A metáfora da conciliação - Juiz Ruitemberg Nunes Pereira

por ACS — publicado 2010-09-14T00:00:00-03:00
Nietzsche dizia que a tarefa da linguagem é produzir metáforas. O direito, como exemplo de instância privilegiada da linguagem humana, não foge desse destino. A metaforicidade do direito reconstruiu-se nos tempos de reviravolta linguísticopragmática e de protagonismo judicial, ampliando a nossa habilidade de poiesis metafórica. Diante da multiplicidade das questões que se avolumam a cada dia nos tribunais e das incertezas e imprecisões que permeiam a linguagem jurídica formal, as nossas metáforas se universalizaram e muitas delas se tornaram metáforas mortas, a intensificar o sentido estratégico e simbólico dos discursos jurídicos e a demonstrar a nossa capacidade de fomentar a hipocrisia (e não apenas de protegê-las, como dizia Pierre Bourdieu).

Segundo Nietzsche, o problema das nossas metáforas se apresenta quando nos esquecemos que elas são apenas metáforas e não verdades absolutas, reificando-a sem princípios objetivos do agir. O próprio direito foi construído, segundo certas leituras do direito natural e do mito do contrato social, a partir de uma metáfora atraente, a da paz social. Por isso, de certo modo, ficamos chocados quando Paul Ricoeur dissera, cruamente, que "justiça" significa apartar os conflitantes, colocá-los em campos separados, dar a cada um o que é seu.

As pessoas são felizes quando vivem as próprias vidas, sem serem importunadas pelo outro, num excesso liberal de autodeterminaçãoseminterferências, segundo a metáforada vida privada.

Os indivíduos pós-modernos se isolaram, e a paz consiste no maior grau possível de isolamento. A sociedade atual se individualizou para produzir a paz.Mas os encontros assim como os conflitos são inevitáveis (e talvez até necessários, como sustentou Alberto Hirschmann combaseem Helmut Dubiel e Georg Simmel).

Os conflitos exsurgem quando os homens se encontram, quando quebram as fronteiras de sua cidadela de autodeterminação. De um simples conflito em um incidente de trânsito até aos conflitos de âmbito global, a metáfora do "encontro" tem a sua relevância. As metáforas do "encontro" e da "paz" formam uma relação paradoxal.

Nesse conflito de metáforas, o mundo moderno fez opção pelo isolamento, que traduz a nossa medida peculiar de individualismo exacerbado. Numa comunidade onde não se conhecemn em mesmos os vizinhos de porta, os colegas que se sentam ao lado nos bancos escolares, onde não se estabelecem vínculos, relações, laços ou cuidados, pelas mais diversas e complexas razões, onde os conflitos se multiplicam nos encontros que queremos mas não podemos evitar, a metáfora da conciliação constitui uma metáfora morta, uma ação estratégica contra a própria estratégia das metáforas vivas.

No contexto do discurso judicial, a verdade da conciliação ostenta a ingenuidade própria da metáfora reificada.

Mesmo nos casos em que a formação do acordo deriva de um jogo de estratégias das partes que ocasionalmente se "encontraram", a conciliação é saudada como um gesto de sucesso da civilidade. A insistência do "encontro" se vê como incapacidade de diálogo, de indisposição social, de falta de solidariedade coletiva ou de responsabilidade cívica. Persistir o "encontro" mostra o fracasso do sistema. A reificação da metáfora da conciliação nos leva a saudar o acordo sempre, em qualquer circunstância.

Mas a humanidade do gesto pode mostrar a validade do dito de Proudhon: "Quem diz 'humanidade!' geralmente quer enganar".

O juiz é simbolicamente domesticado a incentivar tais acordos, que propiciarão o sistemicamente almejado "desencontro" entre os contendentes, a "separação civilizada", a profilaxia corretiva do "acidente" das relações humanas, sob o signo de que as próprias partes chegaram a bom termo, prescindindo da intervenção judicial. O palco da "briga" judicial se desfaz de forma civilizada, no modo mais elevado possível, culturalmente falando.

O valor metafórico da conciliação, que avança a ideia da Justiça tradicional como obstáculo aos "desencontros", passa a inserir-se na filosofia moral do juiz. Deixar de reproduzir a metáfora constitui um desvio ético. Esse é o preciso momento em que a metáfora se transforma em verdade absoluta e se converte em metáfora morta, porque nos faz esquecer que se trata apenas de uma metáfora e que a linguagem conciliatória, na maioria das vezes, esconde mecanismos institucionalizados de dominação, de hierarquização e de exclusão sociais profundos e incrustados em nossa cultura. A obediência à metáfora da conciliação émais sensível nas classes sociais menos favorecidas, nas quais é maior a influência do poder econômico das grandes corporações, que sabem produzir os
"desencontros civilizados" da forma mais favorável aos próprios interesses, tudo com assistência do agente estatal domesticado para reproduzir a metáfora conciliatória e homologar o seu simbolismo ideológico. Muitos já assistiram e anuíram a conciliações profundamente aviltantes em relação aos menos favorecidos, muitas vezes desassistidos ou mal assistidos. O discurso da disponibilidade dos bens jurídicos serve aos mesmos propósitos da metáfora.

O sistema econômico assim diferenciou uma fórmula eficiente de superar a "ineficiência" da Justiça, vista como empecilho ao livre fluxo das atividades econômicas de acumulação de riquezas e de capital, inoculando no sistema judicial a metáfora da conciliação. Nesse cenário, os acordos entre as partes "encontradas" se produzem basicamente por razões materiais e instrumentais (tempo que demorará até a prolação da sentença não-homologatória, possibilidade de decreto de improcedência total ou parcial dos pedidos, uma quase certeza de recurso à instância judicial superior pela parte mais poderosa, a possibilidade de reformada sentença de procedência).

O próprio juiz, paradoxalmente dito sujeito imparcial dessa relação de "encontro", é estimulado a demonstrar, de forma sutil, esses fatores de ponderação que devem ser avaliados no momento do acordo. Muitos até antecipam as suas posições sobre o conflito, alargando a rede social de estímulos à conciliação, incrementando assim as estatísticas de acordos e fortalecendo o poder simbólico da metáfora conciliatória. Desse modo, a ingênua metáfora se transforma num potente jogo ideologizado de cálculos e estratégias. O resultado é celebrado por todos os que têm o poder de influência econômica e de manipulação simbólica dos fatores de dominação e reprodução, e que atuam amparados na metáfora conciliatória que se institucionalizou como imperativo categórico, livres para darem continuidade às suas atividades reprodutoras de "encontros" que possivelmente culminarão em novos acordos simbólicos.

Como toda metáfora morta, esta não se permite atuar sem um pano de fundo ideológico. Sua ideologia, como explicação parcial do fenômeno, além da mais hipócrita sustentação nas utopias da paz social e da elevação cultural da sociedade ocidental civilizada, assenta-se ideologicamente no ideal do desafogamento da Justiça, contra o qual não há (nem pode haver) resistências. Nisso reside a força da ideologia e da metáfora. Segundo Paul Ricoeur, a eficiência da metáfora consiste precisamente nisso, dar sentido lógico ao sem sentido. Um dos grandes desafios que envolvem o tema da conciliação consiste em se desenvolverem caminhos criativos que permitam a passagem da metáfora morta para o lugar edificante das metáforas vivas.