença, a responsabilidade civil independe da penal. Por fim, apesar de reconhecer a autoria e a materialidade do fato, manteve in totum a sentença recorrida.  

Acórdão 1424379, 07397138620218070016, Relator: Juiz DANIEL FELIPE MACHADO, Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento: 25/5/2022, publicado no DJe: 31/5/2022. 

Filiação partidária de militar sem consentimento – ônus do diretório nacional da agremiação

A responsabilidade pelos danos causados a militar filiado irregularmente a partido político é do diretório nacional, quando permanece a incerteza sobre qual dos órgãos regionais efetivamente promoveu o ato ilícito, excluída a responsabilidade solidária de outras representações partidárias quanto à reparação dos prejuízos. Na origem, militar ingressou com ação contra partido político, a fim de obter declaração de nulidade de inscrição partidária indevida e sem requerimento. Sustentou que, diante da proibição constitucional relativa à atividade castrense, foi autuado por transgressão disciplinar (ainda em investigação), fato que lhe causou constrangimento perante a corporação. Afirmou jamais ter cometido qualquer ato que desabonasse sua carreira – alicerçada nos pilares da hierarquia e da disciplina –, razão pela qual também pleiteou danos morais. O Sentenciante julgou procedentes os pedidos deduzidos na inicial. Irresignada, a pessoa jurídica interpôs recurso, ao fundamento de que a filiação fora realizada exclusivamente pelo diretório regional, o qual detinha autonomia plena para o ato, sem qualquer ingerência de âmbito nacional e, por isso, sustentou que aquele órgão deveria ser o único a responder pela reparação do dano. Ao examinarem a apelação, os Desembargadores entenderam que o diretório nacional deve indenizar os danos causados ao autor, excluída a responsabilidade solidária dos demais órgãos de direção regional, por força de comando preconizado na lei dos partidos políticos (Lei 9.096/1995). In casu, segundo o Colegiado, o requerido não logrou êxito em comprovar que não teve culpa pela alegada inscrição irregular, na medida em que juntou documentos que revelam tão somente a data, o local e o partido ao qual o eleitor foi filiado, sem esclarecer categoricamente quem deu causa ao ato ilícito. Além do mais, verificaram que dentro das atribuições do diretório nacional, disciplinadas no próprio estatuto da entidade, consta a função de receber cópias das inscrições dos filiados entregues à Justiça Eleitoral. Os Magistrados aduziram, outrossim, que o dano moral sofrido pelo militar é patente, dado o constrangimento ilegal de submeter-se à apuração de infração disciplinar diante de proibição constitucional expressa, mormente porque a filiação foi levada a efeito sem consentimento. Com isso, em vista da incerteza quanto ao órgão partidário que procedeu à inscrição irregular do autor, a Turma manteve inalterada a sentença, acolhendo o recurso apenas para reduzir o quantum indenizatório.

Acórdão 1421013, 07394113920208070001, Relatora: Desª. GISLENE PINHEIRO, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 11/5/2022, publicado no DJe: 16/5/2022. 

Direito Constitucional

Programa de descentralização progressiva de ações e órgãos de saúde – inconstitucionalidade 

A lei distrital que disciplina matéria orçamentária e prevê a reestruturação administrativa de órgãos da rede pública de saúde padece de inconstitucionalidades formal e material, por invadir atribuição legislativa exclusiva da União e por exorbitar limite normativo de prerrogativas institucionais da Câmara local. O governador do Distrito Federal propôs ação direta de inconstitucionalidade contra a Câmara Legislativa, em razão da edição de lei que instituiu programa de descentralização progressiva de órgãos na estrutura da Secretaria de Saúde, com objetivo de promover maior autonomia e qualidade às unidades de execução e às ações nesse setor. O autor relatou que o procedimento licitatório de contratação das Unidades de Execução Descentralizadas – UEDs deveria ser objetivo e simplificado, prever dispensa quanto à pesquisa de preços ou à obrigatoriedade dessa, conter valores diferenciados para pessoa jurídica ou empreendedor individual, além de definir documentos necessários para participar do certame. A medida cautelar foi deferida e suspensa, de imediato, a eficácia da lei impugnada, com efeitos ex nunc. Na análise do mérito da ação direta, o Colegiado verificou a existência de vício formal de iniciativa parlamentar, pois a atribuição para legislar acerca da previsão de repasse orçamentário anual e sobre a reestruturação administrativa das unidades da rede pública de saúde local é reservada ao chefe do Executivo, por simetria com o texto da Constituição Federal (arts. 14, 17, 71, § 1º, IV e V, 100, X, da Lei Orgânica do DF). Constatou, ademais, usurpação da competência privativa da União para elaborar normas gerais sobre licitação e contratos (art. 22, XXVII, da CF). Sob o prisma material, o Conselho Especial observou violação aos princípios da reserva da administração e da separação dos Poderes, haja vista a ingerência normativa da Câmara Distrital ao legislar sobre matérias sujeitas à exclusiva competência político-administrativa do Poder Executivo. Explicou ainda que a criação de novas atribuições e a remodelação de órgãos da saúde tornaram mais dificultoso o funcionamento e a organização da Administração Pública local. Destacou que, ao agir assim, a Câmara Parlamentar transpôs o limite material de suas prerrogativas institucionais, em típica atuação “ultra vires”. Em conclusão, os Desembargadores julgaram procedente a ação direta para, diante dos vícios apontados, declararem as inconstitucionalidades formal e material dos arts. 9º, 10, 11 e 12 da Lei Distrital 6.715/2020, com efeitos ex tunc e eficácia erga omnes.

Acórdão 1421142, 07090553020218070000, Relator: Des. HECTOR VALVERDE SANTANNA, Conselho Especial, data de julgamento: 3/5/2022, publicado no DJe: 17/5/2022.

Direito da Criança e do Adolescente

Adoção de nascituro – inexistência de relação socioafetiva e de atendimento ao melhor interesse da criança

A adoção intuitu personae, sem a observância da ordem cronológica do Cadastro Nacional de Adoção ou das hipóteses legais, somente é possível caso presentes relação de socioafetividade e melhor interesse da criança. A pretensão de adoção de nascituro por não familiar e sem a realização de estudo psicossocial não preenche os requisitos necessários à mencionada exceçãoUma mulher ajuizou ação de adoção cumulada com pedido de concessão de guarda provisória de nascituro. Na peça inicial, afirmou possuir amizade consolidada com a mãe biológica do bebê, a qual conhecera numa ação social de doação de bens a famílias carentes. Alegou que a gestante concorda com a adoção por ser solteira, não saber quem é o pai da criança e não ter condições financeiras nem psicológicas para cuidar do infante. O Juízo sentenciante julgou improcedente a pretensão deduzida. No exame da apelação interposta pela autora, os Desembargadores salientaram que a transferência da guarda do nascituro para terceira pessoa é juridicamente inviável, por ser necessária e fisicamente exclusiva da gestante. Explicaram que o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA exige grande formalidade e seriedade nos procedimentos de adoção intuitu personae, com o propósito de evitar fraudes e comércio ilegal de crianças. Por isso, somente admite a relativização da obediência à ordem cronológica do Cadastro Nacional de Adoção nas hipóteses de pedido de adoção unilateral, por parente ou por quem detenha a tutela ou a guarda legal de criança maior de três anos (art. 50, § 13, do ECA). Nada obstante, os Magistrados destacaram que o Superior Tribunal de Justiça admite ainda que seja excepcionada a ordem das pessoas previamente cadastradas para adoção quando evidenciada a existência de relação socioafetiva e a observância ao princípio do melhor interesse da criança. Na presente demanda, os Julgadores entenderam que os apontados requisitos jurisprudenciais de exceção não se encontram presentes. Explanaram que a construção de afetividade entre o nascituro e a pretensa adotante, sem a possibilidade de contato físico, não se mostra factível. Na hipótese, inclusive de o bebê já ter nascido, assinalaram que o exíguo tempo de convivência não seria suficiente para o estabelecimento do vínculo sentimental. Por fim, sopesaram que adoção por pessoa não familiar, sem laços fortes com o infante, e desprovida dos necessários estudos psicossociais específicos ao caso não sinaliza atendimento ao princípio do melhor interesse da criança. Assim, a Turma negou provimento ao recurso.

Acórdão 1421237, 07000729620228070003, Relator: Des. ALFEU MACHADO, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 4/5/2022, publicado no DJe: 17/5/2022. 

Direito do Consumidor

Fraude cibernética denominada “golpe do aluguel” – inobservância das regras de cautela – culpa exclusiva da vítima

Empresa emissora de boleto bancário utilizado em fraude cibernética conhecida como “golpe do aluguel” não é responsável por danos a consumidor, quando demonstrado que a causa do prejuízo decorreu exclusivamente da inobservância às regras gerais de cautela exigidas em negócios virtuais. Na origem, consumidor ingressou com ação indenizatória contra empresa responsável por emissão de boleto eletrônico utilizado por criminoso em fraude cibernética denominada “golpe do aluguel”, da qual fora vítima. Sustentou que houve falha na prestação do serviço pela requerida por ter deixado de agir para evitar o saque da quantia pelo farsante após a imediata comunicação do fato. O Sentenciante julgou procedentes os pedidos deduzidos na inicial. No exame do recurso interposto pela demandada, os Magistrados frisaram que a relação jurídica apresentada nos autos possui natureza consumerista, o que atrai a incidência das normas protetivas insculpidas no Código de Defesa do Consumidor. Em sequência, verificaram que o autor, atraído pelas facilidades oferecidas em falso anúncio de locação de imóvel, negociou o valor do aluguel com o suposto proprietário do bem, por meio do WhatsApp, e pagou três mil reais ao golpista, via boleto eletrônico, por acreditar que seria a garantia para a celebração do contrato. Contudo, os Julgadores consignaram que a empresa só foi informada da fraude dez dias após a transferência eletrônica, via boleto, quando já não havia mais possibilidades de adotar providências para impedir o saque da quantia pelo criminoso. Nesse quadro, reconheceram que os prejuízos foram causados por culpa exclusiva do autor, que deixou de adotar as regras gerais de cautela necessárias para concretizar negócios em ambientes virtuais, especialmente por não ter conferido a propriedade do apartamento antes de efetuar o pagamento do sinal exigido. Com isso, diante da inexistência de falha na prestação do serviço, a Turma deu provimento ao recurso para isentar a empresa de qualquer responsabilidade.

Acórdão 1420303, 07432161820218070016, Relator: Juiz FERNANDO ANTONIO TAVERNARD LIMA, Terceira Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento: 10/5/2022, publicado no DJe: 16/5/2022. 

Direito Empresarial

Sócio “de fachada” em empresa de pequeno porte – nulidade por simulação

O uso do nome de sócia inativa, com objetivo único de encobrir real composição societária, caracteriza simulação de negócio jurídico, cuja consequência é a anulação da parte simulada e o reconhecimento da verdadeira transação que se dissimulou. Uma mulher ajuizou ação de anulação de negócio jurídico contra seu pai e tio, por terem usado o nome dela e do irmão para constituírem sociedade empresária sem a efetiva participação de ambos. Os pedidos foram julgados parcialmente procedentes para inclusão do genitor no quadro societário, além da declaração de nulidade do ingresso e permanência da postulante no contrato social, no período compreendido entre os anos de 2011 e 2017. Na análise do recurso da requerente, os Desembargadores acolheram a legitimidade ativa da sócia para pleitear a inclusão dos parentes no polo passivo da demanda, porque, embora ela não tenha integrado de fato o quadro societário, cedeu seu nome para o exercício da empresa, motivada pelas restrições de crédito pelas quais o genitor passava à época. Com efeito, apesar de fazer parte da composição da empresa, ficou comprovado que a autora não explorava a atividade econômica, não aplicava recursos, não exercia a direção e não recebia haveres financeiros da pessoa jurídica. Diante de tais lacunas, os Magistrados constataram que o contrato social foi resultado de simulação – porquanto a participação da autora era meramente figurativa – e a consequência desse engodo jurídico foi a declaração de nulidade do ato simulado, para fazer subsistir a real vontade oculta (art. 167 do Código Civil). Os Magistrados enfatizaram que a empresa em questão foi constituída no mesmo local e com objeto social idêntico à registrada anteriormente em nome dos requeridos. O genitor admitiu que exercia a gerência e a administração da nova sociedade, em conjunto com o irmão, no período em que a requerente figurava como sócia, o que foi confirmado por testemunhas e pela esposa do segundo réu. Os Julgadores observaram movimentação de entrada e saída de pessoas do quadro empresarial, nas inúmeras transformações societárias que ocorreram entre 2011 e 2017, e concluíram que a rotatividade servia para blindar os reais acionistas. Confirmaram, outrossim, que os réus registravam empresas em nome de terceiros, para se ocultarem de fiscalizações e das consequências advindas das novas relações comerciais. Ao final, o Colegiado deu provimento parcial ao recurso para manter a sentença quanto à exclusão da recorrente e incluir o tio (verdadeiro sócio atuante) no contrato social em questão.

Acórdão 1419025, 07178699020198070003, Relator: Des. LEONARDO ROSCOE BESSA, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 27/4/2022, publicado no DJe: 16/5/2022.

Direito Penal e Processual Penal

Jogo do bicho – inaplicabilidade do princípio da adequação social

O princípio da adequação social não deve ser aplicado à contravenção penal do jogo do bicho. Apesar da insuficiente fiscalização do poder público e da reduzida repreensão à infração, a prática das apostas de azar deve receber larga reprovação, especialmente em razão das graves sequelas causadas à sociedade, tais como a ocorrência de suborno, as revanches entre quadrilhas e a proliferação da corrupção, notadamente. Na hipótese, um indivíduo fora preso pela Polícia Militar com apetrechos típicos para a prática do jogo do bicho, além de pequena quantia em dinheiro. Denunciado pelo Ministério Público como apontador do jogo de azar (art. 58, § 1º, alínea “a”, do Decreto-Lei 6.259/1944), o réu fora condenado a seis meses de prisão simples e dez dias-multa, no regime inicial aberto, concedida a substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direito pelo Juízo da Execução Penal. Interposta a apelação, os Magistrados refutaram a necessidade de perícia nos recibos apreendidos, por considerarem prescindível a manifestação técnica especializada para identificação dos objetos como meios destinados à realização de apostas. Nesse sentido, os Juízes ponderaram pela não aplicação do princípio da adequação social, porquanto, apesar da pouca repreensão à infração, o jogo do bicho revela-se notavelmente nocivo à sociedade em razão das sérias repercussões antissociais, tais como corrupção, disputa entre quadrilhas, subornos e até mortes que permeiam seus bastidores, conforme delineado pelo Supremo Tribunal Federal no RE 608425/MG. Igualmente, a Turma destacou a correta avaliação dada pela sentença às circunstâncias judiciais ao considerar a primariedade do réu, e afastar a incidência da atenuante da confissão em sede policial, uma vez fixada a pena-base no mínimo legal. Dessa forma, ao verificar a idoneidade e a força probante dos depoimentos dos policiais, o Colegiado negou provimento ao recurso para manter íntegro o decreto condenatório.

Acórdão 1421476, 00018692320198070014, Relatora: Juíza MARILIA DE AVILA E SILVA SAMPAIO, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, data de julgamento: 9/5/2022, publicado no DJe: 17/5/2022.

Direito Penal Militar e Processual Penal Militar

Crime militar de recusa de obediência – ordem de superior hierárquico em estrito cumprimento de dever legal

O militar que se nega a entregar armamento após receber voz de prisão por abandono de posto, e que só o faz mediante intervenção de subordinado, pratica o crime militar próprio de recusa de obediência. O argumento isolado de sentir-se perseguido por superior hierárquico não reduz as consequências do delito, a ponto de configurar circunstância atenuante. Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal interpôs apelação contra sentença do Conselho Permanente de Justiça que o condenou a cumprir pena de detenção pela prática do crime de recusa de obediência (art. 163 do Código Penal Militar – CPM). Constou da denúncia que, na data dos fatos, o réu e outros policiais foram designados para atender flagrante delito em localidade determinada, mas, no horário da diligência, foram surpreendidos em lugar diverso, na companhia de mulheres e em atividades distintas daquela para a qual foram convocados. À vista da constatação delitiva, o superior hierárquico dos denunciados deu voz de prisão a todos e determinou a entrega das armas; contudo, o apelante manteve-se indisciplinado, negou-se a cumprir a ordem e só devolveu o armamento mediante intervenção de um colega de patente inferior à dele próprio. No exame da matéria recursal, os Desembargadores esclareceram inicialmente que a recusa de obediência constitui crime militar próprio contra autoridade ou disciplina militar, vetores que norteiam a vida funcional dos servidores da corporação. Explicaram que a ordem dirigida ao apelante para a entrega da pistola foi expressa, clara e em contexto de flagrante delito – circunstâncias confirmadas pelas testemunhas ouvidas em Juízo. Alertaram ainda que a inequívoca interferência de agente de patente inferior para, só então, haver cumprimento da determinação maioral configurou afronta aos princípios da hierarquia e da disciplina, que regem as organizações militares. Nesse contexto, rejeitaram argumentos relativos à perseguição pessoal no trabalho ou à incompreensão do comando emitido na presença de várias pessoas. Quanto ao pedido subsidiário formulado pela defesa, para incidência de circunstância atenuante baseada no agir sob influência de violenta emoção (art. 72, III, alíneas b e c, do CPM), os Magistrados entenderam que, por um lado, o superior atuou em estrito cumprimento de dever legal, e, por outro, o PM não demonstrou postura colaborativa, voltada para mitigar ou reparar o dano aos princípios castrenses. Com esses fundamentos, a Turma negou provimento ao recurso. 

Acórdão 1424536, 07632499720198070016, Relator: Des. HUMBERTO ULHÔA, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 26/5/2022, publicado no PJe: 30/5/2022. 

Direito Tributário

Tarifa especial de esgoto calculada sobre a totalidade do consumo de água – legalidade

A cobrança de tarifa especial de esgoto calculada de acordo com a totalidade do consumo de água é legítima, independentemente de eventual diferença em relação ao volume do resíduo efetivamente despejado na rede de captação, pois há previsão legal e a forma de remuneração do serviço impossibilita a distinção entre os contribuintes. Na origem, empresa que explora atividade de produção e venda de bebidas propôs ação declaratória contra a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal – CAESB, para que a cobrança da taxa de esgoto do estabelecimento fosse realizada de forma proporcional ao volume de dejetos efetivamente despejados no esgotamento sanitário. Isso porque a fábrica recebeu notificação do órgão de saneamento com o propósito de celebrar contrato para prestação do serviço público de coleta e tratamento de efluentes líquidos, após visita técnica que constatou características não domésticas no esgoto lançado pela autora na rede de captação. O pagamento da tarifa especial mensal seria em valor correspondente à totalidade do volume de água captado, na forma do art. 150 do Decreto Distrital 18.328/1997. O Juízo Sentenciante julgou procedente o pedido autoral, uma vez demonstrado pela perícia que o volume de água captado que retorna à rede coletora é bem inferior à presunção legal (apenas 42,6%). Na análise do recurso interposto pela ré, os Desembargadores asseveraram que a cobrança de tarifa de água e esgoto possui natureza de preço público, com remuneração pelo fornecimento de serviço específico, seja pelo uso efetivo, seja pelo uso potencial. Reconheceram que a água utilizada pela fábrica é, em grande parte, engarrafada e consumida por terceiros; portanto, não lançada integralmente no sistema de esgoto. Contudo, assinalaram que a legislação pertinente (Lei 11.445/2007 e Decreto Federal 7.217/2010) determina que a tarifação da coleta de esgoto seja calculada com base no consumo de água, ainda que haja diferença em relação ao volume de esgoto. Esclareceram que a forma de remuneração deste serviço impede a distinção de qual contribuinte utiliza mais o serviço de esgoto ou o consumo de água. O Colegiado reforçou a existência de previsão legal para o cálculo da tarifa de esgoto no patamar de 100% do volume de água e o fato de o serviço prestado não se restringir à coleta de esgoto, dado abranger, ainda, o tratamento dos dejetos antes do deságue, de modo a reduzir os danos ambientais. Desse modo, consignou que a presunção realizada é legítima tanto pela natureza do serviço quanto pela dicção da lei. Com isso, a Turma deu provimento ao recurso da CAESB para reformar a sentença e julgar improcedente o pedido da autora. O relator originário, prolator do voto vencido, ao considerar que o volume de resíduo coletado é menor que o volume de água registrado pelos hidrômetros da empresa, entendeu caracterizada a abusividade e a desproporcionalidade da cobrança.

Acórdão 1420200, 07093351520198070018, Relator Designado: Des. FABRÍCIO FONTOURA BEZERRA, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 20/4/2022, publicado no PJe: 20/5/2022. 

Informativo

1ª Vice-Presidência

Desembargador Primeiro-Vice-Presidente: Angelo Canducci Passareli

Desembargadores integrantes da Comissão de Jurisprudência: Sandoval Gomes de Oliveira - Presidente; Roberto Freitas Filho, Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, César Laboissiere Loyola e Héctor Valverde Santanna – membros efetivos e Alvaro Ciarlini - membro suplente

Juíza Auxiliar da Primeira-Vice-Presidência: Marília Garcia Guedes

Secretário de Jurisprudência e Biblioteca: Caio Pompeu Monteiro Barbosa

Subsecretária de Doutrina e Jurisprudência: Thaysa Cristina Silva Goulart

Redação: Alessandro Soares Machado, Ana Cláudia Nascimento Trigo de Loureiro, Ana Paula Gama, Andrea Djanira Santos de Paula, Fernanda Oliveira da Costa Tourinho, Mônica Maria Oliveira Fonseca, Ricardo Machado de Aguiar, Susana Moura Macedo e Tiago de Carvalho Resende Rodrigues

Colaboradores: Cristiana Costa Freitas, Eliane Torres Gonçalves, Letícia Vasco Mota e Risoneis Alvares Barros

Revisão: José Adilson Rodrigues

Conversão do texto em áudio: Alexandre da Silva Lacerda

E-mail: jurisprudencia.nupijur@tjdft.jus.br

Este Informativo é produzido pelo Núcleo de Pesquisa e Informativo de Jurisprudência – NUPIJUR

As notas aqui divulgadas foram elaboradas a partir de acórdãos selecionados pelo Núcleo de Pesquisa e Informativo de Jurisprudência da SUDJU e não constituem, portanto, repositório oficial da jurisprudência deste Tribunal.

Acesse também:

CDC na visão do TJDFT

Dano Moral no TJDFT

Decisões em Evidência

Desigualdade e Discriminação Racial na visão do TJDFT

Direito Constitucional na visão do TJDFT

Doutrina na Prática

Entendimentos Divergentes no TJDFT

Inconstitucionalidades

Jurisprudência Administrativa Interna

Jurisprudência em Detalhes

Jurisprudência em Perguntas

Jurisprudência Reiterada

Lei Maria da Penha na visão do TJDFT

Novo Código de Processo Civil e o TJDFT

Perspectiva de Gênero: comunidade LGBTQIA+ no âmbito do TJDFT

Saúde e Justiça