Os atalhos que conspiram contra o sistema de adoção

Supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do DF, Walter Gomes de Sousa
por Walter Gomes de Sousa — publicado 2019-08-01T13:23:00-03:00

Conhecer uma gestante vulnerável, tangida pelo desespero e pela decisão de não assumir a responsabilidade pelos cuidados da criança que há de nascer, e entabular tratativas com essa mulher com vistas a acolher a referida criança, passando-se por suposto genitor biológico e diante do cartório registrá-la como se filho(a) biológico(a) fosse, parece algo inusitado, mas esse é um atalho trilhado por muitas famílias que desejam a adoção, porém não aceitam se sujeitar às regras e normas que norteiam esse instituto jurídico. Essa modalidade de fraude foi durante muito tempo denominada “adoção à brasileira” e em muitos lugares recebeu brando tratamento. É o chamado crime contra o estado de filiação, trazido pelo artigo 242 do Código Penal: “Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil”.

A pena para quem pratica esse tipo de crime é de dois a seis anos de reclusão. Essa prática ainda não foi banida de nosso meio, o que nos leva à conclusão de que é imprescindível a atuação fiscalizatória por parte do Estado, de maneira a estabelecer rígidos mecanismos de inibição e/ou punição aos que praticam o mencionado crime.

Um outro atalho também bastante procurado pelos que almejam a adoção e que recusam a se submeter às normativas e protocolos da habilitação judicial é a chamada “adoção direta” ou intuitu personae, caracterizada especialmente por tratativas informais levadas a efeito pelos postulantes e a genitora da criança. Nessa modalidade, bastante fomentada ainda em diversas comarcas brasileiras, não há intermediação psicossocial ou jurídica por parte da Justiça Infantojuvenil, sendo os requerentes os protagonistas exclusivos. Nesse aspecto, não há como o sistema de justiça aferir as reais condições psicoemocionais dos postulantes, suas motivações e se eles poderão exercer com adequação, zelo, responsabilidade e afeto as funções parentais de pai e/ou mãe em relação à criança. Há que se ressaltar ainda que essa forma de acolhimento adotivo representa também atroz descumprimento ao que preconiza o artigo 30 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que assim se apresenta: “A colocação em família substituta não admitirá transferência da criança ou adolescente a terceiros ou a entidades governamentais ou não governamentais, sem autorização judicial”.

As Leis 12.010/09 e 13.509/17, ao lado do Provimento 36 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), procuraram dar maior visibilidade, sistematicidade, transparência e uniformidade aos procedimentos psicossociais e jurídicos referentes ao instituto da adoção. Em que pesem as dimensões continentais do nosso país e as peculiaridades e especificidades de cada região, não se pode desconsiderar que a adoção deve ser tratada em todos os lugares como um instrumento essencialmente protetivo e destinado às crianças e jovens vítimas da ruptura de vínculos parentais e privados da convivência familiar e afetiva. A apresentação dessas crianças e jovens aos candidatos a pais e mães em adoção necessita da supervisão e mediação da Justiça Infantojuvenil com a verificação prévia de que os referidos candidatos reúnem as indispensáveis condições e requisitos para um acolhimento seguro, consistente e cercado de afetividade. Esse especial cuidado se deve à imperativa necessidade de se evitar preventivamente que os adotandos sejam expostos a novas situações de violação de direitos ou ameaças de reiterado rompimento de vínculos e assim tenham agravados seus sentimentos de menos valia, de desprezo e de abandono.

Tem-se verificado com crescente preocupação que, a despeito dos incrementos legislativos e dos esforços pragmáticos do CNJ, as chamadas “adoções diretas” ou intuitu personae ou mesmo as denominadas “adoções à brasileira”, que ocorrem sem a prévia habilitação dos postulantes e sem que os adotandos tenham sido inseridos no cadastro de aptos para adoção, continuam a ocorrer em números elevados, especialmente em regiões do interior do Brasil. Esses atalhos impactam diretamente o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), causando-lhe desprestígio e descrédito.

O ECA, em seu artigo 50, preconiza de maneira cristalina a respeito da importância das varas da infância e juventude observarem as regras referentes ao cadastro tanto de postulantes que se candidatam à adoção quanto de crianças e adolescentes aptos. Senão vejamos:

§5º Serão criados e implementados cadastros estaduais e nacional de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados à adoção. 

(...)

§7º As autoridades estaduais e federais em matéria de adoção terão acesso integral aos cadastros, incumbindo-lhes a troca de informações e a cooperação mútua, para melhoria do sistema.

§8º A autoridade judiciária providenciará, no prazo de 48 (quarenta e oito horas), a inscrição das crianças e adolescentes em condições de serem adotados que não tiverem colocação familiar na comarca de origem, e das pessoas ou casais que tiveram deferida sua habilitação à adoção nos cadastros estadual e nacional referidos no § 5º deste artigo, sob pena de responsabilidade.

(...)

§12 A alimentação do cadastro e a convocação criteriosa dos postulantes à adoção serão fiscalizadas pelo Ministério Público.

Merece destaque especial o § 8º em razão da previsão de responsabilização de quem descumpre o mencionado prazo. Seguindo nessa mesma linha, também não poderia deixar de mencionar o artigo 258-A do ECA:

Deixar a autoridade competente de providenciar a instalação e operacionalização dos cadastros previstos no art. 50 e no § 11 do art. 101 desta Lei:

Pena – multa de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 3.000,00 (três mil reais). Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas a autoridade que deixa de efetuar o cadastramento de crianças e de adolescentes em condições de serem adotadas, de pessoas ou casais habilitados à adoção e de crianças e adolescentes em regime de acolhimento institucional ou familiar.

A Lei é muito clara, entretanto as exceções (ou atalhos) têm se tornado regra. As “adoções diretas” ou intuitu personae ou mesmo as chamadas “adoções à brasileira” continuam sendo efetuadas despudoradamente e gerando inegável descrédito ao sistema de cadastramento e de habilitação, a ponto de famílias devidamente inscritas e que se encontram há anos na ordem do CNA questionarem se vale realmente a pena seguir os protocolos jurídicos e psicossociais de habilitação e aguardar a Justiça Infantojuvenil convocá-las para conhecer e adotar o filho pretendido ou é melhor apelar para os atalhos em prol de uma adoção mais rápida e fácil e sem tantas exigências, mesmo que à revelia da legislação.

Destaque-se também que cada criança destinada a essas modalidades atalhadas de acolhimento adotivo é uma a menos com possibilidade de ser inserida no cadastro de adoção, e isso resulta no maior tempo de espera daqueles postulantes habilitados.

Essa realidade inglória de adoções que nascem a partir da priorização do interesse de adultos, do desprezo às regras e procedimentos legais e da tentativa de redução do adotando a um objeto de desejos deve ser combatida e desconstruída. Para tanto, não se pode relevar o grande esforço empreendido pelo CNJ no sentido de implementar o CNA, tornando-o mais operacional, pragmático e funcional tanto para as equipes técnicas quanto para os magistrados das varas da infância e juventude de todo o Brasil. Ora, o referido cadastro foi engendrado exatamente para tornar o sistema de adoção mais seguro, ético e legal, garantindo assim que candidatos habilitados e crianças e adolescentes aptos pudessem vivenciar encontros afetivos e a consequente integração familiar, que os referidos encontros ou vinculações fossem operados por meio do devido respeito à ordem cronológica de habilitação, conforme preconizado pelo artigo 197-E do ECA:

Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis.

Há que se destacar ainda que a Lei 13.509/17 determinou que “a habilitação à adoção deverá ser renovada no mínimo trienalmente mediante avaliação por equipe interprofissional” (ECA, artigo 197-E, § 2º). Para que o CNA funcione de forma plena, necessário se faz que todas as unidades da Justiça Infantojuvenil do país o alimentem de maneira adequada, procedendo ao cadastramento de crianças e adolescentes que foram abandonados, vivenciaram a ruptura de vínculos e se encontram em acolhimento institucional e à inscrição de famílias que atenderam aos requisitos da Lei e após terem sido rigorosamente avaliadas foram consideradas aptas para adoção por meio de sentença judicial habilitatória. Há que se destacar que os candidatos à adoção, por força de lei, são obrigados a participar de um curso de preparação psicossocial e jurídica para adoção (ECA, artigo 50, § 3º):

A inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação psicossocial e jurídica, orientada pela equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar.

 A própria legislação também explicita o porquê da necessidade de uma preparação prévia dos candidatos (ECA, artigo 197-C):

Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo psicossocial, que conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e princípios desta Lei. (grifo meu)

O sistema de habilitação de candidatos possui portanto um caráter preventivo e ao mesmo tempo preparatório, e seu objetivo é garantir que o eventual acolhimento adotivo de uma criança ou adolescente possa ocorrer com segurança, responsabilidade, proteção e a observância de que o bem-estar superior do adotando será respeitado, conforme preconiza o artigo 43 do ECA: “A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos”.

Vejam portanto que o caminho traçado pela legislação para quem postula a adoção é permeado por regras, procedimentos e protocolos. Para muitos, isso soa como burocracia ou empecilhos desnecessários, entretanto, para quem opera o referido sistema, o que a Lei preconiza é um conjunto de cuidados e cautelas devido ao fato de que o instituto da adoção é essencialmente de natureza protetiva e voltado para a garantia da promoção de benéfica e saudável convivência familiar para crianças e jovens institucionalizados.

Aqueles que se esquivam de seguir o caminho da habilitação legal e optam pelos atalhos rumo a uma adoção sem a prévia mediação judicial estarão a revelar, em um primeiro momento, que o mais importante são seus interesses pessoais e suas temerárias estratégias; em segundo lugar, a inquestionável esquiva de se sujeitarem a um prévio escrutínio psicossocial e jurídico; e, em terceiro lugar, que a criança pretendida é retratada como mero objeto de desejo e não como sujeito de direitos.

No portal do CNJ, especificamente na página referente à adoção, há um chamamento muito interessante que sintetiza a razão de ser do sistema de adoção: “O novo CNA tem o objetivo de colocar sempre a criança como sujeito principal do processo, para que se permita a busca de uma família para ela, e não o contrário”.

Atualmente cerca de 43 mil famílias se encontram inseridas no CNA, sendo que a maioria manifesta interesse em acolher crianças na faixa etária de 0 a 2 anos. E é exatamente esse perfil desejado que predomina nas chamadas “adoções diretas” ou intuitu personae, ou mesmo nas intituladas “adoções à brasileira”, ambas materializadas em contextos de informalidade e de inobservância às regras e procedimentos próprios do CNA. Essa é a conclusão óbvia: as crianças destinadas aos esquemas ilegais (ou atalhos) de adoção deixam de figurar no cadastro de adoção; e, portanto, as famílias já habilitadas acabam por aguardar um tempo mais prolongado até que sua adoção se concretize.         

Nessa atual conjuntura, em que o CNJ tem participado de um pacto nacional em prol da primeira infância, torna-se oportuno reforçar a necessidade de que todos os entes integrantes do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente estejam a renovar o compromisso com a adoção legal e sua mediação pela Justiça Infantojuvenil. Que estejam a renovar o compromisso com o sistema de habilitação dos candidatos à adoção. Que estejam a renovar o compromisso com a celeridade no cadastramento para adoção de crianças e jovens em situação de abandono e de privação de afeto. Que estejam a renovar o compromisso com a ampliação de recursos humanos para o bom aparelhamento das varas da infância e juventude do país. Que estejam a renovar o compromisso no combate aos atalhos perigosos e ilegais em torno do nobre e elevado instituto jurídico da adoção.

Por fim, li outro dia uma frase na internet que me pôs a refletir profundamente e que de certa forma guarda relação com a temática aqui tratada: “Não aceite os atalhos que a vida te oferece, pois mais vale um caminho longo, porém seguro, do que um atalho incerto e obscuro”.

Walter Gomes de Sousa é psicólogo e supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal – SEFAM/VIJ-DF