As três vias de responsabilidade por degradação ambiental - Parte I - Juíza Oriana Piske

por ACS — publicado 2006-11-20T23:00:00-03:00
Parte I

Sumário: Introdução. 1. Degradação da qualidade ambiental. 2. Breve histórico do Direito Ambiental. 3. Importância dada ao meio ambiente na Carta Constitucional Brasileira de 1988. 4. Responsabilidade Civil. 4.1. Bases da Responsabilidade Civil.4.2. Pressupostos da Responsabilidade Civil. 4.2.1. Dano. 4.2.2. Fato causador do dano ou ação lesiva. 4.2.3. Nexo causal entre o fato e o dano verificado. 4.3. Fatos geradores da Responsabilidade Civil. 4.3.1. Ato Ilícito. 4.3.2. Exercício de Atividade Perigosa. 4.3.3. Abuso de direito 4.4 Responsabilidade por dano ambiental. 4.5. Influência do Código de Defesa do Consumidor na tutela ambiental. 4.6. Posicionamento dos tribunais. 5. Responsabilidade Administrativa. 5.1. Infrações e sanções administrativas. 5.1.1. Multa. 5.1.2. Perda ou restrições de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo poder público e/ou perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito. 5.1.3. Suspensão de atividades. 5.1.4. Suspensão de atividades licenciadas. 5.1.5. Suspensão de atividades não autorizadas. 5.1.6. Redução das atividades. 5.2. Formalização das sanções 5.3. Poder de polícia ambiental 5.3.1. Quem pode exercer o poder de polícia ambiental. 5.3.2. Contra quem pode ser exercido o poder de polícia ambiental. 6. Responsabilidade Penal. 6.1. Crimes contra o meio ambiente. 6.2. A Constituição e os crimes ambientais. 6.3. Legislação Penal Ambiental. 6.4. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de Direito Público na Lei 9.605/98. 6.5. O Juizado Especial Criminal. 6.6. Direito Penal ambiental comparado. 6.7. Posicionamento dos Tribunais. 7. Pontos de tangência das três vias. Conclusões. Bibliografia.

Introdução

Esta análise crítica das três vias de responsabilidade pela degradação ambiental, procura realçar o aspecto civil, administrativo e penal da responsabilidade em face da depredação do meio ambiente. Este tema revela-se de fundamental importância não somente do Direito Ambiental, como também do Direito Constitucional.
A Constituição Brasileira de 1988 procurou dar ao meio ambiente uma proteção especial, sendo inovadora em vários pontos, principalmente ao atribuir a todos a responsabilidade pela defesa de uma vida sadia para esta e para as futuras gerações. Estabelece um dever do Poder Público não excludente quanto ao dever de todo os cidadãos.
É de se esperar que o ser humano, cada vez mais, aperfeiçoe e desenvolva mecanismos que permitam compatibilizar o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente, visto que longe de serem incompatíveis, como já se cogitou antigamente, esses dois temas são fundamentais para a sociedade e devem conviver em harmonia, para que haja um maior equilíbrio e justiça social entre os povos. Assim, mostra-se indispensável promover a adequada reparação dos danos sofridos em decorrência de atividades degradadoras dos recursos naturais.

1 Degradação da qualidade ambiental

O meio ambiente constitui-se no conjunto de elementos naturais e culturais que favorecem o desenvolvimento pleno da vida em todas suas formas. Assim, a preservação, a recuperação e revitalização do meio ambiente há de ser uma preocupação todos.
A transformação adversa das características do meio ambiente é considerada pela lei como a degradação da qualidade ambiental (Lei 6.938, de 1981, art. 3o, II), a qual pode comprometer a atmosfera, hidrosfera ou litosfera. Daí, a necessidade de se conhecer as formas de degradação ambiental, com o escopo de desenvolver uma consciência ecológica visando à efetiva responsabilização de tais condutas.
O desmatamento, as queimadas, a devastação da flora, a poluição, a degradação do solo, constituem-se em formas de depredação ambiental.
O desmatamento irracional vem transformando várias regiões, no Brasil e no mundo, em um verdadeiros desertos. As queimadas têm empobrecido sensivelmente o solo, retirando-lhe os nutrientes indispensáveis. Apenas recentemente se passou a incentivar e a impor florestamento e reflorestamento, o que por si não recompõe os elementos destruídos.
A poluição é a mais perniciosa forma de degradação do meio ambiente e o Decreto Federal 76.389, de 3.10.75, estabelece como poluição:

?qualquer alteração das propriedades físicas, químicas ou biológicas do meio ambiente (solo, água e ar), causada por qualquer substância sólida, líquida, gasosa ou em qualquer estado da matéria, que, direta ou indiretamente:
? ? seja nociva ou ofensiva à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações;
? ? crie condições inadequadas para fins domésticos, agropecuários, industriais e outros; ou
?? ocasione danos à fauna e à flora.?

A melhor definição de poluição encontra-se na Lei 6.938, de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, no art. 3o , que a considera como degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente:

a) prejudique, a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.

Segundo Paulo Affonso Leme Machado, neste conceito ?são protegidos o Homem e sua comunidade, o patrimônio público e privado, o lazer e o desenvolvimento econômico através das diferentes atividades (alínea ?b?), a flora e a fauna (biota), a paisagem e os monumentos naturais, inclusive os arredores naturais desses monumentos?. Argumenta, ainda, que ?os locais de valor histórico ou artístico podem ser enquadrados nos valores estéticos em geral, cuja degradação afeta também a qualidade ambiental.?
A poluição para ser considerada como tal, deve influir de forma nociva ou inconvenientemente, direta ou indiretamente, na vida, na saúde, na segurança e no bem-estar da população.
As alterações ambientais quando toleráveis não merecem repressão, enquanto aquelas prejudiciais à comunidade caracterizam-se como poluição reprimível. Para tanto, há necessidade de prévia fixação técnica e legal dos índices de tolerabilidade.
A Lei 6.938, de 1981, em seu art. 3o, inciso III, considera poluidor a pessoa física ou jurídica, de Direito Público ou Privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental.
São consideradas poluentes ?todo fator de perturbação das condições ambientais, não importa a sua natureza, viva ou não, química ou física, orgânica ou inorgânica?.
A propósito, vale destacar, que constantes desastres ecológicos vem despertando a consciência ambientalista por todo o mundo, e as nações passam a refletir sobre os erros do passado e sopesar que avanços podem ser dados no futuro em termos de desenvolvimento econômico, tendo-se em mente, também a compatibilização do ecológico, para, assim, preservar o patrimônio ambiental global.

2 Breve histórico do Direito Ambiental

A sociedade industrial, surgida no século XIX, estruturou-se sobre a ideologia do liberalismo, tendo como princípio fundante a livre concorrência ? a liberdade de empresa, cujos padrões de produção e consumo vêm gerando notável depredação ambiental em decorrência de: aumento de poluição pelas fábricas e veículos automotores; emprego desordenado de substâncias agrotóxicas na produção agrícola; consumismo desmedido; uso irracional dos recursos naturais; acúmulo de lixo não degradável.
Com efeito, a partir da Revolução Industrial houve uma crescente demanda por energia levando a uma intensa exploração de reservas de petróleo e carvão. A queima destes combustíveis aumentou a emissão e concentração de gás carbônico na atmosfera, o que vem gerando diversas alterações climáticas, sendo este o mais grave problema ambiental, pois não afeta apenas os países industrializados, mas todo o globo.
O alucinante progresso econômico do século XX teve como fundamento o uso indiscriminado dos recursos naturais, antes considerados inesgotáveis. Por outro lado, foi a polêmica suscitada pela questão da energia nuclear, nos anos 60, e o aumento inesperado dos preços de petróleo, nos anos 70, que suscitaram os primeiros debates sobre a escassez de recursos naturais e levaram à percepção da finitude da biosfera. Esta preocupação ambientalista tornou-se sensível, desde os anos 60, com o aparecimento de um movimento social engajado no enfrentamento da questão nuclear, em vários países europeus e nos Estados Unidos. A sociedade civil e seus movimentos ativistas passaram a volver seu olhar, também, para o problema da degradação do meio ambiente, que já ameaça a continuidade da sobrevivência na Terra.
Neste passo, a humanidade passou a refletir sobre a necessidade da tutela dos recursos ambientais.
A realização da I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, de 5 a 16 de junho de 1972, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) trouxe o reconhecimento mundial para a importância da discussão e mobilização, visando à preservação ambiental e ao equilíbrio ecológico global. O resultado desse encontro foi a Declaração sobre o Ambiente Humano, emanada da Assembléia Geral das Nações Unidas, tendo como o objetivo maior de atender ?... a necessidade de um ponto de vista e de princípios comuns, para inspirar e guiar os povos do mundo na preservação e na melhoria do ambiente...?
Entre os princípios enumerados na referida Declaração encontra-se o seguinte:

?4 - O Homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio representado pela flora e fauna silvestres, bem assim o seu habitat, que se encontram atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos. Em conseqüência, ao planificar o desenvolvimento econômico, deve ser atribuída importância à conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres.?

Tal princípio dispõe sobre a responsabilidade de todos na preservação e equilíbrio do meio ambiente. Portanto, se não cumprida tal obrigação, surge a responsabilidade nas modalidades e efeitos que lhe são inerentes.
Em junho de 1992, realizou-se a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, tendo os participantes subscrito a Declaração do Rio de Janeiro, onde se destaca o Princípio n. 13:

?Os Estados devem elaborar uma legislação nacional concernente à responsabilidade por danos causados pela poluição e com a finalidade de indenizar as vítimas.?

Assim, funda-se em tal princípio, a possibilidade de enfocar os danos ambientais em sentido amplo, desdobrando-os em: a) danos ambientais propriamente ditos, decorrentes de agressões ao patrimônio público ambiental; b) os que ofendem direitos individuais homogêneos, consistentes em danos patrimoniais e extrapatrimoniais, causados a pessoas ou grupos de pessoas delimitados ou delimitáveis, em conseqüência do dano ambiental.
A violação de um preceito normativo pode dar origem a sanções de diversas naturezas, e a cada uma corresponde um tipo de responsabilidade civil, administrativa ou penal, conforme aos seus objetivos peculiares e, em conseqüência, as sanções diferem entre si. Assim, a degradação ambiental poderá gerar responsabilidade nas três vias: civil, administrativa e penal.

3 Importância dada ao meio ambiente na Carta Constitucional brasileira de 1988

A Constituição de 1988 destacou o meio ambiente em capítulo próprio (Capítulo VI), integrando-o no Título VIII ? da Ordem Social, o qual tem como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. A Lei Maior salvaguarda o direito de todos ao meio ambiente em equilíbrio, para atender ao reclamo dos indivíduos e da coletividade a uma vida sadia, em sintonia com a natureza.
Consoante se deflui do art. 225, impõe-se ao Poder Público, com o escopo de assegurar a efetividade desse direito:

a) preservar os ecossistemas, as espécies, a integridade do patrimônio genético do País;
b) definir os espaços territoriais, nas unidades da Federação, a serem protegidos;
c) exigir estudo prévio de impacto ambiental, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental, devendo ser dada publicidade; controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
d) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino;
e) proteger a fauna e a flora.

A Constituição Cidadã foi além, ao constitucionalmente responsabilizar, no aludido artigo, especificamente nos parágrafos 2o e 3o, respectivamente, aquele que explorar recursos minerais, ficará obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, em conformidade com a solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei; e, aos infratores de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, sejam pessoas físicas ou jurídicas, sujeitando-os as sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparação civil. Acrescente-se que a pessoa jurídica passou, neste caso, a uma responsabilização funcional.
Portanto, a Carta Constitucional de 1988 ao declarar, em seu preâmbulo, um Estado democrático de Direito, tendo como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana, assume uma postura coerente ao desenvolver a idéia da objetivação da responsabilidade em relação ao dano ambiental, seja nos casos de danos nucleares (art. 21, XXIII, ?c?), e, das pessoas jurídicas, que notadamente e notoriamente, por vezes, têm se revelado as mais degradadoras do meio ambiente. Verifica-se, assim, a base do traçado constitucional das vias da reparação por degradação ambiental.
Para uma nação desenvolver uma consciência ambientalista, ela precisa conhecer e aplicar os princípios fundantes do Direito Ambiental que, na verdade, são princípios universais de Direito particularizados a este enfoque, ao tempo que vêm evoluindo em dimensão global.
São dez os princípios elencados por Paulo Affonso Leme Machado, que traduzem a densidade e diversidade de perspectivas que o Direito Ambiental ou Ecológico vem assumindo no contexto histórico mundial:

?1. O homem tem direito fundamental a condições de vida satisfatórias, em um ambiente saudável, que lhe permita viver com dignidade e bem-estar, em harmonia com a natureza, sendo educado para defender e respeitar esses valores.
2. O homem tem direito ao desenvolvimento sustentável, de tal forma que responda eqüitativamente às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras.
3. Os países têm responsabilidade por ações ou omissões cometidas em seu território, ou sob seu controle, concernentes aos danos potenciais ou efetivos ao meio ambiente de outros países ou de zonas que estejam fora dos limites da jurisdição nacional.
4. Os países têm responsabilidades ambientais comuns, mas diferenciadas, segundo seu desenvolvimento e sua capacidade.
5. Os países devem elaborar uma legislação nacional correspondente à responsabilidade ambiental em todos os seus aspectos.
6. Quando houver perigo de dano grave e irreversível, a falta de certeza científica absoluta não deverá ser utilizada como razão para adiar-se a adoção de medidas eficazes em função dos custos, para impedir a degradação do meio ambiente (princípio da precaução).
7. O Poder Público e os particulares devem prevenir os danos ambientais, havendo correção, com prioridade, na fonte causadora.
8. Quem polui deve pagar e, assim, as despesas resultantes das medidas de prevenção, de redução da poluição e da luta contra a mesma, devem ser suportadas pelo poluidor.
9. As informações ambientais devem ser transmitidas pelos causadores, ou potenciais causadores de poluição e degradação da natureza, e repassadas pelo Poder Público à coletividade.
10. A participação das pessoas e das organizações não governamentais nos procedimentos de decisões administrativas e nas ações judiciais ambientais deve ser facilitada e encorajada.?

Destes princípios denota-se que: o direito a um ambiente sadio é um direito inalienável de todo ser humano; há a necessidade de preservação das espécies como condição para uma vida harmônica do homem com a natureza; atribui-se aos países responsabilidade pelos atos poluidores cometidos sob sua jurisdição; a responsabilidade compete a todos os países, porém deve ser atribuída razoável e equitativamente; há a responsabilidade do poder público pelas ações e decisões que prejudiquem ou possam prejudicar o meio ambiente; a obrigação de serem tomadas atitudes imediatas de proteção ao meio ambiente, mesmo que o perigo de dano não possa ser reconhecido com absoluta certeza; impõe-se o dever de prevenção, repressão e reparação integral do dano ambiental, sempre que possível; a responsabilidade ambiental, decorrendo a obrigação de pagar e reparar aquele que polui; a obrigatoriedade de o causador do dano informar sobre as conseqüências da sua ação à população por ela atingida; o direito ao livre acesso para as pessoas e organizações não-governamentais que queiram participar do processo nas decisões públicas ambientais e junto ao Poder Judiciário para a defesa dos interesses difusos.
Analisando o referido rol de princípios, verifica-se que a Carta Constitucional brasileira de 1988 procurou observá-los, a fim de salvaguardar o direito maior ? a vida no planeta. Resta a cada um (indivíduos, sociedade civil, empresas públicas, privadas e Estado) ter consciência deste princípios, reconhecendo-os como vetores primordiais para uma existência saudável e em harmonia global.

4 Responsabilidade Civil

A responsabilidade é decorrência de toda manifestação humana, e tem como escopo impor a uma pessoa uma obrigação de ressarcir os danos sofridos por alguém. Na área cível concretiza-se no cumprimento de uma obrigação de fazer ou não fazer, e no pagamento de condenação em dinheiro. Comumente, a aplicação desse dinheiro reverte-se em atividade ou obra de prevenção ou de reparação do prejuízo.
A obrigação compõe-se, normalmente, de dois elementos: o débito (Schuld) e a responsabilidade (Haftung). O débito pertence exclusivamente ao Direito Privado, enquanto que a responsabilidade envolve, também, o campo do Direito Público.
A responsabilidade visa à reconstituição da situação existente antes da ocorrência do fato causador do dano. Segundo Michel Villey, o termo ?responsabilidade? está ausente no direito romano, aparecendo nas línguas européias no fim do século XVIII. Entretanto, para o citado autor, o termo ?responsável? surgiu depois do século XIII, através do termo responsum, derivado de respondere.
Afinal, a etimologia do vocábulo responsabilidade estava ou não ligada à idéia de culpa? Villey sustenta que não, alegando que

?o fundamento do regime romano de reparação de danos não é a culpa, mas a defesa de uma justa repartição entre os bens partilhados entre as famílias, isto é, de um justo equilíbrio: Suum cui que tribuere, aequabilitas. Quando intervém uma ruptura deste equilíbrio, um prejuízo contrário ao direito e à justiça (damnum injuria datum), entra em jogo a justiça chamada ?corretiva, cuja função será reduzir o desequilíbrio?.

A noção de culpa era usada para crimes; assevera, ainda, o referido professor francês, que
?a doutrina do século XIX elabora a teoria da responsabilidade civil, fundada no princípio do art. 1.382 do Código Civil. Esta parte do curso de direito privado ? inteiramente colocada sob a égide da responsabilidade moral ? é um produto acadêmico, um produto de extravasamento do espírito do sistema, alicerçada sobre o modelo das construções da escola histórica alemã, ressentindo-se da influência da filosofia kantiana?.

Considerando o art. 159 do Código Civil brasileiro verifica-se que o legislador, à época, seguiu o modelo acolhido pelo Código francês de 1804, cujo referido art. 1.382 apresenta redação semelhante. Os doutrinadores e tribunais brasileiros seguiram o pensamento dos diversos juristas franceses que se pautaram no estudo do Código de Napoleão, firmando-se, no Brasil, o entendimento que o art.159 consagra a responsabilidade subjetiva ou da culpa, como princípio geral da responsabilidade civil no Direito brasileiro.
As profundas mudanças ocorridas no mundo e no Direito refletiram nos princípios reguladores da responsabilidade civil, os quais acompanharam a evolução do Direito Civil, através do avanço da responsabilidade objetiva sobre áreas antes regidas pelo princípio geral da exigibilidade da ocorrência da culpa, ampliando-se os casos em que a obrigação passou a ser independentemente de culpa, substituída pelo princípio da responsabilidade fundada no risco da atividade.

4.1 Bases da Responsabilidade Civil

São considerados fundamentos da responsabilidade civil, a culpa ou o risco. Na teoria da culpa (subjetiva), é imprescindível a verificação do elemento subjetivo do agente, ou seja, para a sua ocorrência é fundamental que o agente tenha atuado com negligência, imprudência ou imperícia. Na teoria do risco (objetiva), basta a simples demonstração do nexo de causalidade pelo exercício da atividade perigosa, sem se cogitar do aspecto subjetivo da conduta do agente.
No Brasil, a responsabilidade subjetiva é a regra geral no dever de indenizar. Ela está fundamentada na noção de um comportamento em contrariedade ao direito de ação ou omissão que venham a causar dano, existindo liame causal entre um e outro.
A responsabilidade objetiva, é a exceção. Contudo, sua importância vem crescendo à medida que a vida moderna apresenta inúmeros casos em que a indenização individual, fundada na idéia de culpa, não traz solução aos problemas. Exemplifica Vladimir Passos de Freitas, ensinando que ?nas hipóteses de acidente do trabalho, desde 1944, através do Decreto-lei 7.036, de 10 de novembro, prevê que a responsabilidade do empregador ou do órgão securitário é objetiva. Isso se deu porque no interior das fábricas era impossível ao empregado provar a culpa do empregador. Seus colegas se recusavam a depor, receosos de perder o emprego. Surgiu, assim, a responsabilidade objetiva do patrão, invertendo-se o ônus da prova. A ele é que cumpria demonstrar a culpa do empregado, cabendo-lhe, caso não o fizesse, indenizar o dano sofrido.?
O Código Civil brasileiro manteve a responsabilidade subjetiva. Entretanto, mesmo nele há situações em que a jurisprudência tornou este dever objetivo. Por exemplo, o art. 1.521, inc. III, dispõe que o patrão, amo ou comitente é responsável pela reparação civil por atos praticados por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir ou por ocasião dele.
Com efeito, a jurisprudência, em lenta evolução, foi retirando o caráter subjetivo desse tipo de reparação, tanto que o Supremo Tribunal Federal consolidou a orientação da Corte, editando a Súmula 341, que diz: ?É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto?.
Assim, em uma ação indenizatória não cabe ao ofendido comprovar a culpa do empregador, mas tão-somente a existência do fato e do dano sofrido, disso decorrendo o imediato dever de indenizar.
Segundo Vladimir Passos de Freitas, ?foi no âmbito dos atos praticados pelo Estado que a responsabilidade objetiva alcançou maior desenvolvimento. Já no antigo Código Civil Brasileiro de 1916 ela é prevista no art. 15, porém restrita aos casos em que os representantes do Estado, nessa qualidade, causassem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei.?
Acrescenta, ainda, o referido autor, que, ?no entanto, ainda que avançada para a época em que o Código entrou em vigor (1916), a referida norma vinha se revelando insuficiente.?
Cabe registrar que a responsabilidade objetiva da Administração teve lenta evolução. Não era prevista na Constituição Republicana de 1891, que no art. 82 atribuía responsabilidade estrita aos funcionários públicos pelos abusos e omissões no exercício do cargo. A Carta Constitucional de 1934, no art. 171, estabelecia que os funcionários públicos eram solidariamente responsáveis com a Fazenda Pública pelos prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos. O mencionado dispositivo foi praticamente repetido na Carta Constitucional de 1937, art. 158.
Foi a Constituição de 1946 que, no art. 194, introduziu a responsabilidade objetiva do Estado como regra. Incorporada ao sistema, ela foi mantida pela Carta de 1967 (art. 105), pela Emenda Constitucional n. 1, de 1969 (art. 105), e pelo art. 37, parágrafo 6o, da atual Constituição Federal, promulgada em 1988.
Desta forma está consagrada a teoria da responsabilidade objetiva no Estado brasileiro, sendo de ampla aceitação na doutrina e na jurisprudência.

4.2 Pressupostos da Responsabilidade Civil

4.2.1 Dano

É o elemento fundamental para a existência da responsabilidade civil. Segundo Henri de Page, dano é ?um prejuízo resultante de uma lesão a um direito. Enquanto se não relaciona com uma lesão a um direito alheiro, o prejuízo pode-se dizer platônico. Relacionados ambos, lesão a direito e prejuízo, compõem a responsabilidade civil?.
Desta forma, o dano constitui-se em prejuízo, suportado pela vítima no seu patrimônio, seja jurídico ou moral, em virtude de ato, fato ou omissão de outrem.
São também elementos da responsabilidade civil: o fato que o ocasionou, o nexo de causalidade entre o fato ocorrido e o dano verificado e, a depender da modalidade da responsabilidade civil aplicável ao caso, a culpa lato sensu do agente causador do dano.

4.2.2 Fato causador do dano ou ação lesiva

O primeiro dos elementos essenciais para o aparecimento da responsabilidade civil é a existência de fato (ação/comportamento positivo ou negativo) cuja ocorrência produza dano ao patrimônio jurídico ou moral de alguém.
É necessária a existência de conduta omissiva ou comissiva por parte de pessoa natural, agindo em nome próprio ou na qualidade de representante de pessoa jurídica ou de ente despersonalizado, desde que possa ser sujeito passivo da obrigação de responder, pois não há responsabilidade oriunda de fatos da natureza, posto que, em relação a estes, ninguém, em princípio, está obrigado a responder.
Saliente-se que a conduta causadora da lesão moral ou patrimonial deve ser contrária ao Direito. Tal contrariedade, segundo Francisco José Marques Sampaio, pode ocorrer em relação a uma norma específica preexistente, ou, ainda, ao ordenamento jurídico genericamente considerado, sendo sempre importante, em qualquer caso, a anterioridade da norma, do princípio ou do ordenamento jurídico tidos como violados em relação à conduta cujo autor se pretenda responsabilizar.
A norma jurídica ao estabelecer a obrigação de responder por determinado dano como conseqüência do exercício de atividade por si só capaz de provocá-lo, ainda que sem infração a qualquer dispositivo legal, a sanção imposta pela norma está justificada pela violação ao dever jurídico que todos têm de não causar dano a outrem.

Continua na Parte II