Violência doméstica: a face boa da retratação - Desembargador Mário Machado

por ACS — publicado 2007-08-20T00:00:00-03:00
Mario Machado

Desembargador do TJDFT, é presidente da Primeira Turma Criminal

Fruto das denominadas ações afirmativas, que buscam inserir no sistema jurídico mecanismos niveladores de desigualdades, surgiu a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Maria da Penha. Reconhecendo a mulher como vítima contumaz da violência de gênero, dá-lhe proteção. Lei nova, reclama cuidadoso e maduro exame interpretativo.
Matéria que logo provoca controvérsia é a necessidade ou não de representação da mulher para a ação penal. Se necessária, a ação penal será pública condicionada; se desnecessária, pública incondicionada. A distinção é relevante porque, naquela, a vítima, na linguagem popular, poderá "retirar a queixa"; já nesta, o desejo da vítima não prevalece, e o agressor será sempre processado.
A lei criou os Juizados de Violência Doméstica, retirando a matéria da alçada dos Juizados Especiais Criminais. Nestes, em lugar das penas privativas de liberdade, predominam os acordos, a transação penal, as penas restritivas de direito. Casos de violência doméstica acabavam, muitas vezes, no pagamento de cestas básicas, o que não inibia novas agressões.
Daí a tendência de segmentos sociais em endurecer o tratamento contra o agressor. Como o artigo 41 da Lei nº 11.340/2006 veda a aplicação da Lei nº 9.099/1995 aos casos de violência doméstica, entendem que também o artigo 88 da Lei dos Juizados, que prevê a necessidade da representação nos casos de lesões leves, não tem incidência. Por essa interpretação, a ação penal seria pública incondicionada, não dependendo da representação da mulher para ter início e prosseguir. Malgrado respeitável, esse entendimento não é o melhor e pode prejudicar a própria mulher.
Tecnicamente, o artigo 41 da Lei nº 11.340/2006 só afasta o procedimento e a aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei nº 9.099/1995, como a composição civil e a transação penal, instrumentos impeditivos da persecução criminal. Nessa linha, o artigo 17 da Lei Maria da Penha proíbe a aplicação de penas de prestação em dinheiro, especialmente cestas básicas, e o pagamento isolado de multa. Não há, porém, determinação de afastar o artigo 88 da Lei nº 9.099/1995, que condiciona a ação penal decorrente de lesão corporal leve à representação da vítima. Tanto que esta é prevista no artigo 12, I, da Lei nº 11.340/2006. E o artigo 16 desta, com todas as letras, possibilita a "renúncia à representação", isto é, retratação da vítima.
Há, ademais, outros crimes para os quais, não a Lei nº 9.099/95, mas o Código Penal exige a representação da vítima. Exemplo: os crimes contra a liberdade sexual (estupro, atentado violento ao pudor, posse sexual e atentado ao pudor mediante fraude, corrupção de menores), nos quais, igualmente ofendida mulher, sendo ela pobre, é necessária a sua representação (CP, art. 225, § 1º, I, e § 2º). Ora, inadmissível o paradoxo: no mesmo contexto de violência doméstica, em crime mais brando como o de lesão corporal leve, a ação penal seria pública incondicionada, mas, nos mais graves contra a liberdade sexual, a ação penal pública seria condicionada à representação da vítima, podendo esta retratar-se.
A acertada interpretação de que persiste a necessidade de representação atende, também, à possibilidade de uma saudável reconciliação. É certo que, em parte dos casos, a retratação da mulher não é espontânea, decorrendo de coação, nova violência. Mas em outros é, com o agressor arrependido do que fez, tendo-se retratação digna de reconhecimento. Negar-se isso, prosseguir-se na ação penal com possível condenação do marido ou companheiro, resulta ameaçar a reconstituição da vida em comum.
A dimensão do problema é revelada por estatística do Centro Integrado de Atendimento à Mulher (Ciam) do estado do Rio de Janeiro. Revela que cerca de 70% das mulheres vitimadas perdoam os maridos ou companheiros e tentam a reconciliação. Até que medida se deve interferir na decisão dessas mulheres?
A resposta está na própria Lei Maria da Penha, cujo artigo 16 impõe a realização de audiência para o exame da retratação. Nela, ouvido o Ministério Público, convencido o juiz de que a desistência é espontânea, havendo condições favoráveis, deve aceitar o pedido e encerrar o processo. Caso contrário, não. Na dúvida, é de recusar-se a retratação, pelo relevo que merece a proteção à vítima. Reiteração de maus-tratos, antecedentes ruins do agressor, gravidade das circunstâncias, tudo isso milita contra a aceitação da retratação.
Desconhecer a face boa da retratação, impedindo-a, a pretexto de proteger a mulher, pode implicar violência ainda maior contra ela, que é negar-lhe um meio de restaurar a paz no lar e restabelecer a união comum.