Suicídio é responsável por 800 mil mortes anuais e avança pelos países

Segundo especialistas, para enfrentá-lo, é preciso falar abertamente sobre sofrimentos e transtornos mentais
por PRÓ-VIDA — publicado 2018-09-04T18:55:00-03:00

Quando os dois primeiros parágrafos deste texto terminarem de ser lidos, uma pessoa terá morrido por suicídio. A cada 40 segundos, alguém no mundo interrompe a própria vida. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de óbitos autoprovocados é significativamente maior que aqueles causados por homicídio: 800 mil por ano, contra 470 mil. São mortes prematuras que poderiam ser evitadas porque é possível preveni-las e não faltam ferramentas para isso. Contudo, as taxas continuam avançando, especialmente em países pobres e em desenvolvimento. Para especialistas, esse fenômeno complexo, que exige abordagens em múltiplas frentes, só poderá ser efetivamente enfrentado quando se derrubar o preconceito contra doenças mentais.

Por muito tempo, evitou-se falar sobre suicídio. Como um segredo familiar varrido para debaixo do tapete, ele ficou invisível, porém sempre à espreita. Como era de se esperar, o silêncio não curou essa chaga social. Na década de 1960, fundou-se a Associação Internacional de Prevenção do Suicídio, maior organização não governamental de atuação nessa área. Desde então, foi criado o Setembro Amarelo, data mundial de conscientização sobre o problema, e campanhas passaram a falar mais abertamente sobre o tabu.

Porém, para o psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, diretor e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), isso não basta. “A forma de abordagem ainda é preconceituosa. As pessoas não querem aceitar que a doença mental existe. Mas é preciso deixar claro que suicídio é uma emergência médica. Quase 100% das pessoas que tentaram ou se suicidaram têm um quadro psiquiátrico. E são doenças mentais tratáveis. É o preconceito que estrangula a prevenção”, destaca.



Tratáveis

Uma revisão de casos conduzida pela OMS com dados de 15.629 suicídios ilustra bem essa situação: 35,8% das vítimas tinham transtorno de humor; 22,4% eram dependentes químicas; 10,6% tinham esquizofrenia; 11,6%, transtorno de personalidade; 6,1%, transtorno de ansiedade; 1%, transtorno mental orgânico (disfunção cerebral permanente ou temporária que tem múltiplas causas não psiquiátricas, incluindo concussões, coágulos e lesões); 3,6%, transtorno de ajustamento (depressão/ansiedade deflagradas por mudanças ou traumas); 0,3%, outros distúrbios psicóticos, e 5,1%, outros diagnósticos psiquiátricos. Os 3,1% restantes não significam ausência de doença mental, mas a falta de um diagnóstico adequado.

Todos esses transtornos são tratáveis com acompanhamento psiquiátrico e psicológico. Porém, esbarram no preconceito não só de pacientes, mas de familiares e até de profissionais da saúde. “Em pleno século 21, tem gente que ainda acredita que psicólogo é coisa de doido”, lamenta Sílvia Raquel S. de Morais, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). “Muitos pensam erroneamente que é melhor evitar falar do assunto, quando, na verdade, promover espaços para discussões e desmistificação de problemas mentais é algo muito importante e necessário, tendo em vista os modos de vida contemporâneos quase sempre centrados na solidão, nas distrações digitais, no individualismo e na competitividade exacerbada”, aponta a psicóloga, coautora de um artigo sobre representações suicidas, publicado na revista Psicologia, ciência e profissão.

Democrático

São sofrimentos e questões que podem afetar pessoas de qualquer nacionalidade, gênero, idade, classe social. A universalidade do suicídio não poupa celebridades, como o chef norte-americano Antony Bourdain, morto na França no início do mês, nem cidadãos anônimos, como os indígenas de São Gabriel da Cachoeira (AM), onde a taxa de mortalidade por essa causa entre a população adulta é 22,7 — quase quatro vezes maior que a média nacional (5,7 em cada 100 mil habitantes, segundo o Ministério da Saúde). “A doença mental é absolutamente democrática”, define o psiquiatra Humberto Corrêa, presidente da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (Abeps). “O suicídio está diretamente associado às doenças mentais e é 100% prevenível”, observa.

Um exemplo que o psiquiatra cita é a diminuição de casos na Grã-Bretanha. Há 12 anos, a taxa de suicídio na Inglaterra e no País de Gales está em queda e, em 2016, reduziu 4,7% em relação ao ano anterior, atingindo o menor nível desde 2011 (9,5 em cada 100 mil e 11,8 em 100 mil, respectivamente). Apenas a Escócia registrou um leve aumento em 12 meses, passando de 14 para 15 casos em 100 mil. A redução geral na incidência é atribuída à política de prevenção, que inclui a revisão quinquenal de metas e estratégias e a identificação periódica dos grupos de risco de acordo com cada região. Um estudo publicado na revista The Lancet Psychiatry mostrou que a adoção de cada uma das 16 recomendações do Serviço Nacional de Saúde Britânico, como treinamento de profissionais da saúde para gerenciamento de risco, está associada a uma queda de 20% a 30% nas taxas de suicídio.

Estratégias com foco em públicos específicos estão conseguindo diminuir as estatísticas de mortalidade, o que reforça a ideia de que é possível prevenir o suicídio com políticas adequadas. Nos Estados Unidos, onde os óbitos autoprovocados aumentaram 30% desde 1999, o Programa de Prevenção de Suicídio Juvenil Garrett Lee Smtih (GLS), financiado pelo governo federal e voltado a adolescentes e jovens de até 25 anos, resultou em reduções significativas nessa população.



Um estudo publicado na revista Jama Psychiatry avaliou o impacto do GLS entre 2008 e 2011 e constatou que, comparado aos estados em que não foi implementada, a iniciativa evitou cinco tentativas em cada mil pessoas de 16 a 23 anos. O programa consiste em ações como identificação de estudantes em risco de depressão, outras doenças mentais e abuso de álcool e drogas; redução de estigma, atendimento, tratamento e acompanhamento desses jovens por até três anos.


Mais casos no Brasil

O Brasil não tem um plano nacional de prevenção de suicídio, documento previsto apenas para 2020, quando o país deverá comprovar redução de 10% na taxa de suicídio, conforme compromisso firmado com a OMS. O primeiro boletim epidemiológico sobre o tema, porém, mostra que a realidade brasileira caminha na direção contrária. Lançado no ano passado,  durante a apresentação da Agenda Estratégica de Prevenção do Suicídio (veja quadro), o levantamento mostra que a taxa em 100 mil aumentou de 5,3, em 2011, para 5,7, em 2015.
Esses números podem ser ainda maiores. O Sistema de Informação de Mortalidade do Ministério da Saúde depende dos dados enviados por municípios e estados e, de acordo com especialistas, há subnotificação. “Quantos casos não entram como envenenamento, atropelamento, acidente, intoxicação?”, questiona o diretor e superintendente técnico da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), Antônio Geraldo da Silva. Mesmo se houver subnotificação, o boletim nacional revela dados preocupantes, afirma o psiquiatra Quirino Cordeiro, coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do ministério. “Nos últimos anos, houve um aumento importante nas taxas de suicídio, o que liga o sinal de alerta do ministério.”

DF

Nem o Governo do Distrito Federal nem o Ministério da Saúde souberam informar a taxa de suicídio do DF, que registrou, até maio deste ano, 41 casos (em 2017, foram 167, contra 151 dos 12 meses anteriores). Em 2014, a Secretaria de Vigilância em Saúde chegou a lançar o Plano Distrital de Prevenção. O documento, contudo, jamais saiu do papel. O Conselho Distrital de Saúde não aprovou o texto, que está sendo refeito e deve ser apresentado em setembro, de acordo com a psiquiatra da Secretaria de Saúde do DF Fernanda Benquerer.
Antônio Geraldo da Silva reprova o que considera ausência de políticas efetivas de prevenção e acompanhamento, tanto em nível federal quanto distrital. “Não há nada quanto à redução de preconceito, nada de posvenção (cuidados com sobreviventes do suicídio, tanto pacientes que tentaram o ato quanto familiares enlutados), isso é falta de interesse.”
FONTE: Correio Braziliense