Transexual feminina - sujeito passivo da violência doméstica
Tema atualizado em 22/01/2025.
Nota explicativa
A Lei Maria da Penha não distingue orientação sexual nem identidade de gênero das vítimas mulheres. O fato de a ofendida ser transexual feminina não afasta a proteção legal, tampouco a competência do Juizado de Violência/Doméstica e Familiar.
Trecho da ementa
"1 – Se o denunciado, companheiro de vítima transexual que se identifica com o gênero feminino, a agride com barra de ferro e corta os cabelos dela com faca, além de a injuriar e ameaçar, por ciúmes e sentimento de posse, evidenciando a subjugação da figura feminina e violência de gênero, no contexto doméstico e de intimidade familiar, a competência para processar e julgar a ação penal pelos supostos crimes cometidos é do juizado especializado da mulher."
Acórdão 1671958, 0742599-72.2022.8.07.0000, Relator(a): JAIR SOARES, CÂMARA CRIMINAL, data de julgamento: 01/03/2023, publicado no DJe: 13/03/2023.
Acórdãos representativos
Acórdão 1749104, 0733121-06.2023.8.07.0000, Relator(a): GISLENE PINHEIRO DE OLIVEIRA, 1ª TURMA CRIMINAL, data de julgamento: 24/08/2023, publicado no DJe: 05/09/2023;
Acórdão 1680759, 0742389-21.2022.8.07.0000, Relator(a): ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, CÂMARA CRIMINAL, data de julgamento: 22/03/2023, publicado no DJe: 03/04/2023;
Acórdão 1663969, 0702031-77.2022.8.07.9000, Relator(a): SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, CÂMARA CRIMINAL, data de julgamento: 08/02/2023, publicado no DJe: 27/02/2023.
Destaques
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TJDFT
Aplicação da Lei Maria da Penha - vítima transgênero masculino - possibilidade
"1. A expressão “mulher” constante da Lei Maria da Penha alcança todas as pessoas do gênero feminino, inclusive, transgêneros, lésbicas, travestis, transexuais. 2. A vítima, nascida sob o sexo feminino e que se identifica com o gênero masculino (transgêneros), faz jus à proteção deferida pela Lei Maria da Penha."
Acórdão 1797915, 0747254-53.2023.8.07.0000, Relator(a): WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, CÂMARA CRIMINAL, data de julgamento: 05/12/2023, publicado no DJe: 15/12/2023.
Competência do Juizado especializado - vítima mulher transgênero - desnecessidade de alteração do registro civil
"1. Não se confundem identidade de gênero, orientação sexual e sexo biológico. A orientação sexual de um indivíduo diz respeito a como realiza seus afetos, em especial no aspecto sexual, podendo ser, entre outros, heterossexual, homossexual, assexual, bissexual etc. Já o sexo biológico diferencia macho e fêmea, levando em conta a genitália, os órgãos reprodutores, cromossomos etc. do indivíduo. Por seu turno, a identidade de gênero é um conceito psicossocial, ou seja, considera tanto a própria identificação da pessoa de si mesma como a forma como ela é percebida em seu meio. 2. A autoidentificação da vítima como mulher é condição suficiente para sua inserção no gênero protegido pela Lei n. 11.340/2006, especialmente porque não é feita distinção entre mulheres cisgênero e mulheres transgênero, referindo-se o artigo 5º apenas genericamente ao termo mais abrangente 'mulher', bem como utilizando, propositadamente, o termo 'gênero' ao esclarecer a violência doméstica e familiar contra a mulher ('configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial'). 3. Não há que falar em analogia 'in malan partem' na aplicação da Lei Maria da Penha a mulheres transgênero, uma vez que não se trata de "mulher por analogia", mas simplesmente de mulher, que dessa forma se identifica, ainda que possua características biológicas masculinas. 4. Uma vez que a ofendida se identifica como mulher e, por isso, performa com base na expectativa social para o gênero feminino, dessa maneira sendo percebida inclusive perante seu círculo social e pelo suposto agressor, a alteração de seus registros civis representa apenas mais um mecanismo para a expressão e exercício pleno do gênero mulher com o qual se identifica, não podendo ser um empecilho para o exercício de direitos e garantias que lhes são legal e constitucionalmente previstos. 5. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo suscitado (2º Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Ceilândia/DF). (Grifamos)
Acórdão 1663969, 0702031-77.2022.8.07.9000, Relator(a): SILVANIO BARBOSA DOS SANTOS, CÂMARA CRIMINAL, data de julgamento: 08/02/2023, publicado no DJe: 27/02/2023.
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STJ
Concessão de medidas protetivas à vítima transexual - afastamento de critério exclusivamente biológico
"2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha. 3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas. 4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher. 5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é. 6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente - especializado - para processar e julgar a ação penal. 7. As condutas descritas nos autos são tipicamente influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões - segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima - são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas. (...)" REsp 1977124/SP
"2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha.
3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas.
4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher.
5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é.
6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei n. 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente - especializado - para processar e julgar a ação penal.
7. As condutas descritas nos autos são tipicamente influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões - segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima - são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas."
REsp n. 1.977.124/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 5/4/2022, DJe de 22/4/2022.
“Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero” – Recomendação CNJ 128/2022
“(...) RESOLVE Art. 1º Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da Portaria CNJ 27/2021, para colaborar com a implementação das Políticas Nacionais estabelecidas pelas Resoluções CNJ 254/2020 e 255/2020, relativas, respectivamente, ao Enfrentamento à Violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e ao Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário. (...) Art. 2º O Protocolo para julgamento com Perspectiva de Gênero poderá ser adotado no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro". Íntegra do documento