A multiparentalidade e o princípio da proteção integral da criança e do adolescente

última modificação: 2024-05-06T08:56:15-03:00

Tema atualizado em 6/5/2024.

Constituição Federal

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...)

III - a dignidade da pessoa humana; (...)

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90)

“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (...)

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.”

Repercussão geral 

Tema 622 - "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". 

Destaques 

  •    TJDFT 

Reconhecimento de maternidade socioafetiva post mortem – requisitos – posse do estado de filha 

“1. Constituem requisitos para o reconhecimento da filiação socioafetiva a vontade clara e inequívoca da pretensa mãe socioafetiva, de ser reconhecida, voluntária e socialmente, como genitora da parte autora e a configuração da denominada ‘posse de estado de filho’.  (...)  3. Em ação de reconhecimento de maternidade socioafetiva post mortem, restando comprovado que a pretensa filha foi entregue à mãe socioafetiva quando tinha seis meses de idade, que ela providenciou o registro de nascimento da criança e a trouxe para o Distrito Federal com o restante da família, o que foi corroborado pela prova testemunhal, uníssona no sentido de que a falecida sempre tratou a autora como filha e vice-versa, a demonstrar que a autora detinha a posse do estado de filha, merece ser mantida incólume a sentença de procedência do pedido declaratório de reconhecimento da maternidade.  4. A ausência de juntada de fotografias da autora com a mãe, por si só, não inviabiliza o reconhecimento da maternidade socioafetiva, quando tal vínculo resta comprovado pelo conjunto harmônico dos outros meios de prova.”   

Acórdão 1848828, 07133933520218070004, Relatora: ANA CANTARINO, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 24/4/2024, publicado no PJe: 26/4/2024.  

Exclusão do nome do pai e dos avós socioafetivos do registro civil – impossibilidade – reconhecimento de paternidade biológica 

“1. No julgamento do Tema 622 da Repercussão Geral (RE 898.060), o Supremo Tribunal Federal aprovou tese no sentido de que ‘A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios’, abrindo as portas do sistema jurídico brasileiro para a chamada ‘multiparentalidade’, exprimindo clara ruptura com o dogma antiquíssimo segundo o qual cada pessoa tem apenas um pai e uma mãe. 2. Na hipótese, embora reconhecida a paternidade biológica do apelado, tal fato, por si só, não autoriza a retificação do registro civil no tocante à filiação socioafetiva, sobretudo quando contrário aos interesses da criança, que ajuizou o feito, tanto para a investigação da paternidade biológica, quanto para o reconhecimento da paternidade socioafetiva. Assim, reconhecida a multiparentalidade, é indevida a exclusão das informações relativas à filiação socioafetiva no registro do menor.  3. O nome integra a personalidade e sua alteração depende de manifestação expressa do indivíduo, não subsistindo no ordenamento jurídico a possibilidade de impor a modificação do nome de alguém sem a sua concordância.

Acórdão 1820885, 07032810220208070017, Relator: FÁBIO EDUARDO MARQUES, 5ª Turma Cível, data de julgamento: 22/2/2024, publicado no DJE: 15/3/2024.  

Multiparentalidade – impossibilidade de imposição de convivência conjunta da parentalidade biológica e afetiva  

“1. Não há motivo para cassação da sentença, pois a determinação judicial deste e. TJDFT foi cumprida, ao passo que se realizou a aproximação e a convivência entre a filha e os genitores, não logrando esses o êxito na formação do vínculo materno e paterno de afeto.  2. Nos moldes do art. 19 da Lei nº 8.069/1990, ‘é direito da criança e do adolescente a criação e educação no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurando-se em qualquer caso a convivência familiar e comunitária em ambiente que lhe garanta o seu desenvolvimento integral’.   3. Na espécie, verifica-se que a) a adotanda reside com a demandante desde o nascimento; b) existe um vínculo socioafetivo materno entre a adolescente e a adotante, confirmado por estudo psicossocial; c) o lar em que a incapaz reside reúne todas as condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento; d) a adolescente está perfeitamente adaptada à família substituta.   4. Convém destacar que a multiparentalidade consiste na concomitância das filiações biológicas e socioafetivas, não tendo por escopo obrigar ou impor a convivência conjunta do vínculo biológico com o vínculo socioafetivo, mas, sim, de reconhecer a existência fática consolidada da atuação conjunta entre os pais biológicos e socioafetivos na criação e desenvolvimento da criança ou adolescente, o que não restou demonstrado nos autos.”    

Acórdão 1812666, 00042228320128070013, Relatora: ANA MARIA FERREIRA DA SILVA, 3ª Turma Cível, data de julgamento: 1/2/2024, publicado no DJE: 29/2/2024.  

Multiparentalidade – descumprimento de deveres e obrigações pelo pai biológico – parentalidade exclusivamente exercida pelo padrasto – alteração dos assentos de nascimento – possibilidade  

“3. In casu, as partes não controvertem acerca da ausência do exercício da paternidade pelo pai biológico ao longo dos 25 (vinte e cinco) de idade da autora, tampouco sobre o fato de que anotações da parentalidade biológica reaviva signos do constante abandono e descaso suportados pela filha biológica até a vida adulta. Lado outro, restou suficientemente demonstrado o estabelecimento de vínculo de afeto e cuidado recíproco com o padrasto desde tenra idade, de forma exclusiva, sem qualquer participação do pai biológico em tal interregno.   4. Considerando que a multiparentalidade é hipótese excepcional e que deve subserviência ao princípio da dignidade humana, bem assim ao melhor interesse do descendente (Tema 622/STF) e à situação de fato a ela relacionada - coexistência de paternidade biológica e socioafetiva -, na hipótese deve ser mantida apenas os registros de nascimento da autora relacionados exclusivamente à paternidade socioafetiva.”   

Acórdão 1806049, 07290106520228070015, Relator: MAURICIO SILVA MIRANDA, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 24/1/2024, publicado no PJe: 6/2/2024.  

Impossibilidade de restabelecimento do vínculo biológico, após a adoção, para fins meramente patrimoniais 

“2. Diante da nova relação parental constituída, um dos efeitos advindos da adoção é a extinção do anterior poder familiar existente entre o adotando com seu núcleo familiar biológico, de modo a garantir a proteção integral e prioritária do adotando, conforme previsão do art. 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. O restabelecimento do vínculo biológico jamais poderá servir para fins exclusivamente patrimoniais, por se tratar de medida excepcionalíssima e com único fim de resguardar os interesses e a dignidade pessoal do adotado. 4. A tese estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 890.060/SC, em sede de repercussão geral, restou fixada como forma de atender ao melhor interesse da criança, quando esta estiver sujeita à parentalidade socioafetiva - registrada ou não -, de modo a permitir o exercício da pluriparentalidade, com o reconhecimento da parentalidade biológica, em estrita observância aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e paternidade responsável.”   
Acórdão 1168795, 07117396720188070020, Relatora: ANA CANTARINO, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 30/4/2019, publicado no DJE: 13/5/2019. 

Inexistência de vínculo afetivo com a mãe biológica – impossibilidade de reconhecimento de pluralidade parental 

1. Conforme preconizam a Lei n. 8.069/1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente - e a Constituição Federal de 1988, à criança e ao adolescente deve ser despendida proteção integral, com absoluta prioridade à efetivação dos seus direitos fundamentais pela família, comunidade, sociedade e poder público. 1.1. De acordo com o art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente, é também obrigação do poder público inibir que a criança ou adolescente seja objeto de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, bem como de qualquer violação, por ato comissivo ou omissivo, aos seus direitos fundamentais. 1.2. (...) É fato incontroverso a entrega voluntária pela mãe biológica aos Autores da menor, quando ela estava em seus primeiros meses de vida. Além de haver documento assinado e reconhecido em cartório anuindo com a entrega da criança aos adotantes, apenas com o ajuizamento da presente ação em junho de 2017 manifestou-se pela primeira vez a genitora em discordância com a adoção. 4. A perda do poder familiar foi decretada em razão de descumprimento dos deveres parentais, tais quais abandonar a filha menor e a entregar de forma irregular para adoção. (...) 10. A multiparentalidade é instituto criado pela jurisprudência e não previsto expressamente no ordenamento jurídico atual. Foi reconhecida a multiplicidade de vínculos parentais pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 898.060/SC. Em acréscimo, foi também objeto do enunciado nº 09 do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito da Família), segundo o qual a multiparentalidade gera efeitos jurídicos. 11. O instituto permite que a filiação biológica e a filiação socioafetiva sejam reconhecidas conjuntamente. Não obstante, para tanto, é necessária a existência de vínculos afetivos concretos formados tanto na relação de filiação biológica quanto na filiação socioafetiva. O instituto visa acomodar juridicamente uma realidade fática já construída, de vínculos multilaterais. Não é este o caso em apreço. A genitora biológica em nenhum momento demonstrou ter consolidado vínculo afetivo com a menor ao longo do tempo, pressuposto indispensável ao reconhecimento da pluralidade parental. 12. Incabível o reconhecimento de pluralidade de vínculos, uma vez que a adoção implica o rompimento dos vínculos com os ascendentes biológicos do adotando, conforme disposição do art. 41 do ECA.”   
Acórdão 1199941, 00018984720178070013, Relator: ROBERTO FREITAS, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 4/9/2019, publicado no PJe: 18/9/2019. 

Dupla parentalidade afastada – conflitos interparentais – possibilidade de ocorrência de danos à criança 

“4. Conquanto a multiparentalidade seja uma possibilidade jurídica, deve ser perquirida se é a melhor solução para a criança, já que o melhor interesse desta deve ser a prioridade da família, do Estado e de toda a sociedade. 5. (...) 6. A noção de melhor interesse da criança é de cunho subjetivo e não se pode subestimar a ideia de que conflitos interparentais, como os eventualmente gerados pela imposição de uma situação adversa aos desígnios de todos os envolvidos, podem ocasionar consequências mais danosas à criança do que a troca afetiva no exercício da parentalidade e a transformação da estrutura familiar em si. (...)  7. No particular, muito embora o autor (pai registral) não tenha juntado fortes elementos para demonstrar o vício aduzido para a desconstituição da parentalidade, constata-se situação peculiar na qual a narrativa autoral é fortemente respaldada pela versão dos fatos trazida pela genitora, pai biológico e, inclusive, da relatada pela especialista (psicóloga) que subscreve o laudo técnico. Com efeito, ambos os pais (e a genitora) manifestaram categoricamente suas vontades - convergindo no desígnio de alterar os assentamentos da menor de modo a constar apenas a filiação paterna biológica. 8. Ainda no caso específico, diante do cenário revelado (paternidade reconhecida por erro, intenção do pai registral de desconstituição da paternidade, convergência de interesses entre os genitores para regularização dos assentos civis, preservação dos interesses da menor), afigura-se temerária a imposição da dupla parentalidade, sugerida pelo Ministério Público, em antagonismo às vontades manifestadas." 
Acórdão 1181854, 20150610057123APC, Relator Designado: SANDOVAL OLIVEIRA 2ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 5/6/2019, publicado no DJE: 1/7/2019. 

Reconhecimento de maternidade socioafetiva pela madrasta – impossibilidade até que a criança possa se autodeterminar 

“4. Conquanto os arranjos familiares contemporâneos, como expressão da complexidade das relações humanas, façam jus à proteção constitucional inerente ao núcleo familiar, não se divisa lastro apto a legitimar que, vigendo realidade biológica que aponta os genitores de crianças atualmente com 07 e 10 anos de idade, falecida a genitora e unindo-se o pai em segundas núpcias, a madrasta, assumindo a posição de mãe, demande, passados pouco mais de 03 anos do enlace, o reconhecimento da maternidade socioafetiva de molde a formalizar os vínculos que estabelecera com os enteados. 5. A despeito de subsistente vinculação afetiva entre enteados e madrasta que induza a assunção da posição de mãe, vigendo o arranjo familiar há pouco tempo e não tendo as crianças condições de opinarem sobre a sobreposição da vinculação afetiva à sua realidade biológica, não se afigura consoante os princípios da dignidade humana e da autodeterminação que, na preservação do seu melhor interesse, seja acolhida pretensão alinhada pelo pai e pela atual esposa com o viso do reconhecimento da maternidade socioafetiva, pois a preservação do vínculo afetivo independe dessa formalização e não se afigura razoável a definição da vinculação formal proveniente do afeto sem a participação dos infantes por não estarem em condições de opinar sobre fato determinante na sua vida.” 
Acórdão 1178088, 07432710820178070016, Relator: TEÓFILO CAETANO, 1ª Turma Cível, data de julgamento: 5/6/2019, publicado no DJE: 18/6/2019. 

  • STJ        

Possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade 

5. À luz do art. 1.593 do Código Civil, as instâncias de origem assentaram a posse de estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo dessa condição, além do preenchimento dos requisitos de afeto, carinho e amor, essenciais à configuração da relação socioafetiva de paternidade ao longo da vida, elementos indicáveis nesta instância especial ante o óbice da Súmula nº 7/STJ. 6. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos. 7. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, a admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos.” REsp 1704972/CE 

Reprodução assistida – dupla paternidade – possibilidade de registro simultâneo do pai biológico e do pai socioafetivo – melhor interesse da criança 

"1. Pretensão de inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida sem a destituição de poder familiar reconhecido em favor do pai biológico. 2. A adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém, enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e seus parentes consangüíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer será estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material fecundante.' (Enunciado n. 111 da Primeira Jornada de Direito Civil). 3. A doadora do material genético, no caso, não estabeleceu qualquer vínculo com a criança, tendo expressamente renunciado ao poder familiar. 4. Inocorrência de hipótese de adoção, pois não se pretende o desligamento do vínculo com o pai biológico, que reconheceu a paternidade no registro civil de nascimento da criança. 5. A reprodução assistida e a paternidade socioafetiva constituem nova base fática para incidência do preceito "ou outra origem" do art. 1.593 do Código Civil. 6. Os conceitos legais de parentesco e filiação exigem uma nova interpretação, atualizada à nova dinâmica social, para atendimento do princípio fundamental de preservação do melhor interesse da criança. 7. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento RE 898.060/SC, enfrentou, em sede de repercussão geral, os efeitos da paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, permitindo implicitamente o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseada na origem biológica. (...) 9. Reconhecimento expresso pelo acórdão recorrido de que o melhor interesse da criança foi assegurado.” REsp 1608005/SC 

Veja também 

Multiparentalidade – concomitância das filiações biológica e socioafetiva