A liderança no contexto do serviço público - Cristiana Duran

por ACS — publicado 2016-02-19T08:30:00-03:00

Artigo publicado no site do TJDFT, página da Imprensa - Artigos, no dia 19/2/16.

Cristiana Duran[1]

Falar de liderança, principalmente junto a servidores públicos que possuem função de chefia, causa certo “desconforto”. Muitas vezes a ideia é de que isso “não se encaixa” nesta realidade, sendo algo para grandes empresas da iniciativa privada. Entretanto, não é bem assim.

Paulo Vieira descreve com propriedade o papel da liderança quando diz que “O líder é aquele personagem que, nascido da trama da convivência, destina-se a torná-la criadora, contribuindo para estabelecer o “a-gente” como uma possibilidade real e efetiva da vida. (...) Liderança implica existência com motivos e o líder surge para tornar possíveis e concretos aqueles anseios/desejos compartilhados na experiência do conviver”.

Isso significa que o líder é aquele que, num grupo, personifica seu principal valor (aquilo que o grupo identifica como sendo a sua essência) e luta contra as barreiras que impedem a autorrealização de todos. Pensando assim, o líder é contextual, ou seja, será líder aquele que apresentar comportamentos específicos (desejados) dentro de um grupo de pessoas num dado momento e é, também, aquela pessoa que possui uma visão de futuro congruente com os valores de seu grupo.

Pensando no contexto do serviço público, a primeira barreira que os servidores que exercem função de chefia encontram é o espaço para a prática de valores. Normalmente, eles são levados, pela cultura, a serem chefes. Não a serem líderes. E qual é a diferença? TODA!

Chefes são aqueles que, naquele ambiente, exercem uma função de chefia porque formalmente a organização o “escolheu” (no caso, nomeou) para comandar uma equipe de trabalho. Isso é totalmente diferente do conceito de liderança.

Pode ser que os dois papéis estejam concentrados, em dado momento, na mesma pessoa. Ótimo! Mas quando isso não acontece (tendo em vista que ora se está liderando, ora se está sendo liderado) é muito comum que o chefe passe a se sentir “traído” pela equipe, que não o está vendo, naquele momento, como líder.

O apego à função o cega, a ponto de ele trabalhar para boicotar o líder, ao invés de se juntar a ele e trabalhar para o seu próprio reconhecimento nesse papel. Agir dessa forma é ter a inteligência emocional desenvolvida, no conceito de Daniel Goleman.

Mesmo parecendo ser essa ideia uma dicotomia chefe x líder, ela não é. Pesquisas recentes mostram que, cada vez mais, é exigido do chefe ser também um líder, ou seja, ele deve coordenar a área, ‘bater’ as metas, cuidar dos processos de trabalho e, claro, gerir e inspirar as pessoas.

Diante desse grande desafio, como ser líder, então, no serviço público? Como vencer a barreira para criar o espaço para a prática de valores? Bem, essa é uma habilidade desenvolvida na prática. Basta voltar ao conceito de Paulo Vieira e ver que o líder é um personagem “nascido da trama da convivência”. Essa prática envolve o equilíbrio entre o cobrar e o apoiar, o fazer e o proteger, o estar e o ser. O papel não é maternal. É pedagógico! O líder ensina aquilo que ele pratica, e aprende com seu grupo e com suas experiências. Por isso, a questão dos valores. Ele aprende a delegar tarefas de forma positiva, ele sabe cobrar metas sem levar o colega ao esgotamento ou ao adoecimento e, acima de tudo, ele se mantém firme na visão de futuro, enfrentando de peito aberto as barreiras culturais desse papel. Portanto, é preciso, antes de tudo: coragem.

Se alguém me perguntasse, dentro dos valores corporificados por um líder, qual é o mais importante para ser líder no serviço público, eu responderia, sem pestanejar: ‘coragem’. É preciso ter coragem para ser transparente, é preciso ter coragem para permanecer coerente, é preciso ter coragem para se manter motivado e é preciso ter coragem para aceitar e seguir sabendo que, amanhã, uma incoerência de outra pessoa pode colocar tudo a perder... Ressalto que coragem não significa ausência de medo. É seguir, apesar dele, é fazer e ter medo, ao mesmo tempo.

Para ser líder no serviço público é preciso uma reinvenção de si, do outro e do contexto. É preciso preparar-se para mudar por dentro. É preciso estar aberto para perceber, na crítica, um novo olhar. E isso é bem difícil, mas é o novo imperativo para as organizações públicas, sem dúvidas.

Espere! Também não é ser heroi! Essa “nova ordem” da liderança no serviço público possui um elemento crucial: a equipe. É dela o anseio pelo surgimento desse líder, é dela a vontade de se ter esse espaço capacitante e sustentável de convivência... Não há como ser líder, se não há liderados. Afinal, o líder se baseia nos valores de sua equipe.

Só quem já teve um chefe como líder consegue entender o quanto isso é bom... Infelizmente, nos acostumamos a ter “chefes”. Nos acostumamos a seguir ordens calados e a sermos totalmente impotentes diante da realidade. Isso não traz mudança, não evolui. Como diria Rubem Alves, “milho de pipoca que não passa pelo fogo, será sempre milho”. E é aí que passamos a sofrer da ‘Síndrome de Gabriela’: “eu nasci assim, eu cresci assim e sou mesmo sim. Vou ser sempre assim Gabrieeeelaaa...”. Queremos ser para sempre assim?

Temos novas gerações entrando para o serviço público, com novas habilidades e novas formas de pensar. E são elas que, mais a frente, comandarão o serviço público. É assim que queremos prepará-las? É essa cultura patriarcal que queremos que essas gerações incorporem? Deixaremos pessoas em “final de carreira” sem conhecer o gostinho bom de uma liderança genuína? Estaremos todos, afinal, fadados a sermos ‘Sísifos’[3]?

 

[1] Psicóloga e gestora do Serviço de Apoio Gerencial em Gestão de Pessoas – SERGES/SUGIP/SERH.

[2] Vieira, P.F. Um ensaio sobre liderança: caminhos percorridos, conquistas, equívocos e alternativas. In: Migueles, C. e Zanini, M. T. (org.) Liderança baseada em valores – caminhos para a ação em cenários complexos e imprevisíveis. 10ª tiragem. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.

[3] O Mito de Sísifo, na mitologia grega, é sobre a história de Sísifo, condenado por Zeus a carregar eternamente uma pedra montanha acima e que, ao se aproximar do cume da montanha, deixa escapar a pedra que rola e que exige dele a descida e o recomeço.