Projetos
Vozes da Paz
O Programa “Vozes da Paz” é uma iniciativa do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT junto às escolas públicas das Regiões Administrativas de Ceilândia e Samambaia do Distrito Federal, desde o ano de 2013, para a capacitação em “Círculos de Paz” articulados a práticas cooperativas, participativas e democráticas com vistas ao enfrentamento da violência no contexto escolar.
O Programa colabora na transformação das relações sociais na escola, criando espaços de diálogo horizontalmente partilhados, desenvolvendo ações para a promoção da paz e incentivando o protagonismo de todos os segmentos da comunidade escolar, por meio da utilização de uma gestão integrada e criativa dos conflitos, sem o uso da violência.
Uma leitura contemporânea da violência demanda a formulação de políticas públicas aptas a veicular um conceito ampliado de paz que, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura - UNESCO, não se revela na mera ausência de guerra, mas na articulação de princípios relacionados à justiça, à democracia, ao respeito e à solidariedade.
No âmbito escolar, a violência é um fenômeno complexo e transversal que extrapola os limites das relações interpessoais, na medida em que não reflete somente os conflitos entre jovens, mas as tensões próprias de um universo integrado por diferentes segmentos: corpo docente e discente, funcionários, direção, entes estatais, pais e comunidade.
Nesse sentido, uma abordagem transformadora de ação comunitária voltada para a paz não pode se limitar à promoção de consensos por meio da mediação entre as partes diretamente envolvidas nos conflitos. É preciso assegurar a abertura de canais democráticos para a prática de diálogos livres de qualquer coerção entre todas as vozes do universo escolar. E é essa paz dialogada e permeada pelas múltiplas vozes que traduz os objetivos do Programa “Vozes da Paz”. Afinal, “Paz sem voz não é paz, é medo”[1].
A capacitação promovida pelo Programa estimula a adoção de dinâmicas de diálogo que envolvem todos os membros da comunidade escolar, em uma estrutura horizontal, circular e de reciprocidade. Para que esses círculos funcionem, é preciso que todos tenham voz e que não haja predominância de interesses de nenhum grupo específico. É um espaço livre de qualquer coerção e julgamento. Além de inspiradores, os resultados surpreendem pelo alcance das transformações que proporcionam: desenvolvimento de cooperação ao invés de competição nos espaços de poder entre alunos e equipes docentes, administrativas e terceirizadas; abertura de canais criativos de comunicação entre alunos que não interagiam porque não pertenciam à mesma “tribo”; democracia participativa na execução de uma parcela do orçamento escolar; uso compartilhado e ecológico do patrimônio escolar – tais como o plantio coletivo de horta orgânica e a limpeza em mutirão; transformação cultural nas esferas da família e da comunidade em geral, com a adoção dos mecanismos pacificadores vivenciados na escola – tais como as mediações e os “Círculos da Paz” –; participação na definição dos valores e princípios que devem pautar as regras de convívio social, dentre outros. As práticas aqui mencionadas resultaram da criação coletiva ocorrida nos “Círculos de Paz” e esse sentimento de pertencimento e protagonismo produzem um impacto saudável na vida social escolar com implicações estatísticas visivelmente positivas no que se refere aos registros de ocorrências de violência, conforme será ilustrado mais adiante.
Como todo o processo de gestão transformadora dos conflitos é público – salvo quando a natureza do conflito interpessoal demanda uma sessão de mediação reservada – a resolução de problemas pela paz e pelo diálogo, sem qualquer traço de violência, passa a integrar um ciclo virtuoso que “contamina” toda a comunidade escolar. Trata-se de uma metodologia que, para além do enfrentamento da violência, constrói a paz do cotidiano, de maneira inclusiva, participativa e solidária.
A repercussão do “Vozes da Paz” na promoção dos Direitos Humanos e da Justiça é inegável. Os conflitos escolares, antes interpretados como obstáculos ao projeto educacional, recebem novos significados e passam a ser abordados como oportunidade de participação e de integração das diversidades. Os “Círculos de Paz” consolidam uma práxis de formação de sujeitos de direito, voltada ao fortalecimento dos segmentos historicamente vulneráveis e à recusa da naturalização da violência e da impunidade. O aprendizado cotidiano que essas novas práticas sociais possibilitam é compartilhado e semeado por uma nova cultura de paz que nada tem a ver com uma ordem imposta pela obediência silenciosa. Trata-se de uma educação para os Direitos Humanos que articula igualdade e dignidade na diferença, por meio da construção de uma ética da alteridade.
Inovação do Programa
A principal inovação do Programa está na capacitação dos membros da comunidade escolar para a promoção dos “Círculos da Paz”, os quais podem ser realizados em sala de aula ou entre os diversos grupos na escola. Nesses espaços democráticos, os participantes encontram um ambiente seguro para trazer ao debate questões que consideram relevantes acerca de seus conflitos, sentimentos, necessidades e identidades. É a partir desse diálogo coletivo que os participantes se sentem aptos a construir soluções que promovam melhoria na qualidade das relações sociais e laborais na escola.
Os “Círculos da Paz” são, pois, recursos adotados para o exercício da ética da alteridade. Essas arenas, constituídas por representantes de todos os segmentos escolares (professores, alunos, funcionários, pais e membros da direção), permitem que as decisões sejam tomadas democraticamente, considerando a perspectiva de cada segmento, sem quaisquer traços de exclusão. O exercício da escuta ativa e o respeito à diversidade promovem um aprendizado desde a educação infantil que pavimenta um novo modo de lidar com os conflitos em nossa sociedade. Quando se adotam mecanismos de resolução de conflitos pautados no diálogo democrático, permitindo que todas as necessidades e identidades sejam reconhecidas e respeitadas, a disciplina – essencial em qualquer processo educativo – não resulta do medo, mas da corresponsabilidade de cada um pela construção de um espaço seguro de autonomia, dignidade e respeito. E é natural que, nesse processo, os índices de violência diminuam porque as vozes, antes caladas, não precisam mais gritar para serem ouvidas. O desenvolvimento da consciência moral, como nos ensina Piaget[2], é fruto das relações de cooperação. A educação para a liberdade, igualdade e fraternidade implica exercício de autonomia e corresponsabilidade. O significado que se confere aos conteúdos escolares dentro da sala de aula deve estar alinhado, pois, à vivência democrática e cidadã que a mediação escolar e os “Círculos da Paz” proporcionam em todo o espaço escolar.
A partir dos diálogos desenvolvidos nos círculos, a comunidade escolar planejou e executou diversas práticas inovadoras para atender às demandas identificadas pela própria comunidade escolar. É possível citar, a título de exemplo, o seguinte:
- Mediação Escolar: quando se constatam conflitos interpessoais – provenientes ou não dos diálogos ocorridos nos “Círculos de Paz” – os mediadores capacitados pelo Programa “Vozes da Paz” são solicitados a promover a mediação entre os envolvidos no conflito.
- Mensageiros da Paz: grupo de alunos representantes de todas as turmas, com responsabilidade de mediar conflitos de maneira colaborativa e construtiva, bem como de disseminar mensagens e práticas de paz por toda a escola.
- Gincanas da Paz: desenvolvimento de ações voltadas para a cultura de paz com o envolvimento de todos os participantes da escola, promovendo o empenho diário dos alunos, professores e funcionários no que se refere ao respeito mútuo, à realização das tarefas e à preservação do ambiente escolar, gerando melhoria no relacionamento entre alunos, professores e funcionários da limpeza.
- Rádio Vozes da Paz: espaço promovido pelos membros do “Círculo Escolar” com o objetivo de divulgar a importância da construção da paz na escola, por meio de vinhetas, mensagens, textos para reflexão e entrevistas sobre a temática da paz.
- Correio da Paz: painel com vários compartimentos, contendo o nome de funcionários e professores para a troca de mensagens entre si, favorecendo a integração e a abertura de novos canais de comunicação.
- Painel da Paz: painel com cartazes para o registro das mensagens sobre temas relevantes, adotando-se as técnicas da comunicação-não-violenta.
- Galera amistosa: projeto de jogos entre as diversas turmas da escola, com o objetivo de promover a integração de alunos de turmas diferentes, a valorização do trabalho em equipe e o desenvolvimento de valores importantes para a convivência pacífica.
- Intervalos culturais: utilização da quadra de esportes para a realização de jogos e eventos musicais durante o intervalo, o que torna a escola mais atrativa para os alunos, direcionando e organizando o momento do intervalo e, consequentemente, colaborando na redução da violência e da evasão escolar.
- Teatro: recurso utilizado para a divulgação do Programa e apresentação de peças relacionadas à temática da paz.
- Abraço Grátis: atividade que promove integração, socialização dos alunos e manifestação de afeto no momento de chegada na escola.
- Horta Comunitária: utilização de espaços escolares até então ociosos para o cultivo de hortaliças, com o objetivo de melhorar a qualidade dos alimentos oferecidos na escola, mas fundamentalmente para ser utilizada como ferramenta pedagógica para a construção cooperativa, a aprendizagem pela interação e o desenvolvimento de consciência ambiental.
Processo de implementação
O então “Projeto Vozes da Paz” foi elaborado a partir de uma experiência piloto realizada no biênio de 2013/2014, nos Centros de Ensino Fundamental nº 20 e nº 35 em Ceilândia. Após a avaliação da experiência piloto, optou-se por sua execução por um período de três anos, dividido em quatro etapas: a) apresentação inicial do projeto às escolas e planejamento das ações; b) capacitação dos membros da comunidade escolar interessados no projeto, os quais passam a integrar o “Círculo Escolar”; c) execução do projeto com a participação dos diversos segmentos escolares; d) consolidação do projeto por sua inserção no plano pedagógico da escola, assegurando a sua sustentabilidade e gestão autônoma, sob a supervisão da equipe do “Vozes da Paz” do TJDFT.
Dificuldades encontradas
Sustentar o envolvimento efetivo dos diversos segmentos escolares no Projeto, em especial os membros da direção e os pais. Quando os professores se mostram desmotivados, em geral, recebem a proposta como mais uma fonte de sobrecarga. O desafio é demonstrar que o Programa pode ser uma oportunidade de desenvolvimento de um trabalho cooperativo, o que implica redução de pressões e sobrecarga de um lado e, de outro, mais autonomia, respeito e escuta dos alunos. Nesse sentido, a experiência positiva experimentada pelos professores, direção e alunos que já atuam com o Programa é fundamental para o convencimento dos integrantes das demais instituições de ensino.
Além disso, outro obstáculo enfrentado é a dificuldade do acesso aos dados escolares, bem como a heterogeneidade e subjetividade no registro dos dados para a realização de pesquisas empíricas a fim de checar a efetividade do Programa e apontar caminhos para melhorias.
Recursos envolvidos na prática
- Infraestrutura: espaço nas escolas para realização das reuniões dos “Círculos da Paz” e das mediações escolares.
- Equipe: São responsáveis pela implantação do Programa 4 servidores que fazem o acompanhamento e supervisão do Programa nas escolas participantes.
- Outros recursos: vídeos instrucionais, material de leitura, peças teatrais.
- Parceria: O referido Programa é uma parceria entre o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT e o Governo do Distrito Federal – GDF, por intermédio da sua Secretaria de Estado de Educação – SEDF.
- Equipamentos/sistemas: Computador e datashow;
- Orçamento: Não houve destinação orçamentária específica para implantação deste Programa.