Abolitio criminis

última modificação: 2024-06-24T11:35:05-03:00

Tema criado em 18/6/2024.  

Doutrina 

“Ocorre a chamada abolitio criminis quando o Estado, por razões de política criminal, entende por bem em não mais considerar determinado fato como criminoso. 

Ao cuidarmos dos princípios que informam o Direito Penal, dissemos que o legislador os tem como norte, a fim de que seja por eles orientado tanto na criação como na revogação dos tipos penais. Pelos princípios da intervenção mínima e da lesividade, por exemplo, o legislador deve entender que somente poderá legislar em matéria penal proibindo determinadas condutas, sob a ameaça de uma sanção de natureza penal, se o bem sobre o qual estiver recaindo a proteção da lei for significante, ou seja, for relevante a ponto de merecer a tutela do Direito Penal. Caso contrário, ou seja, se não houver a importância exigida pelo Direito Penal, aquele bem poderá ser protegido pelos demais ramos do ordenamento jurídico, mas não pelo Direito Penal, que possui, já o dissemos, uma natureza subsidiária. 

O mesmo raciocínio que se faz quando da criação de tipos penais incriminadores também é realizado para a sua revogação. Se o bem que, antes, gozava de certa importância e hoje, em virtude da evolução da sociedade, já não possui o mesmo status, deverá o legislador retirá-lo do nosso ordenamento jurídico-penal, surgindo o fenômeno da abolitio criminis. 

O art. 2º do Código Penal diz: 

Art. 2º Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. 

Isso quer dizer que se o Estado entendeu que o bem protegido pela lei penal já não gozava mais da importância exigida pelo Direito Penal e, em virtude disso, resolveu afastar a incriminação, todos aqueles que ainda se encontram cumprindo suas penas em razão da prática da infração penal agora revogada deverão interromper o seu cumprimento, sendo declarada a extinção da punibilidade. 

Nenhum efeito penal permanecerá, tais como reincidência e maus antecedentes, permanecendo, contudo, os efeitos de natureza civil, a exemplo da possibilidade de que tem a vítima de proceder à execução de seu título executivo judicial, conquistado em razão do trânsito em julgado da sentença penal que condenou o agente pela infração penal por ele cometida. A vítima da infração penal poderá levar a efeito a liquidação de seu título executivo judicial, a fim de proceder à sua execução, pois esse efeito da condenação ainda se encontra mantido, mesmo que a infração penal já não mais exista quando da efetiva execução de seu título.” 

(GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Artigos 1º a 120 do Código Penal. v.1. Grupo GEN, 2024. E-book. ISBN 9786559775798. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559775798/. Acesso em: 18 jun. 2024.) 

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“Nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal, a lei penal pode retroagir para favorecer o réu. Além disso, o próprio art. 2º do Código Penal contém norma no mesmo sentido, estabelecendo que ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar como crime, cessando, em virtude dela, a execução e os efeitos penais da sentença condenatória. 

Com a entrada em vigor de lei nova que revoga a infração penal, a conduta deixa de ser prevista como crime para os fatos novos e retroage para extinguir a punibilidade daqueles que já incorreram no tipo penal agora revogado. 

O que extingue efetivamente a punibilidade é a entrada em vigor da nova lei, todavia é necessário que haja declaração judicial nesse sentido, caso já exista ação penal ou inquérito em andamento. 

Se o crime ainda está em fase de investigação no inquérito policial ou se já há ação penal em andamento, cabe ao juiz natural declarar a extinção. Se o processo está em grau de recurso, é o tribunal competente que deve apreciar a questão. Se já existe sentença condenatória transitada em julgado, cabe ao juízo das execuções a decretação, nos termos do art. 66, I, da Lei de Execuções Penais. Nesse sentido, existe a Súmula 611 do Supremo Tribunal Federal: 'transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação da lei mais benigna'. 

Conforme se viu, a abolitio criminis pode acontecer antes ou depois da sentença condenatória, sendo que, neste último caso, rescinde a própria condenação e todos os seus efeitos penais, voltando o réu a ter o status de primário. A obrigação de reparar o prejuízo decorrente da sentença condenatória, porém, subsiste, podendo ser executada no juízo cível. 

A causa extintiva da punibilidade em estudo estende-se a todos os autores e partícipes do crime.” 

(GONÇALVES, Victor Eduardo R. Curso de direito penal: parte geral (arts. 1ª a 120). v.1. SRV Editora LTDA, 2023. E-book. ISBN 9786553624726. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786553624726/. Acesso em: 18 jun. 2024.) 

Jurisprudência  

  • TJDFT 

Revogação do art. 65 da Lei de Contravenções Penais – inocorrência de abolitio criminis – continuidade típico-normativa 

“I - Segundo orientação jurisprudencial dominante sobre o tema, a revogação do art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 não implicou em abolitio criminis para todas as condutas que estavam contidas na referida contravenção penal, considerando a possibilidade de aplicação da continuidade normativo típica, que deve ser analisada a partir do caso concreto.  II - Se a denúncia não descreve fato isolado, mas uma sucessão de condutas que, em tese, teriam perturbado a tranquilidade da vítima, não há que se falar em abolitio criminis, mas na continuidade típico normativa, enquadrando-se a conduta no delito disposto no art. 147-A, § 1º, II, do CP.” 

Acórdão 1789763, 07111507020218070020, Relator(a): NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 23/11/2023, publicado no PJe: 11/1/2024. 

Nova lei de licitações – revogação do art. 89 da Lei nº 8.666/1993 – abolitio criminis parcial 

"I - A Lei nº 14.133/2021 revogou o art. 89 da Lei nº 8.666/1993, que descrevia a conduta típica de 'dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade', inserindo no Código Penal o artigo 337-E, que tipifica a conduta de 'contratação direta ilegal’, consistente em ‘admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei'.  II - Doutrina e jurisprudência entendem de maneira uníssona que ocorreu a continuidade típico-normativa em relação à primeira parte do art. 89 da Lei nº 8.666/1993, havendo abolitio criminis apenas da segunda parte, relativa à conduta de deixar de observar formalidades pertinentes à dispensa ou inexigibilidade de licitação.” 

Acórdão 1758476, 07090368920198070001, Relator(a): NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 14/9/2023, publicado no DJE: 26/9/2023. 

Abolitio criminis temporária – emprego de arma branca – possibilidade de majoração da pena-base 

“IV - O emprego de arma branca, por não constituir elementar do tipo, ainda que durante a abolitio criminis temporária, pode ser utilizado para majorar a pena-base.” 

Acórdão 1694485, 00022031320178070019, Relator(a): NILSONI DE FREITAS CUSTODIO, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 26/4/2023, publicado no PJe: 9/5/2023. 

Crime de atentado violento ao pudor – inocorrência de abolitio criminis – continuidade típico-normativa 

“1. Não há que se falar em abolitio criminis no que tange à conduta anteriormente descrita no artigo 214 do Código Penal (atentado violento ao pudor), pois o constranger alguém a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal permanece criminalizado, constando agora, contudo, no artigo 213 do Código Penal, impondo-se a aplicação do princípio da continuidade típico-normativa.” 

Acórdão 1620605, 07169414620228070000, Relator(a): ROBSON BARBOSA DE AZEVEDO, Segunda Turma Criminal, data de julgamento: 22/9/2022, publicado no DJE: 5/10/2022. 

Posse de entorpecente para uso pessoal – inocorrência de abolitio criminis  

“4. Conforme jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, bem como do Superior Tribunal de Justiça, com o advento da Lei 11.343/2006, não houve a descriminalização da posse de entorpecente para uso pessoal, apenas o afastamento da pena de prisão, devendo o réu se sujeitar às medidas previstas nos incisos I, II e III do artigo 28 da LAD.”  

Acórdão 1611867, 07273926420218070001, Relator(a): SEBASTIÃO COELHO, Terceira Turma Criminal, data de julgamento: 1/9/2022, publicado no PJe: 16/9/2022. 

  • STJ 

Dispensa de licitação fora das hipóteses legais art. 89 da Lei n. 8.666/1993 – continuidade típico-normativa 

“1. Não houve abolitio criminis da conduta tipificada no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, que permanece integralmente criminalizada pelo art. 337-E do CP, com a superveniência da Lei n. 14.133/2021. A pena prevista no preceito secundário do novo tipo penal é que não pode, por certo, ser aplicada ao presente caso, por ser mais onerosa ao réu, mas não se procedeu à descriminalização das condutas descritas no dispositivo que foi revogado pela novel legis.” AgRg no REsp 2114154 / SP, Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, data do julgamento: 8/4/2024, data da publicação: 11/4/2024. 

Sentença transitada em julgado – extinção da punibilidade – competência do juízo das execuções 

“2. Em se tratando de pedido de reconhecimento de extinção da punibilidade por suposta abolitio criminis, deve ser direcionado ao Juízo das Execuções Penais, nos termos do art. 107, inciso III, do CP, c/c o art. 66, incisos I e II, da Lei de Execuções Penais - LEP. Referida interpretação encontra amparo na Súmula n. 611 do Supremo Tribunal Federal - STF segundo a qual 'transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna'."  AgRg na RvCr 6021 / DF, Relator: Ministro Joel Ilan Paciornik, Terceira Seção, data do julgamento: 13/3/2024, data da publicação: 15/3/2024. 

Alterações na Lei de Improbidade Administrativa – inexistência de reflexos no âmbito penal – independência entre as instâncias administrativa e criminal  

“5. Ainda que assim não fosse, a jurisprudência desta Corte tem-se orientado no sentido de que as instâncias administrativa e criminal são independentes entre si. Portanto, a superveniente alteração da Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), que versa eminentemente sobre direito administrativo sancionador, não possui o condão de conferir abolitio criminis quanto aos delitos previstos no Decreto-Lei n. 201/1967, vez que não houve revogação expressa da norma penal, nem mesmo há que se cogitar em revogação tácita.” AgRg no HC 778404 / SP, Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, data do julgamento: 5/12/2022, data da publicação: 14/12/2022. 

Abolitio criminis temporária da Lei 10.826/2003 – porte ilegal de arma de fogo – inaplicabilidade   

“1. Consoante a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, 'somente as condutas delituosas relacionadas à posse de arma de fogo foram abarcadas pela denominada abolitio criminis temporária, prevista nos artigos 30, 31 e 32 da Lei 10.826/2003, não sendo possível estender o benefício para o crime de porte ilegal de arma de fogo.” AgRg no HC 773889 / SP. Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, data do julgamento: 28/11/2022, data da publicação: 2/12/2022. 

  • STF 

Posse de entorpecente para uso pessoal ocorrência da despenalização da conduta  

“5. De acordo com o entendimento do STF, ao deixar de prever pena privativa de liberdade ao delito de posse de drogas para consumo pessoal, a mencionada Lei procedeu à 'despenalização' da conduta, e não à descriminalização.”  RHC 220083 AgR, Relator: Ministro André Mendonça, Segunda Turma, data do julgamento: 27/11/2023, data da publicação: 31/1/2024.