Hoje temos idosos dos 60 aos 80 anos absolutamente inseridos no mercado de trabalho

Juíza do TJDFT Monize da Silva Freitas Marques
por ACS — publicado 2019-10-02T22:10:00-03:00

juiza MONIZE FREITAS MARQUES.jpgNesta semana em que se comemora o Dia Internacional do Idoso (1º de outubro), a juíza de Direito substituta Monize da Silva Freitas Marques, responsável pelo Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania de Taguatinga  e uma das Coordenadoras da Central Judicial do Idoso - iniciativa fruto de uma parceria entre o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e a Defensoria Pública do Distrito Federal - fala sobre o envelhecimento no Brasil, os avanços da nossa legislação, os benefícios a que os idosos fazem jus e questões culturais sobre "ser idoso" no nosso país. Confira.

 

É fato que a expectativa de vida das pessoas tem aumentado em todo o mundo. No Brasil, segundo o IBGE (dados de 2019), ela está estimada em 80 anos para as mulheres e 73 para os homens. O brasileiro está  vivendo mais, mas está vivendo melhor? 

A partir de 1970, aproximadamente, diminuímos a taxa de fecundidade ao mesmo tempo em que aumentamos a longevidade por uma série de circunstâncias, principalmente relacionadas ao êxodo rural. Na zona urbana as pessoas tiveram maior assistência e acabaram prolongando o tempo de vida. Como isso aconteceu quase de forma abrupta, apesar de não imprevisível, o Brasil não estava preparado para receber esse envelhecimento da forma como ele aconteceu. Então o brasileiro está vivendo mais, mas não está vivendo melhor. Ele saiu de algumas funções de precariedade, principalmente relacionadas à precariedade rural, mas não enfrenta hoje uma assistência social igualitária, com um déficit muito grande na área da saúde.

Nós temos uma expectativa de vida que não é real em todos os cantos do país. Essa média que foi feita pelo IBGE precisa levar em consideração a longevidade do sul e norte. Quando ele diz que uma mulher vive 80 anos, ele está tirando uma média. No nordeste essa mulher vive muito menos e no sul ela vai viver muito mais porque as condições sociais são mais favoráveis.

O Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) pode ser considerado marco no atendimento dispensado aos idosos? Tem-se notícia de normas semelhantes em outros países ou trata-se de uma lei inovadora?

O Estatuto do Idoso veio bem depois do marco legislativo que foi o pontapé inicial, que é a Política Nacional do Idoso, em 1994. Basicamente, a Constituição abriu as portas ao idoso, trazendo a ele uma série de garantias, incluindo o princípio da solidariedade, exigindo que os filhos também passassem a ter o dever de cuidar dos pais, além de uma série de direitos humanos que são estendidos ao idoso por uma decorrência lógica. Só que essa Política precisou de uma regulamentação mais efetiva e o Estatuto do Idoso veio, 9 anos depois, consolidar o que já havia sido trabalhado em termos de políticas públicas no âmbito nacional e trazer, além das recomendações gerais de acolhimento da pessoa idosa, crimes que poderiam incluir os eventuais agressores numa legislação específica de criminalização. Então ele é um marco importante, mas não é o primeiro, sendo considerado uma legislação especial, um panorama do direito comparado.

Apesar de outros países não terem uma legislação tão impactante, o direito [do idoso] é mais observado, porque o costume exige assim. Portugal, por exemplo, é referência para nós em cuidar da pessoa idosa. Ele tem legislações tão detalhadas, que incluem previsão para o tamanho do banheiro, da altura da escada, da altura do corrimão... então são os detalhes que conferem mais dignidade à pessoa humana. Assim, o Estatuto do Idoso em si acaba perdendo a relevância, porque cada país vai tratar do assunto conforme lhe convém.

Hoje os idosos são amparados por leis específicas (não apenas o Estatuto) que lhes concedem preferência em diversas situações, seja em filas, nos assentos em transportes públicos, na tramitação processual, no recebimento de vacinas, pagamento de precatórios, o voto facultativo, entre outros. Essa mudança legislativa veio acompanhada por uma mudança cultural? 

A Organização Mundial da Saúde estabelece como pessoa idosa aquele que possui 60 anos ou mais, nos países que estão em desenvolvimento, e 65 anos ou mais, em países desenvolvidos. Esse critério que foi adotado pelo Brasil por recomendação da OMS é cronológico. Então não fazemos nenhuma aferição sobre a limitação da pessoa para saber se ela é idosa ou não. Esse é um mito que precisa ser rompido, porque quando falamos sobre a pessoa idosa, a forma pejorativa como esse nome foi adotado durante muitos anos,  principalmente no Brasil, que é um país ligado à juventude, faz com que quem é idoso não queira ser chamado de idoso, mesmo que o termo tecnicamente não tenha nenhuma vinculação a limitações físicas, emocionais e mentais.

O critério cronológico de que, se fez 60 anos é idoso, é para fins de avaliação da lei. Temos hoje uma faixa etária dos 60 aos 80 anos, que são idosos absolutamente inseridos no mercado de trabalho, praticamente autônomos, que têm uma negação muito grande em relação aos benefícios que a ele se confere, como a meia entrada, estacionamento exclusivo, preferência em fila. Então quando falamos ''essa pessoa não quer utilizar do benefício, porque ela não se considera idosa'' na verdade ela não se considera limitada, porque idoso ele é, pelo simples fato de ter 60 anos.

É importante observar que esse processo cultural só vai ser rompido quando deixarmos a impressão de que o idoso é um pessoa decrépita, que já está debilitada, porque todas as faixas etárias tem limitações e não podemos utilizar o termo ''o velho'' que vem de velhice, de forma depreciativa. Quando pararmos de fazer essa avaliação com relação à velhice como estigma da incapacidade, teremos mais pessoas se empoderando dessa classificação etária e usando a prerrogativa que a lei lhe dá.

Em virtude da ampliação da expectativa de vida do brasileiro, em 2017 foi sancionada a Lei 13.446, que confere prioridade especial aos maiores de 80 anos. Como a senhora prospecta essa situação para um futuro próximo?

Como eu disse, existem outros países que consideram o idoso com 65 anos ou mais. Esse é um caminho que o Brasil vai alcançar, em pouco tempo. Muito provavelmente, chegaremos a essa avaliação de que vamos precisar ampliar a idade da vida adulta e considerar idoso a pessoa com mais de 65 anos – inclusive já têm processos legislativos em trâmite buscando essa notificação, porque todo o país está envelhecendo. Então a prioridade, que seria a exclusividade de uma minoria, fica invertida. Se observarmos que em 20 anos teremos o dobro da população idosa e que em aproximadamente 30 anos seremos provavelmente o sexto país do mundo com o maior número de idosos, se pensarmos em fila exclusiva para idoso, a outra fila vai ser menor, é uma questão matemática, de avaliação de números. A legislação de 2017 visou proteger o idoso octogenário, porque ele vai precisar dessa prerrogativa legal. Não é mais incomum, por exemplo, encontrar um octogenário no país, inclusive tramitando judicialmente.

Mas eu creio, o que é uma resposta pessoal, que em pouco tempo esses benefícios vão precisar ser restritos, para que o direito seja realmente efetivado, alcançando a finalidade da lei que é buscar a proteção da minoria. Já que teremos uma grande quantidade de idosos com 60 anos, teremos que restringir, muito provavelmente esses direitos. Se pensarmos em filas de banco preferenciais com 60 anos, para uma comunidade crescente (a minha filha que tem 5 anos vai conviver com 4 idosos para 1 jovem), então teremos uma distorção dessa questão do ônus demográfico.

Do ponto de vista legal, a sensação que temos é de que, no Brasil, o idoso está bem amparado. Mas isso corresponde à realidade?

Temos uma legislação bastante eficiente do ponto de vista teórico. Não precisamos de mais leis, isso é fato, mas precisamos aplicar. O Estatuto trouxe uma série de benefícios em relação à pessoa idosa e não trouxe destinação orçamentária para a incrementação desses objetivos e dessas políticas públicas. Sem dinheiro, não adianta. Então ainda temos uma série de políticas públicas não implementadas por falta de recurso.

Também é importante dizer que o país é muito grande e as circunstâncias sociais são muito distintas.Você diz ''tem idoso que parece que é respeitado''. Tem. Se falarmos especificamente de Brasília, que é uma ilha, iremos encontrar idoso sendo respeitado, políticas públicas ainda em processo de tramitação, mas já sendo vislumbradas e pensadas. Mas dependendo do estado, isso ainda não germinou, infelizmente.

O TJDFT oferece um atendimento conjunto com o Ministério Público e a Defensoria que é a Central Judicial do Idoso. Qual a principal demanda verificada nessa unidade e a que a senhora atribui isso?

Quando a Central foi criada há 12 anos, nós inicialmente buscávamos difundir os direitos da pessoa idosa em todo o Distrito Federal e, a partir daí, centralizar as demandas de idosos em situação de risco. Com o passar do tempo, percebemos que a demanda relacionada a crime à pessoa idosa é muito grande e isso realmente assustou, porque não imaginamos que teria uma demanda tão reprimida. Pensamos que iríamos encontrar uma demanda de cíveis, como plano de saúde, relacionadas ao sistema de transporte, mobilidade urbana, e que iríamos encontrar crime também, mas não nessa proporção. Outro fator que a estatística revelou, que nos deixou preocupados e em alerta, foi que 60% desses crimes são cometidos dentro de casa, onde o Estado não consegue entrar. Então ele chega se a família abrir a porta. Fora isso, a possibilidade de controle é muito pequena. Então, temos um sistema judicial que até funciona, com a polícia, o Ministério Público e a Justiça – mas não queremos chegar nesse ponto.

A Central optou por adotar medidas mais adequadas para a solução do conflito que se encaixam bem na mediação. A partir de 2014, percebemos que se favorecêssemos o diálogo entre famílias com situação de risco, iríamos interromper o ciclo de violência nessa família e, na maioria das vezes, não permitir que esse conflito - que ainda é só um conflito de divergências e interesses, chegasse na posição de crime e de risco em relação à pessoa idosa. E fomos muito frutíferos nas nossas demandas. A mediação hoje consome boa parte dos nossos atendimentos que, na maioria das vezes, são conflitos intergeracionais.

A família de hoje é muito diferente da família do passado. Tínhamos uma família concentrada em uma relação monogâmica, na maioria das vezes, heterossexual, com muitos filhos e, com o passar do tempo, essa mulher foi para o trabalho, fazendo a quantidade de filhos diminuir. Acrescentamos as famílias monoparentais, homoafetivas, mosaico, para cuidar de um idoso que está cada vez mais longevo. Por volta de 1960, tínhamos uma expectativa de 50 anos. Hoje estamos falando de um idoso de 80 anos. Ele ganhou 30 anos, mas quem vai cuidar desse idoso com uma família cada vez menor e com tantas desestruturas ou estruturas disfuncionais? É nesse contexto que encontramos um ambiente propício para o conflito intergeracional. É por isso que tentamos conversar sobre essa restauração de vínculos, sobre o empoderamento da pessoa idosa, sobre a necessidade de ele ser ouvido para que o direito dele seja realmente respeitado.

A gente sabe que, assim como as mulheres, muitos idosos hoje são os responsáveis pela manutenção econômica das famílias, o que inclusive protela seus planos de aposentadoria. Como a senhora vê essa conformação social e quais as suas principais implicações?

A gente tem visto o aumento gradativo da violência financeira em relação à pessoa idosa. Isso não é uma perspectiva só do Distrito Federal, mas do Brasil inteiro. Por que? Porque o idoso é a renda da casa, principalmente no Nordeste. A estatística demonstra que praticamente 50% dos idosos do Nordeste sustentam suas famílias com o dinheiro de uma aposentadoria. É obvio que uma aposentadoria, muito provavelmente, não seria suficiente para suportar nem os seus gastos pessoais, porque na velhice o aumento desses gastos é muito grande: remédio, saúde, enfim... Então esse ambiente fica propício à existência de abusos financeiros. No Distrito Federal não é diferente, só que aqui a gente tem idosos com uma perspectiva financeira maior e nós temos os idosos que fundaram Brasília. Muitos aposentados pioneiros do Distrito Federal, com rendas muito altas, e que mesmo assim não conseguem comprar um remédio de pressão alta. Nós recebemos, no ano passado, uma idosa com uma renda de 70 mil por mês, e ela não tinha renda pra ela! Essa é uma conformação que precisa ser mudada, né? Famílias inteiras sendo sustentadas pelos seus pais. Mas a Justiça não consegue resolver esse problema. São diversas políticas sociais, de educação, enfim, que vão precisar andar de mãos dadas pra que esse peso seja cada vez menor sobre a pessoa idosa. Para que o idoso não seja sobrecarregado, o Estado precisa fazer sua parte e as famílias, formar um novo contexto de vida.

Ainda sobre esse aspecto do envelhecimento ativo das pessoas, a senhora entende como legítima a manutenção das pessoas no mercado de trabalho por mais tempo?

Essa é uma pergunta para a qual eu daria duas respostas. Por quê? Porque sobre o ponto de vista da dignidade, a gente sabe que precisa de um momento para parar. Mas quando a gente percebe que o idoso de 60 hoje, continua sendo produtivo, e talvez parar, para ele, não seja uma boa estratégia de envelhecimento saudável, eu não acho errado ele continuar trabalhando. A minha perspectiva é só de que esse exercício da atividade seja uma opção do idoso, e não uma imposição do Estado.

Assim, nós vamos precisar mexer nas regras da aposentadoria, porque o Fundo [do Regime Geral de Previdência Social] não vai sustentar essa perspectiva de um adolescente para quatro idosos, pois a conta já não fecha. De toda forma, a gente precisaria de regras de transição e de avaliações da circunstância. Como eu disse: uma idosa, no nordeste, com sobrecarga de desgaste físico, não tem as mesmas condições de quem está no ar condicionado, é fato. Mas que essa pessoa tenha a oportunidade de escolher, se tem condições de continuar trabalhando ou não. Mas, pelo que temos visto, com 60 anos a maioria tem condições de trabalhar. Pode estar cansada, mas tem saúde física, emocional e intelectual para continuar desenvolvendo.

Se a gente pensar no nosso Tribunal, poucos são os desembargadores que têm menos de 60 [anos] e eles continuam trabalhando normalmente. Então, além de negar a sabedoria que vem do envelhecimento, além de negar o conhecimento que vem do envelhecimento, dizer que ele não tem capacidade de continuar exercendo a sua profissão, também é uma violência. Eu não posso dizer: "Fez 60, você tem que sair daí porque agora você é inútil para nós! " Isso seria uma violência institucionalizada. A gente espera que ele continue produzindo, por acreditar que a pessoa tem a capacidade de escolher até aonde quer ir. Mas o Brasil vai precisar mudar suas políticas públicas, porque com esse envelhecimento não é só a política pública que está em jogo; saúde também está e uma série de outras coisas.