A Indispensável Proteção ao Consumidor - Juíza Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto*

por ACS — publicado 2008-01-13T23:00:00-03:00
A Organização das Nações Unidas estabelece, dentre os princípios gerais constantes no item 2 da Resolução ONU no 39/248, de 10 de abril de 1985, que "... cada governo deve determinar suas próprias prioridades para a proteção dos consumidores, e acordo com as circunstâncias econômicas e sociais do país e as necessidades de sua população, verificando os custos e benefícios das medidas propostas".
No Brasil, a importância dada à tutela protetiva ao consumidor tem, antes de tudo, uma base constitucional, apresentando-se como um dos direitos e garantias fundamentais insertos no artigo 5o, inciso XXXII, da Carta Cidadã de 1988, que dispõe: "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Objetivando assegurar uma vida digna a todos, em consonância com os ditames da justiça social, a defesa do consumidor foi alçada a princípio geral da atividade econômica no artigo 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988.
Algumas das formas de concretização dessa justiça distributiva estão previstas nos seguintes fundamentos constitucionais: artigo 170, caput - a valorização do trabalho; artigo 5o, XXXII e artigo 170,V - defesa do consumidor; artigo 173, § 4o - a repressão ao abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Resta, assim, evidenciada a interrelação entre os Direitos Sociais e Econômicos.
Observando-se, ainda, atentamente os princípios elencados no citado artigo 170, inciso IV - livre concorrência - e do referido inciso V - defesa do consumidor - constata-se uma postura ideológica neo-liberal adotada pela ordem jurídica constitucional, visando conciliar valores liberais com outros valores socializantes, no esforço de assegurar a defesa e o equilíbrio entre os interesses individuais e coletivos.
A Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, dispõe sobre a proteção do consumidor e estabelece os vetores informativos dos direitos e das obrigações para os consumidores e fornecedores - indubitavelmente uma legislação avançada no cenário nacional e internacional.
Os princípios gerais do Código de Proteção e Defesa do Consumidor revelam uma perfeita integração com os valores da dignidade humana e da justiça social consagrados pela Constituição Federal de 1988. Os direitos basilares do consumidor encontram-se consubstanciados no artigo 6o do CDC, que estabelece:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;
IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos, com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;
VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;
IX - Vetado - a participação e consulta na formulação das políticas que os afetem diretamente, e a representação de seus interesses por intermédio das entidades públicas ou privadas de defesa do consumidor;
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

Examinando tais princípios, verificamos que estes estão coerentes com os parâmetros estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal, quanto a uma ordem econômica voltada para a valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, em conformidade com os ditames da justiça social, com o objetivo inequívoco de garantir a todos uma vida digna.
A Constituição Federal não apenas erige a proteção ao consumidor como direito fundamental da pessoa, mas, também, viabiliza a concretização de tal salvaguarda mediante a previsão de impetração de mandado de segurança coletivo (art. 5o, LXX) e ação civil pública pelo Ministério Público (art. 129, III) - como instrumentos para a defesa dos direitos dos consumidores.
Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor, ao dispor sobre a proteção do consumidor e ao estabelecer os direitos e obrigações para os fornecedores e consumidores, constitui-se num instrumento fundamental na concretização da justiça social, pois visa: coibir os abusos contra a concorrência desleal nas práticas comerciais; racionalizar e melhorar os serviços públicos; e, atender à dinâmica das relações de consumo harmonizando os interesses dos participantes desta relação. É, também, de inigualável utilidade para a sociedade brasileira na realização de uma tutela integral ao consumidor, ao disciplinar todas as facetas da relação de consumo, tanto as que dizem respeito à produção e circulação dos bens e serviços, quanto ao crédito e ao marketing.
A necessidade de defesa do consumidor tem exigido do Estado a criação de órgãos que possibilitem a solução das demandas e a prevenção dos litígios consumeristas a exemplo dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, das Promotorias de proteção ao consumidor, das delegacias especializadas na investigação de crimes contra as relações de consumo, da assistência judiciária e das associações de consumidores.
Verifica-se, também, a influência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor na tutela do meio ambiente, a exemplo do artigo 28 da Lei no 8.078/90 (CDC), que prevê a possibilidade de o juiz desconsiderar a pessoa jurídica quando sua personalidade for, de algum modo, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados a consumidores, da mesma forma, que o artigo 4o da Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais - Lei da Vida), possibilita, também, a desconsideração da pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
Nota-se importante correlação entre a responsabilidade decorrente de dano ambiental e dano ao consumidor, quando um mesmo erro de conduta provoca, simultaneamente, danos ao consumidor e ao meio ambiente. O "consumo sustentável" é um dos temas fundamentais da modernidade. A ONU, através da Resolução no 1.995-53, de julho de 1995, o considerou um direito-dever distinguindo-o como o sexto direito universal do consumidor.
No que concerne à tutela de direitos individuais homogêneos por intermédio de ação civil pública, vale observar alguns aspectos. O artigo 117 do CDC introduziu na Lei no 7.347/85 o artigo 21, que determina a aplicação, no que for cabível, das disposições do Título III do referido Código à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais. O artigo 90 do CDC dispõe sobre a aplicação às ações previstas em seu Título III - Da defesa do consumidor em juízo - das normas do Código de Processo Civil e da Lei 7.347/85, naquilo que não contrariar suas disposições. O artigo 83, da Lei no 8.078/90, inserido no aludido Título III, determinou que, para a defesa dos direitos e interesses protegidos pele CDC, são admissíveis todas as espécies de ações aptas a propiciar sua efetiva tutela. O artigo 110 do referido diploma legal, acrescentou o inciso IV ao artigo 1o da lei que disciplina a ação civil pública, para determinar que se regem pelas disposições da mencionada lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos causados "a qualquer outro interesse difuso ou coletivo."
Segundo Francisco José Marques Sampaio,

Doutrina e jurisprudência, ao interpretarem os referidos dispositivos, não apresentam posicionamentos uniformes quanto a ter a Lei 8.078/90 ampliado o rol dos interesses que podem ser objeto de ação civil pública, para nele incluir direitos individuais homogêneos de qualquer natureza; ou quanto a ter o mencionado diploma legal operado tal ampliação apenas para acrescentar direitos individuais homogêneos de consumidores. Há os que preferem, ainda, diferenciar a ação civil pública prevista na Lei 7.347/85 das ações coletivas criadas pelo artigo 91 do CDC, para, então, divergirem quanto a limitar-se, ou não, o objeto de tais ações coletivas a direitos individuais homogêneos de consumidores. Em qualquer dos casos, a controvérsia consiste em admitir-se que o artigo 91 combinado com o artigo 117 do CDC gerou a possibilidade de tutela coletiva de quaisquer direitos individuais homogêneos, ou apenas daqueles de que se seja titular na condição de consumidor.
Nesse sentido, assevera Hugo Nigro Mazzilli :

Em rigor de terminologia, o mais adequado seria usar a expressão ação coletiva para o gênero das ações civis propostas por qualquer dos co-legitimados em defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos (ligados ou não ao consumidor); por sua vez, ação civil pública é somente a ação promovida pelo Ministério Público.

Para Francisco José Marques Sampaio,

A admitir-se que as ações coletivas previstas no artigo 91 de CDC se prestam à tutela de quaisquer direitos individuais homogêneos, tem-se que seria possível, atualmente, além da propositura de ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente - bem de caráter difuso - a propositura de ação coletiva com vista à reparação não apenas de danos ambientais, mas também dos prejuízos causados a particulares, cuja "origem comum", a que se refere o inciso III do parágrafo único do artigo 81 do CDC, tenha sido a degradação ambiental. Esse é o entendimento de Édis Milaré. O autor observa que o dano ambiental, como regra, integra a categoria dos direitos difusos, mas que, paralelamente ao dano ambiental difuso, pode ocorrer o dano ambiental individual, o qual, em atingindo uma pluralidade de vítimas, configurará interesse individual homogêneo.

Neste sentido, afirma Antônio Herman Benjamin:

Nos termos do Código de Defesa do Consumidor, com as alterações que introduziu na Lei 7.347/85, existem hoje, no Brasil, para tutela do ambiente e do consumidor, três modalidades básicas de ação civil pública, conforme protejam interesses e direitos: a) difusos; b) coletivos stricto sensu; e c) individuais homogêneos.

Por outro lado, vale registrar que a Lei no 7.913, de 7 de dezembro de 1989, previu a tutela coletiva de direitos individuais de origem comum, consagrando, no ordenamento jurídico brasileiro, pela primeira vez, a class action for damages.
Cabe destacar que, por força do CDC, foram empreendidas alterações na Lei no 7.347/85, bem como a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, no 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, atribuiu à instituição, em seu artigo 25, inciso IV, alínea a), a função de
promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis e homogêneos.

Assim, nota-se, a importância da legislação do consumidor e, também, sua influência nas leis e disposições ambientais, o que revela que a proteção desses direitos tornou-se um dos pilares de sustentação da cidadania e, conseqüentemente, do Estado Democrático de Direito.


REFERÊNCIAS

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

BRASIL. Constituição 1988. Brasília: Senado Federal, 2000.

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 7. ed. 1998.

SAMPAIO, Francisco José Marques. Responsabilidade civil e reparação de danos ao meio ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

* Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pela "Universidad del Museo Social Argentino" - UMSA.