O caso João Cláudio - Juíza Valéria Motta Igrejas

Juíza Valéria Motta Igrejas
por ACS — publicado 2000-10-13T23:00:00-03:00
Mais uma vez a Justiça do Distrito Federal é vítima da desinformação.
Trata-se do caso João Cláudio, cujas circunstâncias da morte causaram forte e justificada indignação pública. É realmente triste e assustador assistir à morte prematura e violenta de um jovem bonito, saudável e bem quisto pelos que o cercavam.
Compreende-se, por isto mesmo, a revolta da sociedade, preocupada com a crescente onda de violência, e o desespero da família da vítima, especialmente de seus pais. A estes pouco importa a solução jurídica que ao caso se vier a dar: nada trará João Cláudio de volta (nem mesmo a pretendida condenação a 30 anos de reclusão dos dois rapazes que agrediram o rapaz).
Mas é preciso que a sociedade seja informada do que realmente aconteceu na madrugada daquele 8 de agosto, das implicações das condutas dos acusados, do que diz a lei a respeito do assunto, para que, aí sim, possa posicionar-se livremente diante do fato.
Não é, porém, o que vem ocorrendo. A imprensa vem publicando meias verdades sobre o caso, fazendo com que a sociedade revolte-se não só com a decisão, mas com a própria Juíza Leila Cury, que desclassificou o crime imputado aos dois agressores de João Cláudio. Tal atitude impede a formação livre da opinião pública sobre o fato, até mesmo para validamente criticar a decisão da Juíza. Por outro lado, coloca-se o Juiz contra o cidadão, o que também não beneficia ninguém. Mas vende-se o jornal e aumenta-se a audiência.
Tive acesso aos autos do processo que trata da morte de João Cláudio; li e reli o laudo de exame cadavérico, os interrogatórios dos acusados, as declarações das testemunhas e a polêmica decisão. Tenho lido, também, diariamente, os jornais da cidade.
Impressiona a forma como os fatos são distorcidos pela mídia, a quem foi fornecida cópia integral da decisão de 19 laudas e não publicou uma linha sequer do real conteúdo da clara decisão da Juíza. Não se trata de texto recheado de termos jurídicos e de difícil compreensão; qualquer leigo, ainda que não pudesse compreender profundamente a matéria (que não é fácil), pode entender o que ali está escrito e extrair as razões de decidir.
A decisão começa por indicar as 04 opções que tem o Juiz Presidente do Tribunal do Júri após o final da instrução, conforme dispõem os artigos 408 a 411 do Código de Processo Penal: pronúncia, impronúncia, desclassificação e absolvição sumária. Afastadas de pronto, como é óbvio, as possibilidades de impronúncia e de absolvição sumária, a Juíza inicia uma análise sobre o nó górdio da questão, que é da vontade dos autores das agressões que levaram João Cláudio à morte. Tal análise é de fundamental importância porque, adotada por nossa legislação a teoria finalista da ação e prevendo o nosso Código Penal a figura do crime de lesões corporais seguidas de morte, que difere do homicídio justamente em razão da vontade o autor, a tipificação do crime, no caso, irá variar de acordo com o elemento subjetivo que moveu os agressores.
Para tanto as circunstâncias do crime são importantíssimas.
Tem se publicado que João Cláudio foi espancado até a morte.
João Cláudio morreu sim em conseqüência dos três socos que levou de um dos acusados. O laudo de exame cadavérico, em consonância com o interrogatório dos acusados e os depoimentos das testemunhas, deixa claro o nexo de causalidade entre a agressão e a morte, mas afasta por completo o tal espancamento. Tal fato é ressaltado pela Juíza em sua decisão, quando transcreve que os peritos constataram, ao exame externo do corpo da vítima, escoriações na face típicas das agressões narradas pelos acusados e pelas testemunhas; havia, ainda, uma ferida contusa medindo 1,5 cm na região frontal direita. Ao exame interno, os peritos constataram ausência de fraturas de calota e/ou base cranianas; hemorragia intracraneana, no cerebelo e no tronco cerebral; não foi verificada ?nenhuma alteração macroscópica? na região cervical, nenhuma alteração macroscópica no coração; foi constatada ausência de lesões traumáticas intratorácicas e intraabdominais. No estômago encontrou-se ?líguido claro de odor sugestivo de álcool com grumos alimentares sólidos?.
Conclui-se que, ao sair da boate em que todos se encontravam, vítimas e agressores, que não se conheciam, desentenderam-se por conta de uma paquera e iniciaram uma discussão típica de jovens movidos pelo efeito do álcool. Um dos acompanhantes da moça paquerada efetuou 3 socos em João Cláudio e foi-se embora, deixando-o caído mas ainda com vida, conforme narrou uma das testemunhas, que é Oficial do Corpo de Bombeiros do DF e, portanto, tem conhecimento técnico para fazer tal afirmação. Lamentavelmente aqueles socos provocaram na vítima o que os peritos chamam de hematoma subgaleal que, por sua vez, causou uma hemorragia no interior do cérebro, vindo a causar a morte.
Tudo isto consta da decisão com riqueza de detalhes.
Dentro deste contexto, a grande quantidade de álcool ingerida pelos acusados e pelas vítimas, a ausência de animosidade anterior entre eles e a pequena quantidade de lesões constatadas pelo laudo de exame cadavérico foram, em linhas gerais, as razões pelas quais a Juíza concluiu que os acusados não pretendiam o resultado morte nem tão pouco o toleraram. E faz ela alusão ao caso dos algozes de MARCO ANTÔNIO VELASCO, que foi, este sim, vítima de brutal espancamento por motivo de vingança. Quando estive lotada no Tribunal do Júri de Brasília tive a oportunidade de ter em mãos estes autos. São situações totalmente diversas, apesar de em ambos os casos os agressores terem se utilizado das mãos para agredir. Ocorre que Marco Antônio Velasco não tinha, quando morreu, um osso inteiro; João Cláudio não tinha um osso quebrado.
Não quero com isto dizer que para a caracterização do espancamento é necessário um número mínimo de ossos quebrados. Mas é um fator a ser considerado.
Registro isto porque a mídia tem dito e publicado que a Juíza ?absolveu? o acusado ?porque ele chorou?.
O que a Dra. Leila ressaltou, de passagem, em sua decisão, após te-la fundamentado com os argumentos acima mencionados, foi o fato de uma das testemunhas ter dito que o agressor de João Cláudio soube de sua morte ao assistir o noticiário da TV, entrou em desesperou e chorou. E desespero, perplexidade diante do resultado e choro não são, no entendimento da Juíza, condutas de quem quer o resultado morte ou de quem o tolera, mas sim de quem espera ou confia levianamente que ele não ocorra.
Pinçou-se, assim, uma frase dentro de uma decisão de 19 laudas e publica-se como sendo a razão de decidir.
Outras distorções do mesmo gabarito foram publicadas; basta a leitura da decisão.
Não me propus, quando comecei, a fazer a defesa da colega ou de sua decisão. Terminei por faze-lo. Não pela amizade e o respeito que tenho pela Juíza e sua postura corajosa no exercício da magistratura. Creio mesmo que minha conduta tem um ?que? de defesa própria, pois ontem foi a Dra. Sandra de Santis e a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça quando desclassificaram o crime imputado a 4 rapazes no chamado caso do índio; hoje é a Dra. Leila. Amanhã posso ser eu.
Assusta saber que à imprensa interessa mais vender o jornal ou aumentar a audiência do que propriamente informar. Nenhuma carta ou opinião favorável à decisão foi publicada. E elas existiram. Quem informa são funcionários do Tribunal e estudantes de direito que discutiram o assunto em sala de aula e enviaram suas opiniões aos jornais; e a AMAGIS, que divulgou nota oficial a respeito do assunto, sem que qualquer órgão da imprensa tenha feito referência a ela.
O caso revela, ainda, mais uma vez que é preciso rever o relacionamento da Magistratura com a imprensa, que não teve interesse em publicar os verdadeiros fundamentos da decisão.
É preciso dizer à opinião pública que o Tribunal do Júri somente julga crimes dolosos contra a vida; que quando não se tem indícios razoáveis acerca da vontade de matar, quem julga não é o Tribunal do Júri, mas o Juiz togado; que nestes casos o Juiz Presidente do Tribunal do Júri não absolve, mas remete o processo para outro Juiz, por força de um artigo da lei; que se houvesse dúvida quanto à vontade do agressor, o processo permaneceria no Tribunal do Júri e os réus seriam julgados pelo Conselho de Sentença; que ainda assim existiria a possibilidade de o crime ser desclassificado para lesões corporais seguidas de morte; que a quantidade da pena abstratamente prevista pela lei não é de responsabilidade do Juiz, mas do legislador; que o Juiz não julga com base no que publicam os jornais; que a isenção do Juiz é a sua própria garantia; que Justiça não é sinônimo de vingança.
O Estado Democrático de Direito e o respeito às instituições agradeceriam se a imprensa assumisse, ao menos em parte, este grande papel de esclarecimento público ou ao menos permitisse que os Juízes não tivessem suas decisões publicadas de forma distorcidas.


*Valeria Motta Igrejas
Juíza de Direito do Tribunal do Júri do Fórum de Samambaia