Crime culposo
Tema criado em 25/09/2020.
Doutrina
"É o comportamento voluntário desatencioso, voltado a um determinado objetivo, lícito ou ilícito, embora produza resultado ilícito, não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado. Por que se pune a culpa? Responde Carrara: “os atos imprudentes também diminuem no bom cidadão o sentimento da sua segurança e dão um mau exemplo àquele que é inclinado a ser imprudente. Os atos culposos, que se ligam a um vício da vontade, são moralmente imputáveis, porque é um fato voluntário o conservar inativas as faculdades intelectuais. O negligente, se bem que não tenha querido a lesão do direito, quis, pelo menos, o ato no qual deveria reconhecer a possibilidade ou a probabilidade dessa lesão” (apud Raul Machado, A culpa no direito penal, p. 186).
O dolo é a regra; a culpa, exceção. Para se punir alguém por delito culposo, é indispensável que a culpa venha expressamente delineada no tipo penal. Trata-se de um dos elementos subjetivos do crime, embora se possa definir a natureza jurídica da culpa como sendo um elemento psicológico-normativo. Psicológico, porque é elemento subjetivo do delito, implicando na ligação do resultado lesivo ao querer interno do agente através da previsibilidade. Normativo, porque é formulado um juízo de valor acerca da relação estabelecida entre o querer do agente e o resultado produzido, verificando o magistrado se houve uma norma a cumprir, que deixou de ser seguida. Note-se o conceito de culpa extraído do Código Penal Militar, bem mais completo do que o previsto no Código Penal comum: “Diz-se o crime: II – culposo, quando o agente, deixando de empregar a cautela, atenção, ou diligência ordinária, ou especial, a que estava obrigado em face das circunstâncias, não prevê o resultado que podia prever ou, prevendo-o, supõe levianamente que não se realizaria ou que poderia evita-lo”." (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 195).
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"São assim elementos do crime culposo:
a) a conduta;
b) a inobservância do dever de cuidado objetivo;
c) o resultado lesivo involuntário;
d) a previsibilidade; e
e) a tipicidade.
Conduta
Enquanto nos crimes dolosos a vontade está dirigida à realização de resultados objetivos ilícitos, os tipos culposos ocupam-se não com o fim da conduta, mas com as consequências antissociais que a conduta vai produzir; no crime culposo o que importa não é o fim do agente (que é normalmente lícito), mas o modo e a forma imprópria com que atua. Os tipos culposos proíbem, assim, condutas em decorrência da forma de atuar do agente para um fim proposto e não pelo fim em si. O elemento decisivo da ilicitude do fato culposo reside não propriamente no resultado lesivo causado pelo agente, mas no desvalor da ação que praticou.
(...)
Dever de cuidado objetivo
A cada homem, na comunidade social, incumbe o dever de praticar os atos da vida com as cautelas necessárias para que de seu atuar não resulte dano a bens jurídicos alheios. Quem vive em sociedade não deve, com uma ação irrefletida, causar dano a terceiro, sendo-lhe exigido o dever de cuidado indispensável a evitar tais lesões. Assim, se o agente não observa esses cuidados indispensáveis, causando com isso dano a bem jurídico alheio, responderá por ele. É a inobservância do cuidado objetivo exigível do agente que torna a conduta antijurídica.
Como muitas das atividades humanas podem provocar perigo para os bens jurídicos, sendo inerentes a elas um risco que não pode ser suprimido inteiramente sob pena de serem totalmente proibidas (dirigir um veículo, operar um maquinismo, lidar com substâncias tóxicas etc.), procura a lei estabelecer quais os deveres e cuidados que o agente deve ter quando desempenha certas atividades (velocidade máxima permitida nas ruas e estradas, utilização de equipamento próprio em atividades industriais, exigência de autorização para exercer determinadas profissões etc.).
(...)
Resultado
Em sim mesma, a inobservância do dever de cuidado não constitui conduta típica porque é necessário outro elemento do tipo culposo: o resultado. Só haverá ilícito penal culposo se da ação contrária ao cuidado resultar lesão a um bem jurídico. Se, apesar da ação descuidada do agente, não houver resultado lesivo, não haverá crime culposo.
(...)
Previsibilidade
O tipo culposo é diverso do doloso. Há na conduta não uma vontade dirigida à realização do tipo, mas apenas um conhecimento potencial de sua concretização, vale dizer, uma possibilidade de conhecimento de que o resultado lesivo pode ocorrer. Esse aspecto subjetivo da culpa é a possibilidade de conhecer o perigo que a conduta descuidada do sujeito cria para os bens jurídicos alheios, a possibilidade de prever o resultado conforme o conhecimento do agente. A essa possibilidade de conhecimento e previsão dá-se o nome de previsibilidade.
A previsibilidade – como anota Damásio – é a possibilidade de ser antevisto o resultado, nas condições em que o sujeito se encontrava. Exige-se que o agente, nas circunstâncias em que se encontrava, pudesse prever o resultado de seu ato. A condição mínima de culpa em sentido estrito é a previsibilidade; ela não existe se o resultado vai além da previsão.
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Tipicidade
Nos crimes culposos a ação não está descrita como nos crimes dolosos. São normalmente tipos abertos que necessitam de complementação de uma norma de caráter geral, que se encontra fora do tipo, e mesmo de elementos do tipo doloso correspondente. Assim, a lei brasileira prevê no art. 129, § 6º: “Se a lesão é culposa: Pena – detenção, de dois meses a um ano” e no art. 250, §2º: “Se culposo o incêndio, a pena é de detenção, de seis meses a dois anos”, exigindo-se para a adequação do fato a esses tipos penais a complementação prevista no art. 18 inciso II (conceito legal para o entendimento do crime culposo), no art. 129, caput (que prevê a lesão corporal como ofensa à integridade corporal ou à saúde de outrem) e também, no art. 250, caput (que prevê na conceituação do incêndio a exposição de perigo à vida, à integridade física ou ao patrimônio de outrem)." (MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal: parte geral: arts. 1º a 120 do CP - volume 1. 34ª ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 136-138).
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"Formas de manifestação
As formas de manifestação dizem respeito ao modo pelo qual se porta o agente, o que acaba por fazer com que o resultado lesivo da conduta culposa se exteriorize. Pode ocorrer mediante uma ação positiva ou negativa descrita no art. 18, II, do CP, que define como culposo o crime “quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.
O que se pode perceber é que se pune a violação ao dever de cuidado, e não precisamente o resultado que a conduta ocasionou.
Imprudência
(...) A imprudência consiste na violação das regras de condutas ensinadas pela experiência. É o atuar sem precaução, precipitado, imponderado. Há sempre um comportamento positivo. É a chamada culpa in faciendo. Uma característica fundamental da imprudência é que nela a culpa se desenvolve paralelamente à ação. Desse modo, enquanto o agente pratica a conduta comissiva, vai ocorrendo simultaneamente a imprudência.
Negligência
Negligência é caracterizada pela ausência de precaução ou indiferença em relação ao ato realizado. Caracteriza-se por uma atitude negativa do agente que não faz algo que deveria, um estado de inércia, como, por exemplo, deixar uma arma de fogo ao alcance de uma criança.
Imperícia
Configura-se imperícia a falta de aptidão, habilidade técnica para o exercício de arte ou profissão a ser praticada. Materializa-se no momento em que o agente, não considerando o que sabe, ou deveria saber, causa prejuízo a outrem. Temos como exemplo o caso do motorista profissional que conduz seu veículo sem possuir a necessária competência." (PACELLI, Eugênio. Manual de Direito Penal. 5ª. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 285).
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"Espécies de culpa
a) Culpa inconsciente, na qual o resultado não é previsto pelo agente, embora previsível. É a culpa comum, normal, manifestada pela imprudência, negligência ou imperícia.
b) Culpa consciente (ou culpa com previsão), na qual o resultado é previsto pelo agente, que espera inconsideradamente que não ocorra ou que possa evitá-lo. Exemplo difundido na doutrina é o do agente que, numa caçada, percebe que um animal se encontra nas proximidades de seu companheiro, estando ciente de que, disparando a arma, poderá acertá-lo. Confiante em sua perícia com armas de fogo, atira e mata o companheiro.
No dolo eventual, o agente tolera a produção do resultado, pois o evento lhe é indiferente; tanto faz que ocorra ou não.
Na culpa consciente, o agente não quer o resultado, não assume o risco nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é previsto, mas confia em sua não produção.
c) Culpa própria, na qual o resultado, embora previsível, não é previsto pelo agente.
d) Culpa imprópria (culpa por extensão, culpa por assimilação ou culpa por equiparação), na qual o agente quer o resultado, estando sua vontade viciada por erro que poderia evitar, observando o cuidado necessário. Ocorre por erro de tipo inescusável, por erro de tipo escusável nas descriminantes putativas ou por excesso nas causas de justificação.
e) Culpa mediata ou indireta, na qual o agente, dando causa a resultado culposo imediato, vem a determinar, mediata ou indiretamente, outro resultado culposo. Exemplo difundido na doutrina é o da pessoa que, socorrendo ente querido que se encontra atropelado, acaba por ser também atingida por outro veículo, sendo ferida ou morta. O interesse nessa modalidade de culpa está justamente na reponsabilidade do primeiro agente com relação ao segundo atropelamento. Deve-se perquirir, nesse caso, se o primeiro atropelador tinha previsibilidade do segundo resultado. Se tinha, responderá por ele. Se não tinha, inexistirá responsabilidade penal pelo segundo fato." (ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direito Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 116).
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"SITUAÇÕES PECULIARES NO CAMPO DA CULPA
Há certas ocorrências que merecem análise particularizada:
a) não existe culpa presumida, visto que a culpa há de ser sempre demonstrada e provada pela acusação. Falava-se, no passado, na presunção de culpa, quando o agente descumpria regra regulamentar e dava margem à ocorrência de um resultado danoso. Exemplo: aquele que dirigia sem habilitação, envolvendo-se num acidente, seria o culpado, pois estaria infringindo norma regulamentar não autorizadora da direção sem autorização legal.
b) graus de culpa não existem no contexto do direito penal, pouco importando se a culpa é levíssima, leve ou grave. Desde que seja suficiente para caracterizar a imprudência, a negligência ou a imperícia do agente, há punição. Os graus só interessam para a individualização da pena e para excluir do campo da culpa os casos em que a imprudência ou negligência sejam insignificantes e não possam ser considerados requisitos para a concretização do tipo penal.
c) compensação de culpas igualmente não se admite no direito penal, pois infrações penais não são débitos que se compensem, sob pena de retornarmos ao regime do talião. Assim, se um motorista atropela um pedestre, ambos agindo sem cautela e ferindo-se, responderão o condutor do veículo e o pedestre, se ambos atuaram com imprudência. Na lição de Raul Machado, “não há lugar a compensação, quando o evento resulta de ação culposa da parte do autor do fato e daquele que se pretenda ofendido. A responsabilidade em que um incorra não se compensa com a responsabilidade do outro, visto que uma e outra não podem, de direito e de justiça, ir além das consequências do próprio ato, e o ofendido com a sua parte de responsabilidade não elide a responsabilidade que caiba ao outro. A real coeficiência da ação do ofendido em relação ao resultado único, limita, apenas, a responsabilidade do ofensor, que seria completa se este tivesse sido o único a agir, mas que se torna parcial, atenta a coeficiência que pelo outro é prestada ao evento” (A culpa no direito penal, 213-214).
d) Concorrência de culpas é possível, pois é o que se chama de “coautoria sem ligação psicológica” ou “autoria colateral em crime culposo”. Ex.: vários motoristas causam um acidente; todos podem responder igualmente pelo evento, já que todos, embora sem vinculação psicológica entre si, atuaram com imprudência;" (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 197)."
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"Exclusão da culpa: Exclui-se a culpa nos seguintes casos:
1) Caso fortuito e força maior: São acontecimentos imprevistos, imprevisíveis e inevitáveis, que escapam do controle da vontade do homem. Se não há previsibilidade, e também não existe vontade, elemento indispensável à conduta, não há falar em culpa nos resultados que deles se originam.
2) Erro profissional: A culpa pelo resultado naturalístico não é do agente, mas da ciência, que se mostra inapta para enfrentar determinadas situações. Não se confunde com a imperícia, uma vez que nesta a falha é do próprio agente, que deixa de observar as regras recomendadas pela profissão, arte ou ofício.
3) Risco tolerado: Karl Binding, ao estudar o crime culposo, dizia que, quanto mais imprescindível for um tipo de comportamento humano, maior será o risco que em relação a ele se deverá enfrentar, sem que disso possa resultar qualquer espécie de reprovação jurídica. Delimita-se, dessa forma, a linha divisória entre o crime culposo e os fatos impuníveis resultantes do risco juridicamente tolerado. O médico que opera um doente em estado grave em condições precárias sabe que poderá causar-lhe a morte. E ainda que o resultado venha a ocorrer, não terá agido com culpa, pois a sua intervenção cirúrgica, na situação em que foi realizada, era indispensável como a única forma para tentar salvar a vida do paciente.
4) Princípio da confiança: Como o dever objetivo de cuidado se dirige a todas as pessoas, pode-se esperar que cada um se comporte de forma prudente e razoável, necessária para a coexistência pacífica em sociedade. E, por se presumir a boa-fé de todo indivíduo, aquele que cumpre as regras jurídicas impostas pelo Direito pode confiar que o seu semelhante também agirá de forma acertada. Assim agindo, não terá culpa nos crimes eventualmente produzidos pela conduta ilícita praticada por outrem." (MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. 7ª ed. São Paulo: Método, 2019. p. 156-157).
Jurisprudência
- TJDFT
É impossível a compensação de culpas no âmbito do direito penal
“2. O Direito Penal não admite a compensação de culpas, de modo que, mesmo que se possa atribuir à vítima culpa concorrente pelo acidente automobilístico, não fica afastada a responsabilidade do acusado por sua conduta imprudente no trânsito.”
Acórdão 1229395, 00299182120168070001, Relator: CARLOS PIRES SOARES NETO, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 6/2/2020, publicado no DJE: 27/2/2020.
Travessia de ciclista em trecho perigoso – culpa exclusiva da vítima
“2 O dever de cuidado objetivo imposto aos motoristas no trânsito é recíproco: todos devem atender às normas de circulação viária, inclusive pedestre e ciclista. Frustra-se o princípio da confiança recíproca quando este atravessa abruptamente uma via num trecho perigoso montado na bicicleta sem atentar para as condições desfavoráveis de tráfego, configurando culpa exclusiva da vítima.”
Acórdão 1226918, 20170110246058APR, Relator Designado: GEORGE LOPES, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 30/1/2020, publicado no DJE: 4/2/2020.
Crime culposo - imprescindibilidade da demonstração dos elementos da culpa
“2 O dever de cuidado objetivo imposto aos motoristas no trânsito é recíproco: todos devem atender às normas de circulação viária, inclusive pedestre e ciclista. Frustra-se o princípio da confiança recíproca quando este atravessa abruptamente uma via num trecho perigoso montado na bicicleta sem atentar para as condições desfavoráveis de tráfego, configurando culpa exclusiva da vítima.”
Acórdão 1184061, 20160110088528APR, Relator: ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, 2ª Turma Criminal, data de julgamento: 4/7/2019, publicado no DJE: 10/7/2019.
Culpa imprópria - reconhecimento de descriminante putativa
“2 Ficou provado que o motorista abalroador estava embriagada e dirigia seu carro perigosamente, provocando leve colisão contra o automóvel do réu, depois de ultrapassá-lo pelo acostamento. A colisão aconteceu à noite (20h30min) e em local ermo, perto da Estação da Marinha, permitindo supor que se tratasse de colisão deliberada com propósito de roubo, como às vezes acontece. Supondo um iminente ataque de ladrões, disparou seu revólver contra o veículo abalroador, imaginando uma situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. O réu é Policial Civil em Santos, SP, onde são comuns assaltos com tais características. Assim, o erro é plenamente justificável naquelas circunstâncias, sendo correto reconhecer da descriminante putativa.”
Acórdão 1075283, 20151210047896APR, Relator: GEORGE LOPES, 1ª Turma Criminal, data de julgamento: 8/2/2018, publicado no DJE: 21/2/2018.
- STJ
Inadmissibilidade da compensação de culpas em direito penal
“2. Em direito penal não existe compensação de culpa, de modo que eventual reconhecimento de conduta culposa de terceiro nenhum benefício traria à recorrente, haja vista que foi consignado pelas instâncias antecedentes que a ré agiu com culpa no acidente.” REsp 1840263/SP
Inicial acusatória - necessidade de descrição minuciosa da conduta culposa e demonstração da relação de causalidade
"1. O delito culposo exige a descrição da conduta culposa, com seu respectivo elemento caracterizador: imprudência, negligência ou imperícia. Não se admite que, na peça acusatória, conste apenas um agir lícito (dirigir veículo automotor) e o resultado morte ou lesão corporal sem a efetiva demonstração do nexo causal, como por exemplo: ausência de reparos devidos no veículo, velocidade acima da média que, em tese, poderia impedir a frenagem a tempo ou outro dado concreto que demonstre a ausência de observância do dever objetivo de cuidado." HC 543922/PB