Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios

Direitos Fundamentais: Cerne do Estado Democrático de Direito - Juíza Oriana Piske

por ACS — publicado 11/03/2008
Os Direitos fundamentais, com maior ou menor extensividade, apresentam classificações que assim os enumeram: direito de locomoção ou de ir e vir; direito à manifestação do pensamento; direito de reunião; direito de associação; direito de culto; direito à atividade profissional; direito à atividade econômica. Cabe ressaltar que a supramencionada enumeração é tão-somente exemplificativa.

Jorge Miranda, numa demonstração de abrangência quanto à universalização e internacionalização dos direitos fundamentais, destaca os conceitos afins e as categorias desses direitos, tais como: direitos fundamentais e direitos do homem; direitos fundamentais e direitos subjetivos públicos; direitos fundamentais e direitos de personalidade; direitos fundamentais e situações funcionais; direitos fundamentais e direitos dos povos; direitos fundamentais e direitos difusos; direitos fundamentais e garantias institucionais; direitos fundamentais e deveres fundamentais; direitos fundamentais individuais e direitos fundamentais institucionais.

Para Norberto Bobbio, os problemas fundamentais do nosso tempo são: o problema dos direitos do homem e o problema da paz, visto que da solução do problema da paz depende a nossa própria sobrevivência, enquanto a solução do problema dos direitos humanos é, a seu ver, o ?único sinal certo de progresso civil.? Considera Bobbio que tais problemas estão interligados citando três documentos de inquestionável autoridade: a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Carta das Nações Unidas e a Conferência de Helsinque .

A Carta das Nações Unidas começa declarando a necessidade de ?salvar as futuras gerações do flagelo da guerra que por duas vezes no curso desta geração trouxe inenarráveis aflições à humanidade?, e logo em seguida reafirma ?a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres, e das nações grandes e pequenas?. A Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) se inicia considerando que ?o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos, iguais e inalienáveis, constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo?. Chega a afirmar que os direitos do homem devem ser salvaguardados por normas jurídicas, ?se quisermos evitar que o homem seja obrigado a recorrer em última instância à rebelião contra a tirania e a opressão?.

A conferência sobre segurança e a cooperação na Europa, conhecida pelo nome de Conferência de Helsinque, devido ao local onde se realizou e no qual foi concluída em 1o de agosto de 1975, após ter afirmado no preâmbulo que o objetivo das nações firmatárias é ?contribuir para o melhoramento de suas relações recíprocas e para assegurar as condições nas quais seus povos possam gozar de uma paz verdadeira e duradoura, livres de toda ameaça ou atentado à sua segurança?, dedica um de seus ?princípios-guias? (o sétimo) ao problema da proteção dos direitos do homem, asseverando: ?Os Estados participantes respeitam os direitos do homem e as liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de pensamento, consciência, religião ou credo, para todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião?, e em seguida insiste: ?Eles promovem, estimulam o efetivo exercício das liberdades e dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, e outros, que derivam todos da dignidade inerente à pessoa humana e são essenciais ao seu livre e pleno desenvolvimento.?

Norberto Bobbio, comentando esses três documentos internacionais, afirma que o primeiro associa cronologicamente o fim da Segunda Guerra Mundial à nova fase do desenvolvimento da comunidade internacional, que deve ter início com o fortalecimento da proteção dos direitos do homem, quase dando a entender que a causa, ou ao menos uma das causas do ?flagelo? das duas guerras mundiais, foi o desprezo aos direitos do homem. O segundo destaca o reconhecimento dos direitos do homem como requisito para a instauração e manutenção da paz. O terceiro considera o respeito recíproco dos direitos do homem um dos princípios que devem guiar os Estados na sua política de distensão e de paz.

Neste quadro, verifica-se que o grau de complexidade a que as sociedades modernas chegaram não mais permite que o Direito seja justificado a partir da autonomia privada, consoante o paradigma do Estado de Direito ou Liberal, nem a partir de uma autonomia pública ao nível do Estado, consoante o Estado Social. Para José de Oliveira Baracho Júnior,

o paradigma liberal foi superado em razão de sua incapacidade de ver o caráter público da própria dimensão privada, pela redução que empreende do privado à esfera do egoísmo, da propriedade privada absoluta, e, conseqüentemente, por fazer do âmbito formal um fim em si mesmo, uma proteção velada do status quo burguês, uma mera defesa da propriedade privada e dos interesses dos grandes capitalistas, por desconsiderar, assim, as forma de vida concretas, e, em suma, por seu apego incondicional ao indivíduo isolado e egoísta.

Por outro lado, segundo o mencionado autor, o paradigma do Estado Social, demonstrou que a redução do Direito ao Estado retirou o vigor das tentativas de justificação racional do Direito, ao impor a consecução de finalidades materiais a todo custo e, assim, ao menosprezar as suas necessidades de legitimação formal. Este paradigma foi superado em razão de sua incapacidade de ver o caráter privado essencial à própria dimensão pública, enquanto locus privilegiado da construção e reconstrução das estruturas de personalidade, das identidades sociais e das formas de vida. É precisamente esse aspecto da dimensão pública que deve agasalhar necessariamente o pluralismo social e político, constituindo-se em condição sine qua non de uma cidadania ativa efetiva, que se reconstrói quotidianamente na ampliação dos direitos fundamentais à luz da Constituição vista como um processo permanente. Exatamente a redução do público ao estatal conduziu aos excessos perpetrados pelo Estado Social e sua doutrina.

Nota-se que ambos os aludidos paradigmas são redutores da complexidade da relação entre o público e o privado, e funcionam como os dois lados de uma mesma moeda, precisamente por enxergarem tais esferas sempre em conflito e por eliminarem uma das dimensões em favor da outra. Com efeito, no paradigma do Estado Democrático de Direito surge uma pluralidade de esforços no sentido de resgatar a força integradora do Direito, enfraquecida nos mencionados paradigmas.

Destaca com proficiência o aludido autor que tais esforços têm em comum a valorização dos princípios constitucionais, que garantem a autonomia privada, e os que organizam processos decisórios públicos. Ou seja, a visão de que o público e o privado são, na verdade, esferas complementares e essenciais uma à outra para configuração do regime democrático; são esferas eqüiprimordiais, para empregar o termo cunhado por Habermas. E exatamente aí residiria o engano dos paradigmas anteriores, pois ao sacrificarem a esfera pública em favor da esfera privada ou vice-versa, no afã de garantir a cidadania, eliminavam precisamente o florescimento e consolidação de uma cidadania universal e efetiva. É assim que o aspecto formal, processual, adquire novamente uma relevância superlativa, é claro que não mais entendido como mera garantia da esfera egoísta burguesa, mas como elemento essencial para a configuração discursiva do jogo democrático e da cidadania.

Desta forma, como decorrência da complexidade que o novo paradigma incorpora, no enfrentamento dos problemas contemporâneos como o da adequada proteção aos direitos individuiais e coletivos, do consumidor, tutela do meio ambiente, direito ao acesso à Justiça, devemos ter em mente todos os fundamentos e argumentos relevantes, sejam eles jurídico-positivos, morais, éticos ou pragmáticos, para a concretização dos direitos de cidadania.

Ressalte-se que, para ser considerado Estado Democrático de Direito, é fundamental que o mesmo tenha uma estrutura política concebida sobre a tripartição dos poderes e consagre os direitos e garantias constitucionais. O princípio da separação de poderes, constituiu-se em máxima garantia de preservação da Constituição democrática, liberal e pluralista.

Lembra Paulo Bonavides, a respeito do sólido princípio da separação de poderes, que inarredável de todas as Constituições e projetos de Constituição já formulados neste País, desde 1823, data de elaboração do célebre Projeto de Antonio Carlos oferecido à Constituição Imperial, ele atravessou o Império e a República, rodeado sempre do respeito e do prestígio que gozam as garantias constitucionais da liberdade. A única exceção veio a ser a Carta de 1937, mas esta em rigor não foi uma Constituição e sim um ato de força de natureza institucional, tanto que afastou, por inteiro, o País de toda a tradição de liberalismo e representatividade do poder. Veja-se que depois do desastre de 1937, nem as Constituições outorgadas pela ditadura de 1964, sem embargo da violência de seu autoritarismo, ousaram tocar naquele princípio.

Três monumentos constitucionais consagraram, desde os séculos XVIII e XIX, o princípio da separação de poderes, após a célebre teorização de Montesquieu: a Constituição dos Estados Unidos de 1787, nos artigos I, II e III; a da França de 1791, no Título III, artigos 3-5; e a da Bélgica de 1831, no título III, artigos 26-30.

Vale destacar, também, o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, e o artigo 19 da Constituição Francesa, de 4 de novembro de 1848. O artigo 16 da Declaração reza: ?Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não estiver assegurada e a separação dos poderes determinada, não tem Constituição.? Já o aludido artigo 19 da lei francesa maior de 1848 não era menos categórico ao expressar o mesmo pensamento com extrema concisão: ?La séparation des pouvoirs est la première condition d?un gouvernement libre?.

A jurisprudência das cortes constitucionais em todos os Países abraçados à ordem jurídica do Estado de Direito tem adotado o princípio como a melhor das garantias tutelares para estabelecer as bases de um sistema de leis, onde o exercício do poder se inspire na legitimidade dos valores que fazem a supremacia do regime representativo em todas as suas modalidades democráticas de concretização.

Para Peter Badura, ?no desenvolvimento do Estado moderno e na história das idéias políticas, encontra-se em toda a parte a separação de poderes, sobretudo onde o objetivo é a ordenação e a vinculação do poder estatal, o impedimento ao abuso do poder político e a garantia da liberdade.? Acrescenta Badura que a divisão de poderes está de tal forma ligada a todos os elementos principais do Estado de Direito e à idéia da Constituição, que ele, como princípio, pode equiparar-se a todas as idéias básicas do constitucionalismo moderno, a saber, as que vinculam o poder do Estado aos postulados fundamentais do Direito.

Para Jürger Habermas, em sua obra ?Legitimations probleme im Spätkapitalismus? , a separação de poderes é um princípio de organização fundado no ?compromisso?, bem como é um requisito legitimatório essencial à eqüidade de uma relação de forças.

Para Niklas Luhmann, em ?Rechtssoziologie? , a separação clássica entre legislativo, executivo e judiciário corresponde a uma diferenciação interna do government e oferece o modelo para a neutralização política gradual do processo de tomada de decisões.

Temos que o princípio da separação dos poderes é uma garantia extraordinária, alçada à dimensão constitucional, fruto do desejo e intenção constituinte, de controle do poder, através de funções diferenciadas, conjugando princípios por vezes contrapostos. O princípio da separação dos poderes é atual, tendo agregado novos valores, demonstrando que permanece como emblema de resistência a poderes autocráticos e a formas de governo usurpadoras de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana.

As grandes mudanças que surgiram após a revolução industrial do Século XIX, bem como a revolução tecnológica deste século, foram decisivas na construção das bases de uma sociedade consumista, ascendendo cada vez mais os interesses coletivos e difusos no confronto com os interesses meramente individuais. Reflexo desse quadro, os conflitos ganham nova dimensão, requerendo equacionamentos eficazes, soluções mais efetivas, um processo mais ágil e um Judiciário mais eficiente, dinâmico e participativo na tutela dos direitos fundamentais do homem.

Nesse sentido é a lição de Paulo Bonavides, ao afirmar que os direitos fundamentais são a sintaxe da liberdade nas Constituições. Com eles, o constitucionalismo do Século XX logrou a sua posição mais consistente, mais nítida, mais característica. Em razão disso, faz-se mister introduzir talvez, nesse espaço teórico, o conceito do juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Constituição, e sobretudo da legitimidade do Estado social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais.

Acrescenta, ainda, o mencionado autor ? ?Os direitos fundamentais, em rigor, não se interpretam; concretizam-se?. Os direitos fundamentais desdobram-se em direitos de primeira, segunda, terceira e quarta geração.
Os direitos de primeira geração constituem-se em direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente.
Os direitos de segunda geração são os denominados direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividade, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado Social depois que germinaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula.
Os direitos fundamentais de terceira geração são decorrentes da consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário desenvolvimento. Tais direitos permitiram que em seguida fosse buscada uma outra dimensão dos direitos fundamentais, até então desconhecida. Trata-se daquela que se assenta sobre a fraternidade, e provida de uma latitude de sentido que não parece compreender unicamente a proteção específica de direitos individuais ou coletivos. Portanto, os direitos de terceira geração dizem respeito a: direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito ao meio ambiente, direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e direito de comunicação.
Os direitos fundamentais de quarta geração dizem repeito ao direito à democracia, ao direito à informação e ao direito ao pluralismo. Deles depende a concretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade, para a qual parece o mundo inclinar-se no plano de todas as relações de conveniência. A nova universalidade dos direitos fundamentais coloca-os, desde o princípio, num grau mais alto de juridicidade, concretude, positividade e eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da fraternidade.

Paulo Bonavides destaca que os direitos da primeira e da terceira geração abriram caminho ao advento de uma nova concepção de universalidade dos direitos humanos fundamentais, totalmente distinta do sentido abstrato e metafísico de que se impregnou a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, uma Declaração de compromisso ideológico definido, mas que nem por isso deixou de lograr expansão ilimitada, servindo de ponto de partida valioso para a inserção dos direitos da liberdade ? direitos civis e políticos ? no constitucionalismo rígido de nosso tempo, com uma amplitude formal de positivação a que nem sempre corresponderam os respectivos conteúdos materiais.

Vale lembrar que, para a nova universalidade dos direitos fundamentais, o ano de 1948 foi tão importante quanto o de 1789 havia sido para a velha universalidade de inspiração liberal. Em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas, mediante a Resolução n o 217 (III) aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, sem dúvida uma Declaração pragmática, sendo também uma carta de valores e princípios sobre os quais se hão assentado os direitos de primeira, segunda e terceira geração. Com efeito, com a Declaração de 1948, o humanismo político da liberdade alcançou seu ponto culminante no século XX.

Ensina Paulo Bonavides que ?a história dos direitos humanos ? direitos fundamentais de três gerações sucessivas e cumulativas, a saber, direitos individuais, direitos sociais e direitos difusos ? é a história mesma da liberdade moderna, da separação e limitação de poderes, da criação de mecanismos que auxiliam o homem a concretizar valores cuja identidade jaz primeiro na Sociedade e não nas esferas do poder estatal.? Acrescenta Bonavides que ?a Declaração será porém um texto meramente romântico de bons propósitos e louvável retórica, se os Países signatários da Carta não se aparelharem de meios e órgãos com que cumprir as regras estabelecidas naquele documento de proteção dos direitos fundamentais e sobretudo produzir uma consciência nacional de que tais direitos são invioláveis.?

Desta forma, verifica-se a importância e a dimensão que os direitos fundamentais têm alcançado ao longo da história e da experiência humana, sendo antes de tudo um reflexo do desenvolvimento das relações sociais.

REFERÊNCIAS

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BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

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MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra, Tomo IV, 1988.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

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VIRGA, Pietro. Libertá giuridica e diritti fondamentali. Milano: Giuffrè, 1947.