Crimes próprios e de mão própria
Tema criado em 14/9/2022.
Doutrina
"31.8.1.1. Coautoria, crimes próprios e crimes de mão própria
Crimes próprios ou especiais são aqueles em que o tipo penal exige uma situação de fato ou de direito diferenciada por parte do sujeito ativo. Apenas quem reúne as condições especiais previstas na lei pode praticá-lo. É o caso do peculato (CP, art. 312), cujo sujeito ativo deve ser funcionário público, e também do infanticídio (CP, art. 123), que precisa ser praticado pela mãe, durante o parto ou logo após, sob a influência do estado puerperal.
Crimes de mão própria, de atuação pessoal ou de conduta infungível, de outro lado, são os que somente podem ser praticados pelo sujeito expressamente indicado pelo tipo penal. Pode-se apontar o exemplo do falso testemunho (CP, art. 342).
Os crimes próprios podem ser praticados em coautoria. É possível que duas ou mais pessoas dotadas das condições especiais reclamadas pela lei executem conjuntamente o núcleo do tipo. É o caso de dois funcionários públicos que, juntos, subtraem bens pertencentes à Administração Pública.
Mas não é só. Nada impede seja um crime próprio cometido por uma pessoa que preencha a situação fática ou jurídica exigida pela lei em concurso com terceira pessoa, sem essa qualidade. Exemplo: 'A', funcionário público, convida 'B', particular, para lhe ajudar a subtrair um computador que se encontra no gabinete da repartição pública em que trabalha. 'B', ciente da condição de funcionário público de 'A', ajuda-o a ingressar no local e a transportar o bem até a sua casa. Ambos respondem por peculato.
Essa conclusão se coaduna com a regra traçada pelo art. 30 do Código Penal: por ser a condição de funcionário público elementar do peculato, comunica-se a quem participa do crime, desde que dela tenha conhecimento.
Os crimes de mão própria, por sua vez, são incompatíveis com a coautoria.
Com efeito, podem ser praticados exclusivamente pela pessoa taxativamente indicada pelo tipo penal. Por corolário, ninguém mais pode com ela executar o núcleo do tipo. Em um falso testemunho proferido em ação penal, a título ilustrativo, o advogado ou membro do Ministério Público não tem como negar ou calar a verdade juntamente com a testemunha. Apenas ela poderá fazê-lo.
Existe somente uma exceção a esta regra, relativa ao crime de falsa perícia (CP, art. 342) praticado em concurso por dois ou mais peritos, contadores, tradutores ou intérpretes, como na hipótese em que dois peritos subscrevem dolosamente o mesmo laudo falso. Trata-se de crime de mão própria cometido em coautoria." (MASSON, Cléber. Direito Penal Esquematizado: Parte Geral: arts. 1.º a 120. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. v. 1. p. 527-528). (grifos no original)
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"A coautoria é compatível com os crimes próprios tanto se todos os autores forem dotados da característica necessária para a incidência da norma específica quanto se apenas um deles o for e esta característica ingresse na esfera de conhecimento dos demais. Assim, o peculato pode ser cometido por dois funcionários públicos conluiados ou por um funcionário público e um particular que tenha conhecimento de que seu comparsa exerce a função pública e pratica o crime se valendo da facilidade que o cargo lhe proporciona.
(...)
Já os crimes de mão própria, em regra, não comportam a coautoria, pois somente podem ser cometidos por determinado agente designado no tipo penal366. Exige-se a atuação pessoal do sujeito ativo, que não pode ser substituído por mais ninguém. Aponta a doutrina apenas uma exceção, consistente na falsa perícia firmada dolosamente por dois ou mais expertos conluiados." (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º ao 120. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 467-468).
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"Exigindo-se nos crimes de mão própria a atuação pessoal e intransferível do agente, pergunta-se: pode-se falar em coautoria nessas espécies de infrações penais?
(...) a autoria mediata é possível nos crimes próprios. Desde que o autor mediato possua as qualidades e condições especiais exigidas pelo tipo penal, nada o impede de se valer de um ‘instrumento’ para a execução da infração penal.
Também não haverá óbice algum nos delitos próprios, no que diz respeito à possibilidade de existirem, dentro do critério de distribuição de funções, vários autores que, com unidade de desígnio, pratiquem a mesma infração penal, podendo-se falar, aqui, em coautoria. Poderão dois funcionários públicos, agindo em concurso, subtrair, valendo-se da facilidade que essa qualidade lhes proporcionava, um microcomputador existente na repartição na qual ambos trabalhavam. O crime de peculato é próprio, pois somente pode ser praticado por quem possua a qualidade de funcionário público. Contudo, embora próprio, admite a autoria mediata, bem como a coautoria, aplicando-se, com perfeição, a teoria do domínio funcional do fato.
Agora, será possível a coautoria em delitos de mão própria? Da mesma forma que, como regra, não se admite em infrações penais dessa natureza a autoria mediata, também deverá ser afastada a possibilidade de coautoria. Isso porque, por se tratar de infrações personalíssimas, não há a possibilidade de divisão de tarefas. O delito, portanto, só pode ser realizado pessoalmente pelo agente previsto no tipo penal.
Embora não se possa falar em coautoria em delitos de mão própria, nada impede que haja concurso de partícipes. Os partícipes, mesmo não possuindo o domínio sobre o fato, podem, de alguma forma, concorrer para a infração penal, induzindo, instigando ou auxiliando materialmente o autor." (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: artigos 1º a 120 do Código Penal. Barueri, SP: Grupo Gen: Atlas, 2022. v.1. E-book. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559771493/. Acesso em: 12 set. 2022).
"366. Repetimos aqui um alerta feito nos tópicos pretéritos. Adotada a teoria do domínio do fato, perde sentido a divisão dos crimes próprios e de mão própria, visto que a execução do núcleo deixa de ser o marco do autor. Sugerimos (e aguardamos as pertinentes críticas da doutrina), que os crimes, agora, sejam divididos em comum (não exige qualidade ou condição especial do agente) e próprio (exige qualidade ou condição especial do agente). Este (próprio), por sua vez, se divide em simples (não sendo de conduta infungível) e especial (de conduta infungível, substituindo o delito de mão própria)." |
Jurisprudência
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TJDFT
Falso testemunho – crime de mão própria – incompatibilidade com a coautoria – possibilidade de ocorrência de participação
"5. O falso testemunho, por se tratar de crime de mão própria, exige que o sujeito ativo realize a conduta delitiva pessoalmente, o que afasta o concurso de agentes na modalidade da coautoria. Porém, não há incompatibilidade com o instituto da participação, onde o agente não realiza o núcleo do tipo, mas induz, instiga ou auxilia a execução do ilícito."
Acórdão 803736, 20121310040353APR, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, Segunda Turma Criminal, data de julgamento: 10/7/2014, publicado no DJE: 21/7/2014. (grifos no original)
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STJ
Crimes de mão própria – inadmissibilidade de coautoria
"(...), os crimes de mão própria ou de atuação pessoal (Damásio E. de Jesus in 'Direito Penal - Vol. 1 - Parte Geral’, Ed. Saraiva, 23ª edição, 1999, pág. 188) estão descritos em figuras típicas necessariamente formuladas de tal forma que só pode ser autor quem esteja em situação de realizar pessoalmente e de forma direta o fato punível (Luiz Régis Prado in 'Curso de Direito Penal Brasileiro, Vol. 1 - Parte Geral', Ed. Revista dos Tribunais, 2002, pág. 210). Nesses crimes 'a ilicitude está em função da execução pessoal da conduta punível' (Heleno Cláudio Fragoso in 'Lições de Direito Penal - Parte Geral', Ed. Forense, 16ª edição, 2003, pág. 316) 'el ilícito típico sólo se produce cuando el autor ejecuta la acción del hecho en su propia persona' (Günter Stratenwerth in 'Derecho Penal - Parte General I - El hecho punible', Ed. Hammurabi, 4ª edição, 2000, pág. 377), é dizer, 'la expresión de propria mano se reserve para designar a cirta categoria de tipos penales que solo admiten la comisión en forma personal y directa por el autor' (Eugénio Raul Zaffaroni, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar in 'Derecho Penal - Parte General', Ed. Ediar, 2ª edição, 2002, pág. 787). Desta forma, o autor do delito não pode utilizar-se de interposta pessoa (Cezar Roberto Bitencourt in 'Manual de Direito Penal, Vol. 1 - Parte Geral', Ed. Saraiva, 6ª edição, 2000, pág. 148), não admitindo, portanto, a co-autoria (René Ariel Dotti in 'Curso de Direito Penal - Parte Geral', Ed. Forense, 1ª edição, 2001, pág. 362), por não ser possível a divisão de tarefas (Rogério Greco in 'Curso de Direito Penal - Parte Geral', Ed. Impetus, 4ª edição, 2004, pág. 482)." REsp 761.354/PR (grifos no original)