Responsabilidade do Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito - Juíza Oriana Piske de Azevedo Magalhães Pinto

por ACS — publicado 2008-01-27T23:00:00-03:00
O Estado Democrático de Direito não mais aceita uma postura omissa e passiva do Poder Judiciário. Este deixou de ser um Poder distanciado da realidade social, para tornar-se um efetivo partícipe da construção dos destinos da sociedade e do país, sendo, além disso, responsável pelo bem da coletividade.
Vivemos numa sociedade tão complexa e conflitual que a possibilidade de enfrentar, com êxito, as tensões desagregadoras demanda uma atuação do Poder Judiciário cada vez mais próxima dos problemas sociais. Para José Alfredo Baracho,

No Estado de direito exige-se grande esforço do juiz, para o exercício do desenvolvimento da função promocional do direito: - construção de uma jurisprudência que consagre os valores constitucionais da igualdade e da solidariedade, realizando-se os avanços normativos necessários à sociedade...

Trata-se de uma revolução de envergadura. É, em suma, a substituição do Estado Legal pelo Estado de Direitos. A positivação dos direitos já não está, em última instância, nas mãos do Legislador, senão nas do Juiz, a quem cabe concretizar o significado dos enunciados constitucionais para julgar, a partir deles, a validade ou invalidade da obra do legislador.
Se de um lado o magistrado assumiu a função de "garante" dos direitos fundamentais, por outro, passou a ter responsabilidades correlatas a esse dever.


Segundo Luiz Flávio Gomes:

Assim como todas as atividades públicas, a judicial (leia-se: os juízes) também está sujeita a controle. O controle dos juízes começa pelo fato de que são responsáveis pelos seus atos, é dizer, dentro do sistema europeu-continental (e da tradição brasileira), não gozam da inmunity, como os juízes do sistema anglo-saxônico, ao contrário, são responsáveis penal, civil e administrativamente (âmbito disciplinar-profissional).

Na premência do surgimento de uma legitimidade nova, na qual se possam embasar as instituições jurídico-políticas nascentes, é que o controle se densifica como autônomo objeto de análise.
O controle envolve sempre uma comparação, consistente no confronto de termos equivalentes. Tal comparação significa medir, segundo um programa dado, a diferença entre os valores de entrada e saída do sistema para o corrigir quanto ao seu sentido e grandeza, de forma a que as perturbações oriundas do ambiente (físico, psicológico ou social) sejam anuladas e se conserve a estabilidade do sistema.
Em outra perspectiva, o controle revela-se como dimensão cognitiva, tendo seu ponto de intersecção no poder controlado, que é estimulado a indagar qual é a sua posição no interior do sistema e a procurar, além do horizonte, a sua fronteira. O caráter de poder controlado tem à sua disposição uma outra via de legitimação e não a pura ficção de um consenso suposto.
O Poder Judicial é o poder que invoca e realiza o Estado constitucional contemporâneo; é idealmente insuspeito de parcialidade, porquanto está vinculado à observância de normas gerais e abstratas; é objeto de garantias de independência, inamovibilidade; é democraticamente legitimado e politicamente responsável; nele predomina o princípio hierárquico e o dever de obediência.
O controle não privilegia qualquer hierarquia do poder, mesmo sendo sensível ao grau de autonomia e à legitimidade específica do ente controlado. O controle é a consciência da fragilidade da natureza humana.
Mais controle de poder não significa menos poder; antes significa mais poder num quadro de relações mais complexo. Nas fronteiras do Direito com a Política e com a Sociologia, teremos de admitir que através desses poderes e controles outras potências sociais podem emergir e esboçar outros equilíbrios.
A atividade judicial deve observar rigorosamente os princípios da motivação ou fundamentação e o da publicidade. Nenhuma decisão judicial jamais será juridicamente válida sem que o magistrado apresente os fundamentos ou motivações de suas conclusões (CF, art. 93, IX). Com isso o que se pretende é evitar arbitrariedades e assegurar o submetimento do juiz ao ordenamento jurídico, como é exigência do Estado Constitucional de Direito. A fundamentação das decisões, ademais, permite o seu controle mediante recursos e controle sobre o próprio juiz, sobretudo pelo povo, que é a fonte de onde emana seu poder (CF, art. 1o, parágrafo único). Em virtude do princípio da publicidade, de outro lado (CF, art. 93, IX), podemos afirmar sem sombra de dúvida que poucas são as atividades públicas no Estado moderno que são mais acessíveis ao público e, em conseqüência, mais fiscalizadas que a jurisdicional.
A sociedade vem reclamando uma postura cada vez mais ativa do Judiciário, não podendo este ficar distanciado dos debates sociais, devendo assumir seu papel de partícipe no processo evolutivo das nações, eis que é também responsável pelo bem comum, notadamente em temas como a dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e a defesa dos direitos de cidadania.
A missão do juiz não se esgota nos autos de um processo, mas está também, hoje mais do que nunca, compreendida na defesa do regime democrático, sem o qual a função judicial é reduzida à rasteira esterilidade. O Judiciário precisa democratizar-se urgentemente em suas práticas internas, além de procurar maior legitimidade na alma do povo brasileiro.
É de se observar que inúmeras críticas têm sido feitas recentemente à atuação do Poder Judiciário no Brasil. Contudo, carece o Judiciário de melhores instrumentos de trabalho. A legislação nacional, além da técnica deficiente, é hoje de produção verdadeiramente caótica. Deficientes são os instrumentos disponíveis ao Judiciário, porque já não se aceita a verdadeira liturgia do processo, o amor desmedido pelos ritos, que quase passaram a ter fim em si mesmos, numa inversão de valores.
É certo que a entrega da prestação jurisdicional não pode deixar de transitar por um processo, previamente regrado, no qual os interessados possam ser ouvidos. Trata-se de elemento essencial para a legitimação da atividade do juiz. Mas, este processo deve ser caminho de realização da Justiça desejada pelos cidadãos, não estorvo incompreensível e inaceitável.
Na Constituição cidadã de 1988, o Poder Judiciário passou a ter uma participação ativa no processo democrático, especialmente com a sua presença mais efetiva na solução dos conflitos e ao ampliar a sua atuação com novas vias processuais, demonstrando preocupação voltada prioritariamente para a cidadania, através de instrumentos jurídicos, normas, preceitos e princípios que sinalizam a vontade popular de ter uma Justiça célere e distributiva.
Estamos passando por uma revolução na forma de fazer justiça, caminhando, com a reengenharia do processo, para uma modificação estrutural e funcional do Judiciário em si. Procura-se remodelar o seu perfil no sentido de adequá-lo ao da Justiça que se espera na nova era pós-industrial, que vem sendo constituída principalmente nas três últimas décadas, na qual a informática transforma o conhecimento no instrumento de satisfação das necessidades da sociedade e é ferramenta de trabalho hábil para encurtar o tempo e a distância. Esses fatores, em uma sociedade que anda à velocidade da luz e em constante competição globalizada, assumem destaque como a espinha dorsal da qualidade de todo e qualquer serviço. A Justiça, como serviço e instrumento de pacificação social, precisa comungar das idéias que estão modificando a civilização, sob pena de perder-se no tempo e no espaço.
A necessidade de adaptar o Poder Judiciário às múltiplas demandas do mundo moderno, a premência de torná-lo mais eficiente, de definir suas reais funções, sua exata dimensão dentro do Estado Constitucional e Democrático de Direito, a incessante busca de um modelo de Judiciário que cumpra seus variados papéis de modo a atender às expectativas dos seus usuários, tudo isso tem contribuído para que a tão esperada reforma do Judiciário ganhe efetiva prioridade.
O Estado Constitucional de Direito caracteriza-se por ser direito e limite, direito e garantia. Cabe ao juiz assegurar o seu reconhecimento e a sua eficácia. Deve concretizar o significado dos enunciados constitucionais para julgar, a partir deles, a validade ou invalidade da obra do legislador. Para tanto, urge que o juiz investigue a constitucionalidade da lei. Já não tem sentido a sua aplicação automática e asséptica. Não existe lei que não envolva valores. O juiz deve questionar o seu significado, bem como sua coerência com as normas e princípios básicos da Lei Magna. O Estado Constitucional de Direito permite o confronto direto entre a sentença e a Constituição. É na observância estrita da Constituição, assim como na sua função de garante do Estado Constitucional de Direito, que assenta, o fundamento da legitimação e da independência do Poder Judiciário.
Dentro do sistema jurídico-constitucional vigente, deve a Magistratura desempenhar as seguintes funções básicas: solução de litígios, controle da constitucionalidade das leis, tutela dos direitos fundamentais e garante da preservação e desenvolvimento do Estado Constitucional e Democrático de Direito contemplado na Constituição de 1988. Mas para que cumpra suas funções a Magistratura deve ser independente e responsável.
O Poder Judiciário brasileiro depara-se, nos últimos tempos, com o desafio da concretização dos direitos de cidadania. Para tamanho desafio, não há fórmula pronta. É preciso estar sempre disposto para essa luta. É importante não esmorecer ante a adversidade do volume de serviço crescente, mas recusar-se a entregar uma jurisdição de papel, alienada, sem a necessária e profunda reflexão sobre os valores em litígio, em que as partes sejam vistas somente como números. É preciso que os juízes tenham o propósito de realizar uma jurisdição que proporcione pacificação social. É preciso reconhecer que a maior parte dos brasileiros ainda não tem acesso à Justiça e que é preciso reverter esse débito de cidadania.
O juiz contemporâneo, seja porque só está vinculado à lei constitucionalmente válida, seja porque enfrenta freqüentemente conceitos jurídicos indeterminados, principalmente quando deve solucionar conflitos modernos relacionados com relações de consumo, com o meio ambiente, interesses difusos etc., é integrante do centro de produção normativa, logo, é um juiz politizado (o que não se confunde com politização partidária).
O Juiz, no nosso sitema judicial, sem extrapolar o marco jurídico-constitucional, pode e deve desempenhar sua tarefa de dirimir litígios de modo socialmente mais justo cumprindo papel inteiramente distinto do juiz legalista-positivista, criado pela Revolução Francesa para ser la bouche de la loi.
A prestação jurisdicional deve ser exercida como instrumento de pacificação social e afirmação da cidadania, o que é facilmente verificado quando da ocorrência de sua aplicação célere e justa, consubstanciando-se, dessa forma, como um poderoso instrumento a serviço da população. Como ser observa, esta sim, é a razão primordial da existência do Poder Judiciário.
O Judiciário, nos tempos atuais não pode se propor a exercer função apenas jurídica, técnica, secundária, mas deve exercer papel ativo, inovador da ordem jurídica e social, visto que é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude.
Por outro lado, longe de se pretender um "governo de juízes", deve a Justiça, observando, os princípios e regras constitucionais e legais, caminhar rente a sociedade, pois a vida cotidiana é verdadeira escola da cidadania. Não existe o cidadão pronto e acabado. O que existe é a cidadania em construção. Aprende-se a ser cidadão através da prática da cidadania. É no concreto nas relações sociais diárias que a cidadania revelará sua plenitude ou limitação.
É preciso que o juiz seja também um educador. Vale lembrar a lição de Paulo Freire "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção". A transferência dos ensinamentos de Paulo Freire, originalmente destinados à formação de uma consciência crítica e democrática no meio educacional, tem adequação, também, à atividade judicante, especialmente ao Poder Judiciário brasileiro. Com efeito, a prestação da tutela jurisdicional não pode ser enxergada apenas como a desincumbência, por um dos componentes do Estado-tripartite, de uma tarefa que lhe é ínsita. É muito mais do que isso. Além de perseguir a pacificação social, ao instante em que diz a quem pertence o direito, tem a atividade jurisdicional um "plus" deveras salutar: a pedagogia de mostrar aos jurisdicionados como deve ser a conduta destes nas suas relações interpessoais e interinstitucionais.
É preciso perceber que o contato do juiz com o jurisdicionado e a própria sociedade não enfraquece o Poder Judiciário. Ao inverso, tende a enobrecê-lo, conferindo a este maior grau de legitimidade. Essa postura deve ser assumida pelo Juiz moderno, tendo encontro marcado com o que preconiza Paulo Freire, no sentido de que o mister do educador exige deste a consciência do inacabado, o reconhecimento de ser condicionado e exige respeito à autonomia de ser do educando.





REFERÊNCIAS


BARACHO, José Alfredo. Teoria geral da cidadania: a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 29.

GOMES, Luís Flávio, A dimensão da magistratura no Estado Constitucional e Democrático de Direito: independência judicial, controle judiciário, legitimação da jurisdição, politização e responsabilidade do juiz. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 45.

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. O juiz: seleção e formação do magistrado no mundo contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. p. 182.

VASCONCELOS, Pedro Carlos Bacelar de. Teoria geral do controlo jurídico do poder público. Lisboa: Cosmos, 1996.