Entre ser louco e ser normal, resta-nos o desconhecimento no campo da saúde mental

O campo da saúde mental ainda é um território obscuro e cheio de estigmas para a maior parte das pessoas. Atualmente, na nossa cultura, propaga-se o cuidado com o corpo e com o meio ambiente. Sabemos da importância da realização de exames periódicos, da necessidade de exercícios físicos, de uma alimentação equilibrada, da necessidade de reciclarmos o lixo, da crise hídrica, do aquecimento global, mas parece que não se fala muito e ninguém compreende muito bem o campo da saúde mental.
por PRÓ-VIDA — publicado 2018-06-12T18:56:00-03:00

 

 

Nosso imaginário da loucura ainda é muito emblemático. Ao mesmo tempo, em que nos remete ao chamado “louco de pedra”, aquele que está totalmente fora da realidade e que costumávamos confinar nos antigos asilos, também nos remete a alguns ícones das artes ou mesmo da ciência. É o caso de John Nash, que teve a vida retratada no filme “Mentes Brilhantes”, Van Gogh, Beethoven, Goya, como tantos outros gênios que não tiveram uma vida muito normal. Fica dentro de um mesmo balaio pessoas com poucos recursos e pessoas brilhantes. Afetos extremos, descontrole, perda da razão e suicídio são atrelados a loucura, que se torna assustadora e também enigmática. Consequentemente, mantemos na nossa cultura os pré-conceitos e o desconhecimento acerca dos adoecimentos mentais. 

Por outro lado, se não nos reconhecemos nesse campo da loucura, tendemos a nos apropriar do termo normal para dizer que estamos bem. Contudo, será que a ideia de normalidade nos auxilia a compreender a saúde psíquica?  

Primeiramente, estar normal seria funcionar dentro da norma e a questão então seria qual norma adotarmos. Poderíamos pensar a norma como um critério estatístico. O normal seria definido a partir daquilo que está presente na maioria das pessoas. Contudo, facilmente, vemos que este critério é um tanto equivocado. Basta percebemos que desta forma, ter cárie, seria considerado normal e, poderíamos chegar ao absurdo de também ser considerado dentro da normalidade ter depressão pelo menos uma vez na vida, já que tem crescido consideravelmente o número de pessoas acometidas por esse transtorno.

Uma outra forma de compreender o que seria normal nos remete ao conceito de adaptação, mas também tem suas complicações. Não podemos afirmar que estar adaptado implica estar saudável. Sabe aquelas histórias que nos inquietam do tipo Fulano tem tudo, tem um bom trabalho, uma família linda, casa própria, parece dar conta das demandas da nossa sociedade e está tendo ataques de pânico? Ou mesmo aquela pessoa que também parece adaptada e que não tem nada que indique que ela tem um adoecimento mental? Está tudo normal, mas ela não se sente uma pessoa feliz ou satisfeita.

Existem diversos tipos de adaptações, inclusive aquela que se faz passando por cima dos nossos desejos e que pode nos levar a perda da nossa sensibilidade ou da nossa espontaneidade. Considerá-las como dentro da normalidade seria patologizar o normal, pois estão longe de refletirem vidas saudáveis.

Atualmente, temos vários autores que abordam essa patologia do normal. O termo ‘normose’ foi criado para designar o conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida. No campo da psicopatologia, o termo ‘normopatia’ tem sido usado para designar personalidades que se caracterizam por sua extrema normalidade em função do seu conformismo com as normas sociais. Trata-se de pessoas pouco imaginativas, pouco criativas e, geralmente, insensíveis ao sofrimento alheio. Portanto, existem casos de pessoas muito bem adaptadas, mas que, pelo menos do ponto de vista psíquico, não estão saudáveis.

Enfim, a ideia de normalidade nos parece um tanto vaga e carregada de concepções ideológicas. Assim, não explica o que é estar saudável. Precisamos nos descolar desse imaginário do louco e do normal para compreendermos o campo da saúde mental. Daí sim será possível criarmos uma cultura de cuidados nessa esfera.

 

Fernanda Maria de Lacerda - psicóloga do Núcleo Psicossocial Institucional/ SESA

(fernanda.lacerda@tjdft.jus.br)