A Tutela Inibitória e Liberdade de Imprensa - Dr. Carlos D. V. Rodrigues - Juiz titular da 15ª Vara Cível

por ACS — publicado 2006-05-05T00:00:00-03:00
No âmbito das garantias fundamentais e naquilo em que se assenta a organização do Estado democrático, consoante agasalhado na Constituição Federal em seu art. 5º, entre outras, não se pode olvidar de que o devido processo legal traduz indeclinável ferramenta a serviço da cidadania.

Todavia, mesmo inexistindo qualquer hierarquia de valores no rol das garantias fundamentais, não raro, diante dos conflitos intersubjetivos que se instauram e desafiam a composição como meio de restabelecer ou manter a ordem social, restará ao Estado-jurisdição resolver o dissídio, valendo-se de garantias que aparentemente se entrechocam. Para esse propósito, tem elevado significado a garantia constitucional agasalhada no inciso XXXV, do art. 5º, ao assegurar que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (Grifei.)

É certo que em proveito da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, regulada pela Lei de Imprensa (nº 5.250/67), lhe foi emprestado reforço de índole constitucional inserido por meio dos incisos do art. 5º, ao assegurar textualmente que é livre a manifestação do pensamento (inc. IV); a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (inc. IX); e, ainda, o acesso à informação (inc. XIV).

Contudo, essas garantias essenciais ao funcionamento dos órgãos de imprensa não infirmam, em face de quem sobressaia prejudicado ou ameaçado, o direito de resposta proporcional ao agravo (inc. V); e, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e a imagem (inc. X). Some-se a isso que, nos termos dos incisos V e X, ainda é garantido à vítima o direito à indenização por danos materiais, morais ou à imagem.

A motivação sociológica que permanentemente inspira o legislador a inovar e atualizar o ponto de equilíbrio das relações interpessoais encontrou no derradeiro momento, ao ensejo da edição do Código Civil de 2.002, a oportunidade de reafirmar valores já encartados na Lei 5.250/67 e na Constituição de 1988, ao estabelecer por meio do seu art. 12 que Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito de personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Enquanto a Lei de Imprensa, a Constituição e o Código Civil cuidam, em regra, de regulamentar o conteúdo material dos valores em foco, as leis de processo se ocupam da disciplina formal através da qual a garantia do devido processo legal se manifesta de forma concreta em proveito das pessoas sujeitas ao império da lei, outorgando-lhes a proteção efetiva planejada pelo ordenamento jurídico, inclusive com o status constitucional.

Nesse rumo, segundo o disposto no art. 461 do CPC, com a redação determinada pela Lei 8.952/94, Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (Grifei.)

A norma processual em tela se reveste de extrema eficácia jurídica, atual e consentânea com os anseios de celeridade reclamada pelos jurisdicionados, a qual se completa com a possibilidade de reconhecimento e aplicação em regime de urgência, quando combinada com o instituto da antecipação de tutela a que se refere o art. 273 do mesmo Código de Processo Civil.

A par de tais dispositivos de leis, não raramente quando o conceito de ?liberdade de imprensa? resulta mal compreendido e interpretado em sentido absoluto, sobressai ferido ou ameaçado o direito individual igualmente garantido em sede constitucional, garantia essa que não está subordinada a nenhuma diferenciação hierárquica com as prerrogativas dadas em proveito da liberdade reconhecida aos órgãos da imprensa. Logo, no instante da lesão ou ameaça a direito individual, instaura-se a oportunidade natural para que o interessado recorra ao Poder Judiciário em busca de uma composição para a lesão já consumada ou postule uma tutela inibitória diante de ameaça que se desponta iminente.

Conquanto certas prerrogativas constitucionais tenham sido erigidas com o firme propósito de tornar efetiva a denominada liberdade de imprensa, também não se pode negar que, simultaneamente a elas, igualmente restaram reconhecidas as fundamentais garantias individuais inerentes à intimidade, a vida privada, a honra e à imagem das pessoas. Por isso, quando se opera em busca da concretude da norma de direito positivo, é de se ter em conta que as garantias fundamentais inseridas no art. 5º da Constituição não constituem compartimentos estanques, nem se sobrepõem hierarquicamente umas às outras, de modo que, assim, somente a interpretação sistemática dos valores considerados permitirá ao Estado-jurisdição editar o texto da composição compatível com o dissídio concretamente instaurado, capaz de assegurar às partes ou interessados a medida exata dos respectivos direitos ou prerrogativas.

Com efeito, a fim de que o sentido prático que a interpretação teleológica reclama ao tema, não se pode incorrer no equívoco de pensar que a liberdade de imprensa não encontre limites. Aliás, não se conhece mesmo qualquer direito que, em termos jurídicos, possa ser exercido em caráter absoluto. No ordenamento jurídico que construímos nem mesmo o direito à vida ? seguramente o mais elevado - é absoluto. Afinal, e a título de exemplo, se não se reconhece o direito absoluto à vida, uma vez que é possível a pena de morte no Brasil na hipótese do inciso XLVII, ... em caso de guerra declarada, ..., é de se admitir que o direito de liberdade reconhecido aos órgão da imprensa também encontre limitações. Logo, considerando que está assegurado pela lei a liberdade de imprensa, também por lei é que se estabelecem as restrições ou limites a essa mesma liberdade. Portanto, sem dúvida alguma, estamos diante de um direito limitado.

A questão que rende maior dificuldade aos que lidam com o direito de informar ou manifestar o pensamento, ou mesmo aos que operam com o sistema judiciário, reside na ausência de cláusulas legais proibitivas expressas, que assim pudessem sinalizar em forma de advertência até onde se estende ou termina o direito de informar ou manifestar o pensamento. Porém, nesse particular, por questão de técnica legislativa, não seria mesmo possível escrever tais limites.

Desse modo, já que não se nega o caráter relativo com que a liberdade de imprensa é exercida, a demarcação dos limites dessa liberdade se fará não pela advertência expressa da lei, mas pela comparação entre os preceitos de garantia que ora funcionam em favor da atividade reservada à imprensa, ora às pessoas naturais ou jurídicas, todas sujeitas ao mesmo regime jurisdicional. Logo, para que esses limites se revelem, basta o exercício mental singelo através do qual o intérprete da lei identifique a partir de quando o exercício do direito de informar ou manifestar o pensamento passe a constituir ferimento ou ameaça ao interesse de outrem, igualmente garantido no contexto normativo vigente.

Aqui tem incomum aplicação a regra básica de bom relacionamento entre pessoas, tantas vezes cotejada desde os primeiros tempos da educação familiar ou escolar, segundo a qual o direito de um termina onde começa o do outro.

Portanto, pelo método dedutivo, pode-se concluir que a liberdade de imprensa, já que não é absoluta, vai somente até onde não ofende o direito individual à intimidade, à vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Afinal, o exercício de qualquer direito, quando acometido pelo excesso, retira do agente a legitimidade que a lei lhe reconhecia, para constituir-se em verdadeiro ato ilícito assim definido no art. 187 do Código Civil, ao dizer que Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Não nos esqueçamos de que os atos ilícitos em geral, resultantes de ação ou omissão voluntária e que venham causar danos a outrem, sujeitam o agente ou o responsável por ele a indenizar nos moldes da tradicional responsabilidade civil subjetiva a que se refere o art. 186 do referido Código Civil.

Com efeito, diante do disposto no inciso XXXV, do art. 5º da Constituição Federal e desde de que sob provocação da vítima do dano ou ameaça, mostra-se absolutamente legítima a intervenção estatal voltada a regular o âmbito da dissidência dos interesses intersubjetivos, não só para impor a recomposição das partes em face de lesão já consumada, como ainda ditar medida capaz de prevenir contra ameaça iminente, pois a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (g.n.).

O teor do inciso XXXV do art. 5º da Constituição Federal não é apenas referência a uma das garantias fundamentais, mas é também o ponto de partida sobre o qual a organização do Estado Democrático de Direito se assenta para legitimar o monopólio jurisdicional instituído e reservado ao Poder Judiciário e, ainda, definir-lhe os limites de sua atuação somente para ditar provimentos de composição nas hipóteses de lesão já consumada a direito individual, como ainda ditar provimentos preventivos diante de ameaça iminente a direito individual, não havendo sequer oportunidade para responder a meras consultas de natureza jurídica, ainda que de elevada relevância.

Está aí a matriz de toda a proteção jurídica que torna legítima a atuação do Estado-jurisdição, constituindo mesmo um poder-dever, para proferir decisões que se constituem em instrumento de garantia da paz social. E entre as espécies de intervenções legítimas que ao Estado compete em relação aos interesses particulares, tem inteira pertinência ao tema em apreço, se a vontade da lei material assim o exigir, a concessão de tutela inibitória contra ameaça a direito individual, podendo e devendo o juiz, por isso, determinar medidas que obstem a consumação da ameaça, segundo a regra encartada no art. 461 do CPC. Afinal, não se mostra razoável a atuação jurisdicional somente diante de uma lesão já consumada, mas que seja eficiente também para proteger o interesse individual diante da ameaça a direito.

As decisões judiciais tomadas até mesmo em sede de antecipação de tutela (art. 273 do CPC), que tenham por efeito obstar a consumação da ameaça impugnada pelo interessado, através do devido processo legal, evidentemente não haverão de contemporizar com quaisquer privilégios ou favorecimentos e, quando proferidas com desacerto valorativo das cláusulas de lei, haverão de se submeterem ao reexame recursal ? outra garantia constitucional reconhecida no art. 5º LIV ao assegurar o devido processo legal, além do duplo grau de jurisdição acolhido no art. 475 do CPC.

Logo, não será por temor à crítica ou à mídia que o juiz poderá se eximir de outorgar a garantia da lei a quem nela está constitucionalmente ancorado. Mesmo diante da possibilidade de enfrentar a incompreensão e o repúdio de quem ainda não assimilou bem o conceito da liberdade de imprensa, haverá de velar pelo império da lei, pois, se quedar nesse delicado momento, os mesmos princípios que garantem a liberdade de imprensa, advindos do Estado Democrático de Direito, seguramente estarão rompidos a ponto de comprometer esse mesmo Estado Democrático de Direito e, num passo seguinte, a própria liberdade que aos mesmos órgãos da imprensa foi fortemente assegurada.

Volta e meia soam inoportunas conclusões no sentido de que o Poder Judiciário, por seus membros, restabelecem a ?censura?, na medida em que, por meio de tutelas inibitórias, concedem proteção a direito individual ameaçado de lesão em razão de veiculações inexatas ou excessivas.

Entretanto, tais críticas somente cabem aos que, mais uma vez, se mostram desconhecedores do que foi a censura que permeou o regime político anterior à Constituição de 1.988.

Desse modo, faz-se necessário recordar que a ?censura? banida do nosso sistema legal, em decorrência do disposto no art. 5º, inc. IX, da Constituição Federal, é aquela que se fazia por meio de autoridade administrativa. Mas, no sistema das garantias legais vigente, somente a autoridade judiciária estará investida de tal poder-dever, desde que obedecida a forma e verificadas as condições materiais para a intervenção estatal voltada a disciplinar as relações interpessoais.

A censura banida através do art. 5º, inciso IX da Constituição Federal é aquela de natureza administrativa, que condicionava a difusão das idéias ou informações à ideologia política orientada pelo regime político anterior à Constituição atual. É, portanto, falsa ? ou maldosa - a conclusão que equipara ou confunde a censura administrativa antes existente, com o lídimo poder/dever que compete ao Estado-jurisdição, quando atua institucionalmente na forma do art. 5º, XXXV da Constituição, já que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciári lesão ou ameaça a direito;

Ainda de modo a que não se confunda a censura expurgada pela garantia constitucional, é de se lembrar que a autoridade administrativa, no sistema anterior, agia sem provocação alguma, no suposto zelo pelos valores da causa comum, sem utilização do instrumento do devido processo legal, inexistindo mesmo a possibilidade de recurso ou reexame.

No que concerne ao controle judicial que cabe ao Poder Judiciário, menos por prerrogativa e mais por dever institucional, o controle se faz por meio de autoridade judiciária competente e legítima, unicamente mediante provocação do interessado, em face de uma postulação formal individual e por meio do devido processo legal, inclusive com a possibilidade de recurso em favor de quaisquer das partes interessadas.

Por isso, havendo ameaça injusta a direito individual, mostra-se dever do Estado coibir ou prevenir, mediante provocação do interessado, a ameaça a direito individual que desponte através de quaisquer dos meios de comunicação de que se valem os órgãos de imprensa, naquilo que excedem no direito de informar ou manifestar o pensamento.

Não se trata de prerrogativa do juiz. Afinal, diante de um direito individual violado ou sob ameaça, desde que mediante provocação formal, constitui dever indeclinável do magistrado outorgar a garantia do primado constitucional em proveito da vítima, não havendo por isso, jamais, de quedar-se ante o temor de que o controle jurisdicional que lhe compete nesse campo possa submetê-lo à execração, ação ou reação de quem vier desagradar, mesmo quando não lhe for assegurada a oportunidade de expor-se publicamente perante a sociedade e justificar seus motivos, restando-lhe, apenas, contentar-se em bem fundamentar suas razões no momento de decidir.

Brasília, 28 de Setembro de 2.005







(*) O autor é juiz de direito titular da 15ª Vara Cível de Circunscrição Judiciária de Brasília/DF.