Acesso à Justiça: inestimável garantia constitucional - Juíza Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto

por ACS — publicado 2008-01-09T23:00:00-03:00
Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto*

O acesso à Justiça sempre foi um dilema a ser solucionado pela humanidade. Ao longo da história, observa-se que as estruturas dos Tribunais passaram a ter uma administração cada vez mais lenta e congestionada, seja, por um lado, pelo reconhecimento de um maior número de direitos, seja, de outro, pelo excesso de rigor, de formalismo e de recursos processuais gerando insatisfação e falta de confiança dos cidadãos quanto ao Poder Judiciário como instituição.
As sistemáticas processuais formalistas que antes representavam etapas de garantias de direitos individuais e coletivos, para um devido processo legal, hoje, em excesso, caracterizam uma justiça tardia e inconcebível deformação de valores, conceitos e atitudes, os quais devem ser repensados e modificados para atender aos reclamos da sociedade moderna.
Atualmente, há uma tendência para simplificar as normas processuais, tanto no campo cível como no penal, uma vez que sem elas não será possível restabelecer a paz social rompida nos limites comportamentais das partes.
É preciso que um número cada vez maior de pessoas tenha a oportunidade de chegar aos umbrais da Justiça, como um fato natural e inerente à condição da própria pessoa humana, como parte indispensável do complexo de direitos e deveres que caracteriza o viver em sociedade. Só assim se conseguirá estabelecer o acesso à ordem jurídica justa.
A propósito, quando se almeja equacionar as dificuldades do acesso à Justiça, não se pode perder de vista que uma grande parcela da população passa ao largo da proteção jurídica, em função da situação particular em que vive, causada notadamente pela gritante diferença na distribuição da renda, criando camadas e sub-camadas populacionais que vivem à margem da sociedade.
Ressalte-se que, muitas vezes diante da pequenez do bem jurídico violado, quase sempre o ofendido acaba renunciando ao próprio direito por saber que a morosidade do Judiciário lhe trará mais prejuízo do que benefício. Em geral, é a camada menos favorecida da população quem sofre com as conseqüências mais desastrosas da dificuldade do acesso à Justiça. A falta de acesso ao Judiciário constitui um dos problemas que mais afligem a sociedade brasileira moderna.
Algo em torno de 80% da nossa população é considerada carente, na acepção social e jurídica do termo, já que não pode pagar as custas, honorários de advogado e demais despesas de um processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família. E mesmo aqueles que reúnem condições para tais gastos, são afastados do Judiciário por variados motivos, dentre eles o longo tempo para solução da demanda.
Garantia maior da cidadania, um dos fundamentos do Estado democrático (artigo 1o, inciso II, da Constituição Federal), é o acesso ao Judiciário - por sua vez um dos mais importantes direitos fundamentais elencados na Constituição (art. 5o, incisos XXXV e LXXIV).
A grave crise econômica que se perpetua entre o povo brasileiro, com índices de recessão e uma das maiores taxas de injustiça social do mundo faz surgir grande número de conflitos diários de interesses, envolvendo camadas variadas da sociedade.
É oportuno destacar que o Brasil, infelizmente, é um dos primeiros colocados na pesquisa do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) em desigualdade social no mundo. Em nosso país, 5% dos mais ricos detém 37% do PIB e 10% dos mais ricos detém 56% do PIB (produto interno bruto).
Nos grandes centros urbanos, onde o relacionamento humano é, geralmente, frio e impessoal, não se sabendo a quem recorrer diante de uma adversidade, os mecanismos de solução de conflitos são imperfeitos. Ora são resolvidos por atuação própria do interessado ou por "justiceiros" (lei do mais forte) - como num retorno funesto ao passado -, ora há uma renúncia da vítima, ao seu direito, diante das dificuldades encontradas junto ao aparelho estatal.
Apenas pequena parcela desses conflitos são canalizados para o Judiciário. São conflitos de toda ordem: acidentes de trânsito, brigas de vizinhos, lesões aos direitos do consumidor, ameaças, danos etc. Surge daí o fenômeno da litigiosidade contida que é um componente extremamente perigoso para a estabilidade social, visto que já manifesta seus sinais na deterioração do sistema de resistência da população (cenas de violência no trânsito e recrudescimento de outros tipos de violência).
Outro problema que se revela preocupante são as conseqüências do fenômeno da demanda reprimida ou litigiosidade contida oriunda de uma gama de conflitos de interesses não solucionados. A sua banalização vem gerando desestabilidade social e diversas formas de violência, visto que, sem acesso à Justiça, a sociedade busca formas alternativas de solução, nem sempre dotadas de ética e orientadas pelos caminhos legais.
Em momentos cruciais da História, o povo acabou conduzido à Revolução também pela premência de ter acesso à Justiça, com isto se libertando de uma forma de opressão revelada na litigiosidade contida.
Verifica-se que a Constituição Federal, no artigo 5o, inciso XXXV, ao dispor que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito", não pretendeu impor limitação à forma de soluções de conflitos, mas, ao contrário, implicitamente pretende possibilitar a composição dos litígios de um modo geral, mesmo que fora de seu âmbito.
O Poder Judiciário caminha atualmente ao encontro de formas alternativas de resolução das demandas, por meio de instrumentos de ação social participativa. E dentro desse raciocínio, insere-se, em última ratio, toda filosofia e o próprio idealismo daqueles que estão empenhados em mudanças razoáveis e factíveis para que outras perspectivas e outros horizontes se abram para o povo em geral, especialmente para os hipossuficientes econômicos, graças à facilitação do acesso à Justiça, com a utilização de meios e instrumentos alternativos, como, v. gratia, a conciliação, a mediação e a arbitragem, com todos os desdobramentos deles derivados.
Com os Juizados Especiais, o Poder Judiciário tem sido exposto à questão social em sua expressão bruta, tomando conhecimento dos dramas vividos pelos segmentos mais humildes da população, dos seus clamores e expectativas em relação à Justiça. Os juízes dos Juizados estão, por isso, independentemente da compreensão que possam ter acerca das suas novas atribuições, em posição de potenciais "engenheiros" da organização social, papel cujo desempenho dependerá dos nexos que lograrem estabelecer com a sociedade civil.
Nesse processo contemporâneo de crescente litigiosidade, a qual precisa ser necessariamente solucionada afim de evitar uma verdadeira ebulição social, inflamada pelas frustrações, rancores e descrédito nas instituições, é que os Juizados Especiais têm sido um marco no conjunto das modificações técnicas concebidas no intuito de aproximar a lei e a sociedade respondendo às contínuas demandas de uma parcela da sociedade submersa e, até aquele momento, excluída social e juridicamente.
Como expressão de um Judiciário que visou estender sua malha de prestação jurisdicional, buscando atingir a litigiosidade contida, os Juizados passaram a se constituir no locus da criação jurisprudencial do direito, num instrumento de aproximação da sociedade brasileira com o ideal de auto-organização, num movimento em que o Direito sirva, efetivamente, à consolidação da cidadania e à idéia de bem-comum.


REFERÊNCIAS

MORAES, Silvana Campos. Juizados de Pequenas Causas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.

FRIGINI, Ronaldo. Comentários à Lei de Pequenas Causas. São Paulo: Livraria e Editora de Direito, 1995. p. 40.

SALOMÃO, Luis Felipe. Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis. Rio de Janeiro: Destaque, 1997.

VIANNA, Luis Werneck et. al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.