Depressão como sintoma social

por pro-vida — publicado 2020-09-15T14:50:38-03:00


O aumento de casos de depressão pode estar atrelado ao nosso contexto social, ainda mais em tempos de pandemia. Estarmos isolados em nossa casa sem a experiência de um encontro ‘real’ com um corpo, rotinas muitas vezes extenuantes sem horários definidos e um futuro indefinido são fatores que refletem sintomas da sociedade.
Maria Rita Kehl, psicanalista, em seu o livro “O Tempo e o Cão” (ed. Bomtempo, 2010), reflete sobre a depressão dizendo que “A aceleração da experiência com o tempo e o imperativo do gozo e da felicidade , ao contrário do que parece, esvaziam a busca de um sentido [construído pelo sujeito] para a vida".
Kehl sugere que o aumento das depressões está atrelado a:
• “as condições de trabalho”, que favorecem a não cooperação e a competição;
• “as demandas impostas pelo capitalismo nos dias de hoje, com sua ênfase no consumo”, levam o indivíduo a achar que pode comprar a felicidade no shopping mais perto de casa;
• “ao máximo aproveitamento do tempo”, onde as férias e o dia a dia são estabelecidos em uma agenda tão rígida que não cabe nem um momento de ócio que favoreça o despertar da criatividade.
Os depressivos estariam nos mostrando que este mundo onde o ideal de bem-estar está baseado no consumismo, na urgência, e na privação do sono, não admite a existência do sofrimento inerente à vida humana. "O depressivo geralmente se instala em uma lentidão, quando não em uma paralisia, que o impede de compartilhar quase todas as atividades da vida com seus pares. Se por um lado esse sintoma pode ser entendido como uma denúncia, por outro lado a reação do depressivo é passiva e não produz nada, a não ser sofrimento", explica Kehl. Portanto, não há espaço para o depressivo estar nesse mundo se ele não mudar e se encaixar em um comportamento parecido com os demais. O que vai fazer com que o sofrimento se torne sintoma de depressão está muito mais relacionado em como ele experiencia o sofrimento do que com as causas do sofrimento em si.
Christian Dunker, psicanalista, cita como exemplo o desemprego, que na França tem uma relação direta com o aumento dos casos de suicídio. Uma pessoa que fica desempregada tem mais chances de se matar? Não necessariamente. "Mas, isso se torna conexo na medida em que você perde certas referências para interpretar a situação de desemprego. Ele é lido como um fracasso moral e individual, como uma espécie de insuficiência do sujeito para gerir sua carreira, e isso acaba favorecendo a depressão como uma espécie de resposta", afirma. Muitas vezes a causa do suicídio não é a depressão em si, mas sim a perda do sentido da sua vida.
Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl, essa "disparada" na venda de antidepressivos é produto do bombardeio da indústria farmacêutica, em folhetos espalhados nas salas de espera de consultórios. "Nesses [folhetos], os sintomas de depressão são listados de modo que a pessoa possa se 'autodiagnosticar'. Ao chegar na sala do médico, que dispõe de 10 minutos para atendê-la, ela tem sua queixa diagnosticada: 'doutor, sofro de depressão'. O que faz o médico assoberbado pelo excesso de trabalho? Duas ou três perguntas iguais aos dos folhetos dos laboratórios farmacêuticos, seguidas de uma receita de antidepressivo. Se o sujeito começa a tratar seu sofrimento só com medicamentos e nunca passa pela experiência de uma terapia da fala, tem grandes chances de se tornar um depressivo crônico", analisa. Ver a depressão como sintoma social não vai fazer com que o tratamento seja um único e geral para todos, mas torna-se necessário contextualizar o indivíduo com suas particularidades em um mundo social, onde a causa pode estar sim no indivíduo, mas também no contexto em que está inserido. Segundo Dunker: "Eu bato nessa tecla porque o discurso é 'isso não tem nada a ver com a sua vida, tem a ver com o seu cérebro, com a sua genética'. E tem a ver mesmo, mas não de uma forma que torne independentemente de como você está com o outro, com o seu desejo, com a sua corporeidade", explica. É necessário “trabalhar a recuperação da apropriação do sujeito do seu próprio mal-estar, que é o primeiro passo de todo tratamento. É você dizer para a pessoa que ela pode agir sobre a doença dela, procurando um psiquiatra, utilizando a medicação, falando disso com um terapeuta, com familiares e amigos. Olha a quantidade de coisas em jogo quando falamos sobre como lidar com a depressão", afirma Dunker. Enfim, precisamos permitir que os sofrimentos da vida não se tornem doenças.

Autoria: Carla Lemos – Psicóloga e integrante da equipe de qualidade de vida do TJDFT