Excesso

última modificação: 2021-09-10T14:04:36-03:00

Tema criado em 31/8/2021.

Doutrina

"O Código Penal, logo depois de anunciar as causas justificantes da conduta típica, alerta: 'O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo’ (art. 23, parágrafo único).

O legislador, desse modo, demonstra sua preocupação quanto aos limites da ação/reação do agente.

Deve ser reconhecido, no entanto, que a expressão 'excesso' pressupõe uma inicial situação de legalidade, seguida de um atuar extrapolando limites. O exagero, decorrendo de dolo (consciência e vontade) ou culpa (negligência), será punível.

Percebemos cada vez mais a doutrina classificando o excesso em extensivo e intensivo, sem qualquer amparo legal, gerando, não raras vezes, confusão desnecessária (começando pela divergência do que vem a ser um e outro).

Zaffaroni e Pierangeli bem observam:

''Excesso' significa 'passar dos limites' de uma dessas causas eximentes, mas, para 'passar dos limites' será sempre necessário se ter estado, em algum momento, dentro deles.

De conformidade com este conceito de excesso, haverá excesso nas eximentes quando, por exemplo, na legítima defesa, a ação desenvolvida em resposta à agressão se prolongue para depois de cessada essa agressão; quando, no cumprimento de um dever, tenham cessado as circunstâncias que criam esse dever e a ação continua; quando, no estado de necessidade, a ação se prolongue, muito embora a situação de necessidade não mais persista. Contrariamente, não haverá 'excesso' quando a defesa não tenha sido necessária ou moderada, ou quando, na necessidade, se dispusesse de outro meio menos lesivo, porque, em nenhum desses casos, o autor teria atuado dentro dos limites da eximente, e, portanto, nunca poderia ter 'excedido'.

Na doutrina tem-se distinguido entre um ‘excesso extensivo' e um 'excesso intensivo', sendo o primeiro aquele que, na sua conduta, o sujeito continua a atuar mesmo quando cessada a situação de justificação ou de atipicidade, ou seja, este é o único conceito de excesso que, na nossa opinião, se pode admitir, enquanto o excesso chamado 'intensivo', seria aquele em que o sujeito realiza uma ação que não completa os respectivos requisitos em cada uma das correspondentes eximentes. Este conceito de 'excesso intensivo' não é propriamente um excesso, porque, quando não ocorrem os requisitos da eximente, em momento algum ela ocorreu, e, portanto, não se pode 'exceder'. Em definitivo, esta confusa classificação do 'excesso' amplia indevidamente o conceito e leva à introdução, pela via do suposto 'excesso intensivo' (que é uma contradictio in adjecto), um sistema de atenuantes que a lei não admite, e ao qual nos referimos: o das chamadas 'eximentes incompletas''202

A doutrina em geral classifica o excesso em doloso, culposo, acidental ou exculpante, sendo que apenas os dois primeiros estão positivados no Código Penal. O Código Penal Militar, por sua vez, trata também do excesso escusável (art. 45, parágrafo único)203. Vejamos no que consiste cada um.

O excesso doloso ocorre quando o agente se propõe a ultrapassar os limites da causa justificante. Suponhamos que o sujeito seja atacado por um seu desafeto desarmado e inicie atuação legítima para repelir a injusta agressão. Enquanto se defende, diante da oportunidade criada pelas circunstâncias, decide matar seu inimigo e se apodera de um revólver, alvejando mortalmente aquele indivíduo. Não obstante a ação inicial estivesse acobertada, houve excesso proposital, que ensejará a imputação do resultado na forma de dolo.

Já o excesso culposo decorre da inobservância do dever de cuidado do agente enquanto atua respaldado por alguma das causas excludentes da ilicitude. Imaginemos que um indivíduo seja atacado por alguém desarmado e, licitamente, ponha-se a repelir a agressão injusta. Exibindo o agressor compleição física avantajada, o agredido se apossa de um pedaço de madeira para rechaçar os socos que receberia. Por falta de cuidado, no entanto, acaba atingindo a cabeça do agressor, que falece em virtude dos ferimentos. Neste caso, o agredido seria responsabilizado por homicídio culposo.

O excesso acidental, por sua vez, é irrelevante penalmente porque decorre de caso fortuito ou força maior. Invocando exemplo semelhante aos anteriores, ocorreria excesso acidental se o agredido repelisse o agressor com um soco e este último sofresse, em razão da alteração de ânimo, um colapso cardíaco mortal. Neste caso, tratando-se de um caso fortuito, o agredido não responderia por excesso.

Há também menção ao excesso exculpante, relacionado a profunda revolta de ânimo que acomete o agente. Neste caso, inicialmente, a conduta estava respaldada pela justificante, mas a situação em que se encontra o sujeito faz surgir nele um estado de pânico que lhe retira a capacidade de atuar racionalmente. Alguém que, por exemplo, diante de um agressor armado, investe contra ele a ponto de causar sua inconsciência, mas, temeroso quanto à possibilidade de ser alvejado, continua a agredi-lo, comete fato típico e ilícito. Não obstante, pode ter a culpabilidade afastada por inexigibilidade de conduta diversa.

Note-se que embora os exemplos aqui citados se refiram à legítima defesa, o excesso pode ser relativo, em tese, a qualquer das causas eximentes. Não é menos verdade, contudo, que a legítima defesa é o seu palco mais recorrente, pois as situações que a envolvem normalmente tornam propícias reações desproporcionais em virtude da alteração anímica característica em casos tais." (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º ao 120. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 348-350). (grifos no original)

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"Em cada excludente de ilicitude é possível haver excesso. Se tal situação ocorrer, deve-se verificar qual o tipo de excesso ocorrido, se punível ou não.

a) No estado de necessidade, concentra-se o excesso no 'agir de outro modo para evitar o resultado'. Se o agente afasta a ocorrência do resultado, valendo-se de meios dispensáveis, que acabem produzindo dano em bem jurídico alheio, terá agido com excesso;

b) Na legítima defesa, o excesso está firmado na falta do emprego dos meios necessários para evitar a agressão ou no uso imoderado desses meios;

c) No estrito cumprimento do dever legal, o excesso está focalizado no 'dever legal'. Quando a lei impõe um modo para o agente atuar, deve ele seguir exatamente os parâmetros fixados; fugindo a eles, responde pelo excesso;

d) No exercício regular de direito, o excesso está no exercício abusivo de direito, isto é, exercitar um direito, embora de modo irregular e prejudicando direito alheio;

(...)

De acordo com o art. 23, parágrafo único, do Código Penal, haveria apenas duas espécies de excesso, o doloso e o culposo. Entretanto, a doutrina acrescenta mais duas, o exculpante e o acidental.

(...)

a) excesso doloso: ocorre quando o agente consciente e propositadamente causa ao agressor, ao se defender, maior lesão do que seria necessário para repelir o ataque. Atua, muitas vezes, movido pelo ódio, pela vingança, pelo rancor, pela perversidade, pela cólera, entre outros motivos semelhantes.

O excesso doloso, uma vez reconhecido, elimina a possibilidade de se reconhecer a excludente de ilicitude, fazendo com que o autor da defesa exagerada responda pelo resultado típico que provocou no agressor. Pode, por vezes, funcionar como circunstância que leve à diminuição da pena ou mesmo a uma atenuante (violenta emoção após injusta provocação da vítima);

b) excesso culposo: é o exagero decorrente da falta de dever de cuidado objetivo ao repelir a agressão. Trata-se do erro de cálculo, empregando maior violência do que era necessário para garantir a defesa. Se presente o excesso, o agente responde pelo resultado típico provocado a título de culpa.

No contexto do excesso culposo, podem ser aplicadas, ainda, as mesmas regras atinentes aos erros de tipo e de proibição (neste último caso, (...), quando o agente se equivoca quanto aos limites da excludente);

Os excessos implicitamente previstos no ordenamento são:

c) excesso exculpante: trata-se de uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade. Essa modalidade é decorrente de medo, surpresa ou perturbação de ânimo, fundamentados na inexigibilidade de conduta diversa. Ilustrando: o agente, ao se defender de um ataque inesperado e violento, apavora-se e dispara seu revólver mais vezes do que seria necessário para repelir o ataque, matando o agressor. Pode constituir-se uma hipótese de flagrante imprudência, embora justificada pela situação especial por que passava. Registre-se a lição de Welzel na mesma esteira, mencionando que os estados de cansaço e excitação, sem culpabilidade, dificultam a observância do cuidado objetivo por um agente inteligente, não se lhe reprovando a inobservância do dever de cuidado objetivo, em virtude de medo, consternação, susto, fadiga e outros estados semelhantes, ainda que atue imprudentemente (Derecho penal alemán, p. 216).

(...). Embora no direito brasileiro não se possa considerar o medo como excludente de culpabilidade, é certo que ele pode dar margem a reações inesperadas por aquele que o sente, valendo levar esse estado de espírito em conta na análise da legítima defesa e do estado de necessidade, em especial quando se discute ter havido excesso.

(...)

d) excesso acidental: é o exagero que decorre do caso fortuito, embora não em intensidade suficiente para cortar o nexo causal. Por vezes, o agente se excede na defesa, mas o exagero é meramente acidental. Não se pode dizer ter havido moderação na defesa, pois o dano provocado no agressor foi além do estritamente necessário para repelir o ataque, embora o exagero possa ser atribuído ao fortuito. Exemplo: disparos de arma de fogo são dados contra o autor de uma agressão, que cai sobre um gramado, sobrevivendo. Os mesmos disparos podem ser desferidos e o agressor cair sobre o asfalto, batendo a cabeça na guia, situação que, associada aos tiros sofridos, resulta na sua morte. Teria havido moderação? É possível que, considerando o resultado havido, no primeiro caso o juiz (ou o Conselho de Sentença) considere ter sido razoável a reação, embora no segundo, por conta da morte, chegue-se à conclusão de ter havido um excesso.

Seria esse excesso meramente acidental, pois o caso fortuito estava presente, não podendo o agente responder por dolo ou culpa. Trata-se de um excesso penalmente irrelevante (Alberto Silva Franco e Adriano Marrey, Teoria e prática do júri, p. 489)." (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 222-224).

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"(...), pode-se falar em excesso voluntário (ou consciente) quando o agente tem plena consciência de que intensifica desnecessariamente sua conduta de início legítima. Exemplo: depois de ter dominado o ladrão, a vítima efetua disparos de arma de fogo contra ele, por raiva, matando-o. Consciente da desnecessidade de seu comportamento, a vítima do roubo, que agia em legítima defesa, após ter dominado o ladrão e ter conscientemente efetuado disparos, torna-se autora de um homicídio doloso.

Há, também, o excesso involuntário (ou inconsciente), o qual deriva da má apreciação da realidade (erro de tipo). O sujeito ultrapassa os limites da excludente sem se dar conta de seu exagero. Para determinar sua responsabilidade penal, será preciso avaliar se o erro (de tipo) por ele cometido foi evitável ou não. Considera-se evitável (ou vencível) o erro que uma pessoa de mediana prudência e discernimento não teria cometido na situação em que o agente se encontrava (ex.: durante um roubo, o ofendido reage à abordagem do agente e, mesmo após desarmá-lo e dominá-lo por completo, mas sem notar as circunstâncias, o agride fisicamente, supondo por equívoco que o ladrão ainda não havia sido completamente subjugado). Nesse caso, ele responderá pelo resultado produzido excessivamente a título de culpa (se a lei previr o crime na forma culposa). Por outro lado, será inevitável (ou invencível) o erro em que qualquer pessoa mediana incorreria na situação em que os fatos se deram (ex.: durante um roubo, a vítima, sem se dar conta de que o ladrão portava arma de brinquedo, reage à investida efetuando disparos de arma de fogo, matando-o). Se assim for, ficam afastados o dolo e a culpa, surgindo o chamado excesso exculpante, isto é, o sujeito não cometerá crime algum, apesar do excesso.

Por vezes, o excesso exculpante pode derivar do medo. Uma senhora sexagenária abordada por um assaltante pode, por medo, reagir, agredindo-o com seu guarda-chuva (estará em legítima defesa). Se o agressor desmaiar e ela, ainda influenciada pelo medo, continuar a golpeá-lo, matando-o, haverá excesso. Caso esse medo tenha provocado uma importante alteração em seu estado psíquico, a ponto de impedi-la de avaliar objetivamente os fatos, surgira o excesso exculpante, que, em matéria de legítima defesa, denomina-se legítima defesa subjetiva." (ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º a 120. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 300). 

202. Ob. cit. p. 566.

203. "Excesso escusável: Art. 45 (...) Parágrafo único. Não é punível o excesso quando resulta de escusável surprêsa ou perturbação de ânimo, em face da situação".

Jurisprudência

  • TJDFT

Legítima defesa – excesso punível não caracterizado

"PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO. CONTRAVENÇÃO PENAL. VIAS DE FATO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. LEGÍTIMA DEFESA. EXCESSO PUNÍVEL NÃO CONFIGURADO. ABSOLVIÇÃO.

1. O conjunto probatório revela que a vítima deu início às agressões e que, em toda a sequência fática, o réu continuou a agir para repelir a injusta agressão da esposa, sendo que, tão logo ela cessou com suas investidas, ele interrompeu o seu proceder, impondo-se o reconhecimento de que, em todo o momento, estava acobertado pela legítima defesa."

Acórdão 1197422, 20161510047955APR, Relator: CRUZ MACEDO, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 15/8/2019, publicado no DJE: 3/9/2019.

Estado de pânico e excesso exculpante

"II - É consabido que age 'em legítima defesa quem, usando moderamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem' (art. 25 do CP) e que o estado de pânico que retira a capacidade do agente em atuar racionalmente, atrai o chamado excesso exculpante."

Acórdão 1173523, 20170510091388APR, Relatora: NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 23/5/2019, publicado no DJE: 29/5/2019.

Excesso doloso e propósito do agente – não configuração

"1. Demonstrado que o acusado era vítima de injusta agressão, atual ou iminente, a qual justificativa o uso de violência física para repeli-la, a manutenção da sentença que o absolveu com respaldo na excludente da legítima defesa é medida que se impõe.
2. Cabível o excesso doloso somente quando constatado e comprovado que a conduta da parte acusada visava a causar, de forma proposital, lesão maior do que a suficiente para rechaçar o ataque sofrido."

Acórdão 1089572, 20161510061522APR, Relator: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, 3ª Turma Criminal, data de julgamento: 12/4/2018, publicado no DJE: 19/4/2018.