Multiparentalidade – concomitância das filiações biológica e socioafetiva

última modificação: 2023-10-11T22:31:34-03:00

Tema criado em 17/6/2019.

"1. A paternidade não pode ser vista apenas sob enfoque biológico, pois é relevante o aspecto socioafetivo da relação tida entre pai e filha. 2. As provas dos autos demonstram que o apelante estabeleceu forte vínculo com a menor, tanto que, com o divórcio dos genitores, a guarda e o lar de referência é o paterno. 3. A tese de multiparentalidade foi julgada pelo STF em sede de repercussão geral e decidiu que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica com os efeitos jurídicos próprios. 4. Ante a existência dos dois vínculos paterno-filiais, que não podem ser desconstituídos, a orientação que melhor atende aos interesses das partes, notadamente o da menor, é o reconhecimento de ambos os vínculos paternos: o biológico e o socioafetivo, com as devidas anotações no seu registro civil.
Acórdão 1066380, 20160210014256APC, Relatora: MARIA DE LOURDES ABREU, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 16/11/2017, publicado no DJe: 13/12/2017.

Trecho de acórdão

"Com o advento da Constituição Federal de 1988, verifica-se que o conceito jurídico de família não é mais taxativo e restrito conforme antes previsto, tendo em vista as várias mudanças ocorridas na concepção da entidade familiar.
Os princípios preconizados na Carta Magna provocaram alterações no conceito de família, deixando-o mais aberto, de modo a abranger variadas formas de agrupamento.
Sobre o tema, com base no que se infere no artigo 1.593 do Código Civil, o parentesco é o vínculo jurídico estabelecido entre pessoas que têm a mesma origem biológica; entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro; e entre as pessoas que têm entre si um vínculo civil.

Seguindo essa linha de entendimento, a legislação brasileira admite três modalidades de parentesco; quais sejam, o parentesco consangüíneo ou natural, decorrente de pessoas que mantêm entre si o vínculo biológico ou de sangue; o parentesco por afinidade, existente entre um cônjuge/companheiro e os parentes do outro; e, por fim, o parentesco civil, aquele decorrente de outra origem, que não seja a consangüinidade ou afinidade, conforme consta no artigo 1.593 do Código Civil. (...).

Como exemplo tradicional da última modalidade de parentesco, temos o instituto da adoção. Além dessa, a doutrina e a jurisprudência entendem a parentalidade socioafetiva, cujo fundamento está na posse do estado de filhos e no vínculo social do afeto, também como modalidade do parentesco civil. (...).

O Supremo Tribunal Federal, ao conceder repercussão geral ao tema n. 622, no leading case do RE 898060/SC, entendeu que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios. (...).

Consoante se infere do referido julgado, houve uma mudança no entendimento sobre o tema da multiparentalidade, em virtude da constante evolução do conceito de família, que reclama a reformulação do tratamento jurídico dos vínculos parentais à luz do sobreprincípio da dignidade humana (art. 1º, III, da CRFB) e da busca da felicidade. Entendeu-se que pela necessidade de ampliar a tutela normativa, de modo a atender o melhor interesse da criança e o direito de declaração do genitor/genitora da sua paternidade/maternidade, ainda que os arranjos familiares estejam alheios à regulamentação estatal.
Por tais motivos, concluiu-se que as situações de pluriparentalidade não podem ficar sem proteção, e, ainda que haja vínculo biológico reconhecido, a filiação socioafetiva também deve ser tutelada juridicamente, admitindo-se a possibilidade de coexistência simultânea entre os dois vínculos, biológico e socioafetivo, para todos os fins de direito, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).
Essa eg. Corte, indo ao encontro da tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal, já firmou entendimento sobre a possibilidade do reconhecimento da multiparentalidade. (...).

Destarte, diante da possibilidade de se admitir a coexistência simultânea de vínculo socioafetivo e biológico, com os consequentes efeitos jurídicos, a reforma do decisum é medida que se impõe."

Acórdão 1057315, 20160110175077APC, Relator: JOSAPHA FRANCISCO DOS SANTOS, Quinta Turma Cível, data de julgamento: 25/10/2017, publicado no DJe: 14/11/2017.

Enunciados

Enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil: "A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil."

Enunciado 519 da V Jornada de Direito Civil: "O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais."

Repercussão geral

Tema 622: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios." RE 898060

Acórdãos representativos

Acórdão 1139624, 20160710176515APC, Relator: ESDRAS NEVES, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 21/11/2018, publicado no DJe: 27/11/2018;

Acórdão 1109020, 20130110330594APC, Relator: GILBERTO PEREIRA DE OLIVEIRA, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 11/7/2018, publicado no DJe: 18/7/2018;

Acórdão 1104559, 00032002320178070010, Relatora: GISLENE PINHEIRO, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 20/6/2018, publicado no PJe: 22/6/2018.

Destaques

  • TJDFT

Concomitância de parentalidades socioafetiva e biológica não reconhecida – melhor interesse da criança

"3. A paternidade socioafetiva tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam a criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai/filho. (...). 6. Reconhecer a multiparentalidade no caso em apreço seria homenagear a utilização da criança para uma finalidade totalmente avessa ao ordenamento jurídico. O reconhecimento concomitante é válido desde que prestigie os interesses da criança, o que não ficou demonstrado no processo."
Acórdão 1134318, 20150410109819APC, Relator: CARLOS RODRIGUES, Sexta Turma Cível, data de julgamento: 3/10/2018, publicado no DJe: 6/11/2018.

"2. A prevalência dos interesses da criança é o sentimento que deve nortear a condução do processo em que se discute, de um lado, o direito à manutenção da verdade biológica e, de outro, o direito ao reconhecimento dos vínculos que se estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto, representada pela posse do estado de filho. 3. A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades socioafetiva e biológica não é uma regra, mas uma casuística, passível de rejeição nas hipóteses em que as circunstâncias fáticas demonstrem não ser a melhor opção para a criança, em vista dos princípios da afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável. 4. Se, no caso concreto, resta comprovado o vínculo socioafetivo com a família adotante, ao passo que não se observou o cumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar pela mãe biológica, sobre quem, inclusive, o menor, com 13 (treze) anos de idade, expressou seu desejo de não mais visitá-la, nem ao restante da família, age com acerto o MM. Juiz que decidiu pela destituição do poder familiar da mãe biológica e pela impossibilidade do registro multiparental, em vista do melhor interesse da criança."
Acórdão 1126458, 00050337220148070013, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Sétima Turma Cível, data de julgamento: 26/9/2018, publicado no PJe: 28/9/2018.

Multiparentalidade – excepcionalidade – melhor interesse da criança

"2. Comprovada a verdade biológica da paternidade e o interesse do genitor em exercer a paternidade responsável, com participação ativa na formação da criança, tendo sido impedido por motivo alheio à sua vontade, deve ser este prestigiado. Vale apontar, por outro lado, que a retificação no registro de nascimento da infante em nada impediria ou mesmo seria motivo para prejudicar a continuidade da relação de afeto entre o pai registral e a criança. 3. A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades socioafetiva e biológica não é uma regra, mas uma casuística, passível de rejeição nas hipóteses em que as circunstâncias fáticas demonstrem não ser a melhor opção para a criança."

Acórdão 1140872, 20160610077919APC, Relatora: ANA CANTARINO, Oitava Turma Cível, data de julgamento: 29/11/2018, publicado no DJe: 3/12/2018.

  • STJ

Dupla paternidade em registro de nascimento – possibilidade

"6. A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos. 7. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos.

REsp n. 1.704.972/CE, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 9/10/2018, DJe de 15/10/2018.

"1. Pretensão de inclusão de dupla paternidade em assento de nascimento de criança concebida mediante as técnicas de reprodução assistida sem a destituição de poder familiar reconhecido em favor do pai biológico. (...). 3. A doadora do material genético, no caso, não estabeleceu qualquer vínculo com a criança, tendo expressamente renunciado ao poder familiar. 4. Inocorrência de hipótese de adoção, pois não se pretende o desligamento do vínculo com o pai biológico, que reconheceu a paternidade no registro civil de nascimento da criança. 5. A reprodução assistida e a paternidade socioafetiva constituem nova base fática para incidência do preceito 'ou outra origem' do art. 1.593 do Código Civil. 6. Os conceitos legais de parentesco e filiação exigem uma nova interpretação, atualizada à nova dinâmica social, para atendimento do princípio fundamental de preservação do melhor interesse da criança. 7. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento RE 898.060/SC, enfrentou, em sede de repercussão geral, os efeitos da paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, permitindo implicitamente o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseada na origem biológica. (...)."

REsp n. 1.608.005/SC, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 14/5/2019, DJe de 21/5/2019.

Multiparentalidade – excepcionalidade – melhor interesse da criança

"1. O propósito recursal diz respeito à possibilidade de concomitância das paternidades socioafetiva e biológica (multiparentalidade). 2. O reconhecimento dos mais variados modelos de família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI 4.277/DF). 3. Da interpretação não reducionista do conceito de família surge o debate relacionada à multiparentalidade, rompendo com o modelo binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente. (...) 5. O reconhecimento de vínculos concomitante de parentalidade é uma casuística, e não uma regra, pois, como bem salientado pelo STF naquele julgado, deve-se observar o princípio da paternidade responsável e primar pela busca do melhor interesse da criança, principalmente em um processo em que se discute, de um lado, o direito ao estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito à manutenção dos vínculos que se estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto, representada pela posse do estado de filho. 6. As instâncias ordinárias afastaram a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade na hipótese em questão, pois, de acordo com as provas carreadas aos autos, notadamente o estudo social, o pai biológico não demonstra nenhum interesse em formar vínculo afetivo com a menor e, em contrapartida, o pai socioafetivo assiste (e pretende continuar assistindo) à filha afetiva e materialmente. Ficou comprovado, ainda, que a ação foi ajuizada exclusivamente no interesse da genitora, que se vale da criança para conseguir atingir suas pretensões."

REsp n. 1.674.849/RS, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 17/4/2018, DJe de 23/4/2018.

Referências

Art. 229 da CF;

Art. 1.593 do CC.