As mudanças sociais e econômicas, a produção legislativa e o reflexo na atividade judicial - Juíza Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto*
A humanidade vem se defrontando com diversos problemas típicos da sociedade pós-industrial, dentre eles a dificuldade em compatibilizar o crescimento econômico com a proteção ao meio ambiente. Verifica-se que não há uma divisão eqüitativa dos benefícios do desenvolvimento tecnológico e econômico-financeiro entre as nações. Na verdade, há uma assustadora concentração de capital nos países desenvolvidos em detrimento dos demais, levando a um desequilíbrio socioeconômico e tecnológico, daí decorrendo a miséria, a pobreza, o subdesenvolvimento, as graves injustiças sociais, a corrupção, as epidemias. Esses problemas afetam todo o globo, gerando efeitos que se refletem em todas as direções, sendo mais sentidos no âmbito do consumidor e do ambiente, despertando a consciência de que urge implementar um consumo e um desenvolvimento sustentáveis.
Nessa trajetória de descompassos econômicos e sociais, os direitos do consumidor e do meio ambiente foram alçados à categoria de novos direitos humanos fundamentais. Desta forma, indaga-se: como é possível a produção legislativa em contextos marcados pela velocidade e intensidade das transformações econômicas e pela proliferação de situações sociais novas e ainda não estruturadas? A produção legislativa não consegue atender a essas exigências da sociedade contemporânea.
Atualmente, observa-se que, além do controle da constitucionalidade, aos tribunais, em geral, compete, a garantia direta contra lesões dos direitos fundamentais, a defesa de interesses difusos e o enfrentamento da obscuridade e ambigüidade dos textos legislativos, por vezes deliberada, em face dos difíceis processos de negociação. O juiz, como agente político (não partidário), é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude.
Verifica-se que a politização do juiz deriva do fato de que ele soluciona litígios aplicando normas, que são condutoras de valores e expressões de um poder político. Não existe, assim, norma neutra. Logo, se o juiz é um aplicador de normas, não existe juiz neutro. Em verdade, no marco do Estado Constitucional de Direito, a atividade política e a atividade judicial estão estreitamente unidas pelo império do Direito.
Um outro aspecto da politização do juiz está no fato de que as constituições modernas contemplam normas de conteúdo poroso, a ser complementado pela praxis. E o Poder Legislativo derivado, por sua vez, em muitas situações, não só não se esforça para preencher o vazio, senão prima por seguir a mesma técnica da legislação aberta, indeterminada. Incapaz de solucionar alguns megaconflitos modernos, muitas vezes o legislador acaba atribuindo ao Judiciário a responsabilidade de moldar a norma final aplicável.
O Judiciário não somente passou a solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e jurídico, além de implementar o conteúdo promocional do Direito contido nas normas constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais. De qualquer forma, "essa politização do juiz, que é inegável dentro do Estado Constitucional de Direito, concebido como fonte e limite do direito, não pode, no entanto, chegar ao extremo de lhe permitir a substituição da racionalidade jurídica pela racionalidade política. (... omissis). " (GOMES, 1997, p. 47).
No que tange ao contexto antinômico, percebe-se que o produto legislado não está, também, imune a antinomias, ou seja, duas ou mais normas podem apresentar-se conflitantes. Nesse conflito de normas, a doutrina desenvolveu critérios mediante princípios jurídico-positivos para solucionar as antinomias aparentes. Quanto ao contexto lacunoso, verifica-se que o produto legislado está impregnado dos problemas relativos à incompletude do sistema jurídico, na visão de Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 127).
É importante registrar que não há unanimidade na doutrina quanto à questão de existirem ou não lacunas na ordem constitucional. Cuida-se de questão aberta, jungida à concepção jurídica de sistema. Para Bulos (1997, p.127), se entendermos o sistema jurídico como sendo aberto, dinâmico, incompleto, abrigando normas, fatos e valores, "não há como considerar o dogma da plenitude hermética da ordem constitucional, do mesmo modo como não há uma plenitude da ordem jurídica em geral." Com a devida venia ao aludido mestre, filio-me ao pensamento sistemático e ao conceito de sistema na Ciência do Direito na visão de Claus-Wilhelm Canaris (1996), no que concerne à ordem e à unidade como características do conceito geral de sistema, e, principalmente, à Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bobbio (1999), no sentido de pensar o sistema como uma unidade, com coerência e completude lógicas.
O princípio da unidade do sistema do Direito positivo é homólogo ao princípio da unidade no conhecimento jurídico-dogmático. A unidade de um sistema de normas é decorrente de um superior fundamento de validade desse sistema - a Constituição positiva, ou, em nível epistemológico, a Constituição em sentido lógico-jurídico, ou seja, a norma fundamental.
A unicidade decorre da possibilidade também gnoseológica (lógico-transcedental) de se poder conceber todo o material jurídico dado como um só sistema. O sistema da Ciência do Direito é dotado de critérios que permitem decidir se uma dada proposição pertence ou não ao sistema, bem como se ela apresenta coerência interna, ou seja, compatibilidade entre os elementos proposicionais integrantes dos subsistemas e, ainda, completude.
A experiência demonstra que há contradições entre as proposições normativas de um mesmo nível, entre leis constitucionais, entre leis ordinárias, entre regulamentos e entre outros atos normativos. Tais contradições são elimináveis pelo princípio extralógico da norma de nível mais elevado sobre a norma de nível inferior, ou pelo critério, também extralógico, da sucessão temporal (norma de mesmo nível revoga norma anteriormente promulgada); da norma geral que admite a contraposição contraditória de uma norma especial, estatuindo para todos os casos compreendidos num conjunto, menos para alguns que se excetuam.
Dentro do sistema jurídico é possível encontrar solução para qualquer problema, pois, nos casos de aparente incompletude da norma, os princípios do ordenamento jurídico apresentam a resposta para essas antinomias. Ainda que existam vazios normativos dentro do sistema, tais lacunas podem ser preenchidas ou colmatadas mediante a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade, com a observância dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade. Desta forma, nota-se que o novo paradigma pós-positivista baseia-se na juridicidade dos princípios diante da complexidade das mudanças sociais e econômicas.
Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.
Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed. São Paulo: Editora Mandarim, 2000.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
GOMES, Luís Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da constitucionalidade do processo legislativo. São Paulo: Dialética, 1998.
Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, 1999.
VASCONCELOS, Pedro Carlos Bacelar de. Teoria geral do controlo jurídico do poder público. Lisboa: Cosmos, 1996.
Nessa trajetória de descompassos econômicos e sociais, os direitos do consumidor e do meio ambiente foram alçados à categoria de novos direitos humanos fundamentais. Desta forma, indaga-se: como é possível a produção legislativa em contextos marcados pela velocidade e intensidade das transformações econômicas e pela proliferação de situações sociais novas e ainda não estruturadas? A produção legislativa não consegue atender a essas exigências da sociedade contemporânea.
Atualmente, observa-se que, além do controle da constitucionalidade, aos tribunais, em geral, compete, a garantia direta contra lesões dos direitos fundamentais, a defesa de interesses difusos e o enfrentamento da obscuridade e ambigüidade dos textos legislativos, por vezes deliberada, em face dos difíceis processos de negociação. O juiz, como agente político (não partidário), é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude.
Verifica-se que a politização do juiz deriva do fato de que ele soluciona litígios aplicando normas, que são condutoras de valores e expressões de um poder político. Não existe, assim, norma neutra. Logo, se o juiz é um aplicador de normas, não existe juiz neutro. Em verdade, no marco do Estado Constitucional de Direito, a atividade política e a atividade judicial estão estreitamente unidas pelo império do Direito.
Um outro aspecto da politização do juiz está no fato de que as constituições modernas contemplam normas de conteúdo poroso, a ser complementado pela praxis. E o Poder Legislativo derivado, por sua vez, em muitas situações, não só não se esforça para preencher o vazio, senão prima por seguir a mesma técnica da legislação aberta, indeterminada. Incapaz de solucionar alguns megaconflitos modernos, muitas vezes o legislador acaba atribuindo ao Judiciário a responsabilidade de moldar a norma final aplicável.
O Judiciário não somente passou a solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses, segundo o modelo liberal individualista, como também a atuar como órgão calibrador de tensões sociais, solucionando conflitos de conteúdo social, político e jurídico, além de implementar o conteúdo promocional do Direito contido nas normas constitucionais e nas leis que consagram direitos sociais. De qualquer forma, "essa politização do juiz, que é inegável dentro do Estado Constitucional de Direito, concebido como fonte e limite do direito, não pode, no entanto, chegar ao extremo de lhe permitir a substituição da racionalidade jurídica pela racionalidade política. (... omissis). " (GOMES, 1997, p. 47).
No que tange ao contexto antinômico, percebe-se que o produto legislado não está, também, imune a antinomias, ou seja, duas ou mais normas podem apresentar-se conflitantes. Nesse conflito de normas, a doutrina desenvolveu critérios mediante princípios jurídico-positivos para solucionar as antinomias aparentes. Quanto ao contexto lacunoso, verifica-se que o produto legislado está impregnado dos problemas relativos à incompletude do sistema jurídico, na visão de Uadi Lammêgo Bulos (1997, p. 127).
É importante registrar que não há unanimidade na doutrina quanto à questão de existirem ou não lacunas na ordem constitucional. Cuida-se de questão aberta, jungida à concepção jurídica de sistema. Para Bulos (1997, p.127), se entendermos o sistema jurídico como sendo aberto, dinâmico, incompleto, abrigando normas, fatos e valores, "não há como considerar o dogma da plenitude hermética da ordem constitucional, do mesmo modo como não há uma plenitude da ordem jurídica em geral." Com a devida venia ao aludido mestre, filio-me ao pensamento sistemático e ao conceito de sistema na Ciência do Direito na visão de Claus-Wilhelm Canaris (1996), no que concerne à ordem e à unidade como características do conceito geral de sistema, e, principalmente, à Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bobbio (1999), no sentido de pensar o sistema como uma unidade, com coerência e completude lógicas.
O princípio da unidade do sistema do Direito positivo é homólogo ao princípio da unidade no conhecimento jurídico-dogmático. A unidade de um sistema de normas é decorrente de um superior fundamento de validade desse sistema - a Constituição positiva, ou, em nível epistemológico, a Constituição em sentido lógico-jurídico, ou seja, a norma fundamental.
A unicidade decorre da possibilidade também gnoseológica (lógico-transcedental) de se poder conceber todo o material jurídico dado como um só sistema. O sistema da Ciência do Direito é dotado de critérios que permitem decidir se uma dada proposição pertence ou não ao sistema, bem como se ela apresenta coerência interna, ou seja, compatibilidade entre os elementos proposicionais integrantes dos subsistemas e, ainda, completude.
A experiência demonstra que há contradições entre as proposições normativas de um mesmo nível, entre leis constitucionais, entre leis ordinárias, entre regulamentos e entre outros atos normativos. Tais contradições são elimináveis pelo princípio extralógico da norma de nível mais elevado sobre a norma de nível inferior, ou pelo critério, também extralógico, da sucessão temporal (norma de mesmo nível revoga norma anteriormente promulgada); da norma geral que admite a contraposição contraditória de uma norma especial, estatuindo para todos os casos compreendidos num conjunto, menos para alguns que se excetuam.
Dentro do sistema jurídico é possível encontrar solução para qualquer problema, pois, nos casos de aparente incompletude da norma, os princípios do ordenamento jurídico apresentam a resposta para essas antinomias. Ainda que existam vazios normativos dentro do sistema, tais lacunas podem ser preenchidas ou colmatadas mediante a analogia, os costumes, os princípios gerais de direito e a eqüidade, com a observância dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade. Desta forma, nota-se que o novo paradigma pós-positivista baseia-se na juridicidade dos princípios diante da complexidade das mudanças sociais e econômicas.
Referências
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.
Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. Alfredo Fait. 2. ed. São Paulo: Editora Mandarim, 2000.
BULOS, Uadi Lammêgo. Mutação constitucional. São Paulo: Saraiva, 1997.
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
GOMES, Luís Flávio. A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.
MORAES, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da constitucionalidade do processo legislativo. São Paulo: Dialética, 1998.
Controle jurisdicional da Administração Pública. São Paulo: Dialética, 1999.
VASCONCELOS, Pedro Carlos Bacelar de. Teoria geral do controlo jurídico do poder público. Lisboa: Cosmos, 1996.