Obediência hierárquica
Tema criado em 29/3/2021.
Doutrina
"Estabelece o art. 22 do Código Penal: 'Se o fato é cometido (...) em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor (...) da ordem'.
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Obediência hierárquica é a causa de exclusão da culpabilidade, fundada na inexigibilidade de conduta diversa, que ocorre quando um funcionário público subalterno pratica uma infração penal em decorrência do cumprimento de ordem, não manifestamente ilegal, emitida pelo superior hierárquico.
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Essa regra se fundamenta em dois pilares:
(1) impossibilidade, no caso concreto, de conhecer a ilegalidade da ordem; e
(2) inexigibilidade de conduta diversa.
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A caracterização da dirimente em apreço depende da verificação dos seguintes requisitos:
1) Ordem não manifestamente ilegal: é a de aparente legalidade, em face da crença de licitude que tem um funcionário público subalterno ao obedecer ao mandamento de superior hierárquico, colocado nessa posição em razão de possuir maiores conhecimentos técnicos ou por encontrar-se há mais tempo no serviço público.
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Daí falar-se que a obediência hierárquica representa uma fusão do erro de proibição (acarreta no desconhecimento do caráter ilícito do fato) com a inexigibilidade de conduta diversa (não se pode exigir do subordinado comportamento diferente).
Se a ordem for legal, não há crime, seja por parte do superior hierárquico, seja por parte do subalterno. Em verdade, a atuação deste último estará acobertada pelo estrito cumprimento do dever legal, causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 23, III, do Código Penal.
2) Ordem originária de autoridade competente: o mandamento emana de funcionário público legalmente competente para fazê-lo.
O cumprimento de ordem advinda de autoridade incompetente pode, no caso concreto, resultar no reconhecimento de erro de proibição invencível ou escusável.
3) Relação de Direito Público: a posição de hierarquia que autoriza o reconhecimento da excludente da culpabilidade somente existe no Direito Público. Não é admitida no campo privado, por falta de suporte para punição severa e injustificada àquele que descumpre ordem não manifestamente ilegal emanada de seu superior.
Essa hierarquia, exclusiva da área pública, é mais frequente entre os militares. O descumprimento de ordem do superior na seara castrense caracteriza motivo legítimo para prisão disciplinar, ou, até mesmo, crime tipificado pelo art. 163 do Código Penal Militar.
4) Presença de três pessoas: envolve o mandante da ordem (superior hierárquico), seu executor (subalterno) e a vítima do crime por este praticado.
5) Cumprimento estrito da ordem: o executor não pode ultrapassar, por conta própria, os limites da ordem que lhe foi endereçada, sob pena de afastamento da excludente.
A propósito, dispõe o art. 38, § 2.º, do Código Penal Militar: 'Se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos ou na forma de execução, é punível também o inferior'.
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O estrito cumprimento de ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico exclui a culpabilidade do executor subalterno, com fulcro na inexigibilidade de conduta diversa. O fato, contudo, não permanece impune, pois por ele responde o autor da ordem.
Imagine a hipótese de um Delegado de Polícia, com larga experiência em sua atividade, que determina a um investigador de Polícia de sua equipe, recém ingressado na instituição, a prisão em flagrante de um desafeto, autor de um crime de roubo ocorrido há mais de uma semana, em relação ao qual não houve perseguição, fato desconhecido pelo subordinado. O subalterno, no caso, seja em face do restrito conhecimento do caso concreto, seja em respeito ao superior hierárquico, em quem muito confia, não pode ser responsabilizado, devendo o crime ser atribuído exclusivamente ao autor da ordem.
Inexiste, na obediência hierárquica, concurso de pessoas entre o mandante e o executor da ordem não manifestamente ilegal, por falta de unidade de elemento subjetivo relativamente à produção do resultado.
Se, entretanto, a ordem for manifestamente ilegal, mandante e executor respondem pela infração penal, pois se caracteriza o concurso de agentes. Ambos sabem do caráter ilícito da conduta e contribuem para o resultado. Para o superior hierárquico, incide a agravante genérica descrita pelo art. 62, III, 1.ª parte, do Código Penal. E, no tocante ao subalterno, aplica-se a atenuante genérica delineada pelo art. 65, III, 'c' (em cumprimento de ordem de autoridade superior), do Código Penal.
Na análise da legalidade ou ilegalidade da ordem, deve ser considerado o perfil subjetivo do executor, e não os dados comuns ao homem médio, porque se trata de questão afeta à culpabilidade, na qual sempre se consideram as condições pessoais do agente, para se concluir se é ou não culpável." (MASSON, Cleber. Direito Penal: Parte Geral: arts. 1.º a 120. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2013. v. 1. p. 511-513). (grifos no original)
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"Dá-se a obediência hierárquica quando alguém cumpre ordem de autoridade superior, revestida de caráter criminoso, desconhecendo a ilicitude de tal comando que, ademais, não pode ser manifestamente ilegal.
Os requisitos da excludente são, portanto:
1) relação de direito público (hierarquia);
2) ordem superior de cunho ilícito;
3) ilegalidade da ordem não manifesta.
Suponha que o diretor de um estabelecimento penal determine a um carcereiro que algeme um preso, como medida para repreendê-lo por mau comportamento. Cuida-se de ordem ilegal, tendo em vista que o uso de algemas somente pode se dar quando necessário para impedir a fuga, quando houver resistência à prisão ou para garantir a segurança do preso ou de terceiros, hipóteses ausentes no exemplo formulado. Cremos, contudo, que a ilegalidade não é manifesta. Por esse motivo, somente responderá por crime de abuso de autoridade (Lei n. 13.869, de 2019) o superior hierárquico responsável pela determinação.
Registre-se que ao autor da ordem não manifestamente ilegal será aplicada uma circunstância agravante (CP, art. 62, III) e o subordinado será isento de pena (trata-se de outro caso de autoria mediata).
Imagine, ainda, uma ordem emitida por delegado de polícia à sua equipe de investigação para que dê um 'susto' em um rapaz que efetuou proposta indecorosa à sua namorada. Nesse caso, também os subordinados cumprem ordem ilegal emitida por seu superior imediato. O comando, todavia, mostra-se patentemente ilícito, motivo pelo qual todos deverão ser punidos. O autor da ordem, com pena agravada (CP, art. 62, III), e quem a cumpriu, com sanção atenuada (CP, art. 65, III, c, segunda figura).
O Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1.001, de 1969) regula de modo diverso referida excludente. Segundo a legislação castrense, o subordinado (militar) estará isento de pena mesmo que a ilegalidade seja manifesta. Anote-se que este, além de não poder discutir a conveniência ou oportunidade de uma ordem (do mesmo modo quanto o civil), não pode questionar sua legalidade (diversamente do civil), sob pena de responder pelo crime de insubordinação (CPM, art. 163). Ao militar, somente não é dado cumprir ordens manifestamente criminosas. Portanto, se, apesar de flagrantemente ilegal, a ordem não for manifestamente criminosa, o subordinado estará isento de pena (CPM, art. 38, § 2º).
Um dos requisitos para a configuração dessa causa legal de inexigibilidade de conduta diversa é, como acima se destacou, que exista, entre o emissor da ordem e o destinatário, relação de hierarquia, a qual, tradicionalmente, sempre foi apontada como sendo aquela estabelecida no seio de relações jurídicas de Direito Público (leia-se: entre agentes ou servidores públicos).
Argumenta-se que em relações de emprego, fundadas na CLT, existe – juridicamente – um vínculo de subordinação (e não de 'hierarquia'). Em hipóteses envolvendo pais e filhos (estes maiores de 18 anos) e mestres e seus pupilos (igualmente imputáveis) (...) também não se pode falar em hierarquia, pois o Direito Civil descreve tais relações como fundadas no chamado 'temor reverencial'.
Quanto aos casos em que o empregado de uma empresa, por medo de perder o emprego, realiza condutas criminosas, portanto, não pode ser beneficiado com a exclusão da culpabilidade fundada na obediência hierárquica.
De ver, contudo, que o Código Penal deve ser interpretado de maneira sistemática e harmônica e seu art. 149-A, incluído pela Lei n. 13.344, de 2016, ao estipular causas de aumento de pena para o crime de tráfico de pessoas, estipula o acréscimo quando o agente (entre outras hipóteses) se prevalecer 'de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função' (art. 149-A, § 1º, III, parte final). Note, portanto, que o legislador admite a existência de hierarquia em contextos baseados em relação empregatícia. Poder-se-ia contra-argumentar que o emprego mencionado no dispositivo é o emprego 'público'; ocorre, porém, que esse adjetivo não consta da norma e, onde o legislador não distinguiu, não cumpre ao intérprete e ao aplicador da lei fazê-lo.
De mais a ver, existem casos em que a hierarquia se revela muito mais presente no âmbito privado (dado o receio de perder o emprego e, como isso, o sustento familiar, por exemplo) do que na esfera pública (notadamente quando o ocupante de cargo goza de estabilidade). A questão, pensamos, deve ser analisada caso a caso e, portanto, é matéria de prova.
Em face disso, entendemos que, com o advento da Lei n. 13.344/2016, a figura da obediência hierárquica, descrita no art. 22 do CP como causa legal de inexigibilidade de conduta diversa, passa a abarcar situações nas quais se identifica (concretamente) a relação de hierarquia, não só na esfera de relações de Direito Público, mas igualmente no âmbito de vínculos empregatícios." (ESTEFAM, André. Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º a 120. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 332-334).
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"a) Se a ordem for manifestamente ilegal (ilegalidade facilmente perceptível quanto ao seu teor), ambos responderão pelo crime. Em tal caso, a pena do superior poderá ser exasperada em razão da agravante genérica do art. 62, III, do Código Penal, que diz que a pena será agravada quando o agente determinar a execução do crime à pessoa que esteja sujeita à sua autoridade. No entanto, o subordinado que realiza a ação delituosa terá sua pena abrandada nos termos do art. 65, III, c, do Código Penal, 'ter cometido o crime em cumprimento de ordem de autoridade superior'.
b) Se a ordem não for manifestamente ilegal (ilegalidade não perceptível, de acordo com o senso médio), exclui-se a culpabilidade do subordinado, respondendo pelo crime apenas o superior hierárquico." (GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Curso de Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º a 120. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 165).
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"(...) as circunstâncias do caso concreto vão ditar se a ordem era (ou não) manifestamente ilegal." (CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: Parte Geral: arts. 1º ao 120. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2020. p. 378).
Jurisprudência
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TJDFT
Furto qualificado pelo concurso de pessoas – ordem manifestamente ilegal e inexistência de relação de direito público – não caracterização de obediência hierárquica
"1. Inviável o reconhecimento da causa excludente de culpabilidade relativa à obediência hierárquica quando inexiste relação de direito público entre o superior e o subordinado, e quando configurada a manifesta ilegalidade nos atos praticados."
Acórdão 1222287, 20170910004233APR, Relator: CRUZ MACEDO, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 12/12/2019, publicado no DJE: 18/12/2019.
Obediência hierárquica – causa de exclusão da culpabilidade – inaplicabilidade às relações de direito privado
"4 O artigo 22 do Código Penal determina que a obediência hierárquica, como causa de exclusão da culpabilidade, se restringe às relações de Direito Público, sendo inaplicáveis nas relações de direito privado (...)."
Acórdão 1084797, 20120110759867APR, Relator: GEORGE LOPES, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 15/3/2018, publicado no DJE: 27/3/2018.
Obediência hierárquica – ordem não manifestamente ilegal
"I. A excludente de culpabilidade é cabível quando a obediência for a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico. É o caso dos autos."
Acórdão 517376, 20040910155930APR, Relatora: SANDRA DE SANTIS, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 20/6/2011, publicado no DJE: 8/7/2011.