20 anos dos Juizados Especiais - Juíza Oriana Piske, Cláudio Nunes Faria e Cristiano Alves da Silva
Artigo publicado no site do TJDFT, página da Imprensa em Artigos, em 14/9/2015.
Oriana Piske*, Cláudio Nunes Faria* e Cristiano Alves da Silva*
Foi para atender o preceito constitucional disposto no artigo 98, inciso I, que surgiram os Juizados Especiais Estaduais (Lei no 9.099/95) e Federais (Lei no 10.259/01) que se revelaram um marco na história do Judiciário brasileiro, visto que romperam com as amarras dos modelos e procedimentos tecnicistas da Justiça tradicional.
O aumento da demanda decorrente não só do crescimento vegetativo da população ao longo das últimas décadas, mas também em virtude da conscientização com relação à cidadania, acentuada com a promulgação da Constituição Federal de 1988, trouxe mais instrumentos para a garantia dos direitos individuais e coletivos, fez com que o Judiciário buscasse novas soluções para o atendimento eficiente às demandas apresentadas pela população.
E, dentro desse raciocínio, insere-se toda filosofia e o próprio idealismo daqueles que estão empenhados em mudanças razoáveis e factíveis para que outras perspectivas e outros horizontes se abram para o povo em geral, graças à facilitação do acesso pleno à Justiça, que vem ocorrendo nestes últimos 20 anos no Brasil, por meio dos Juizados Especiais.
Os Juizados Especiais visam à simplificação e desburocratização do processo, e vão além ao implicarem uma mudança de mentalidade dos operadores do direito, no sentido de adequá-los a um novo exercício da cidadania, passando a ser notável instrumento de acesso rápido e democrático à Justiça.
A criação dos Juizados Especiais caracteriza passo de natureza revolucionária na área do processo, por impor rapidez na solução do litígio e permitir efetiva execução em tempo célere, contribuindo para atenuar a crise da demora da prestação jurisdicional, como também para desenvolver uma cultura de exercício da cidadania.
Quando se almeja equacionar as dificuldades do acesso à Justiça, não se pode perder de vista que uma grande parcela da população passa ao largo da proteção jurídica, em função da situação particular em que vive, causada notadamente pela gritante diferença na distribuição da renda, criando camadas e subcamadas populacionais que vivem à margem da sociedade.
Ressalte-se que, muitas vezes, diante da pequenez do bem jurídico violado, quase sempre o ofendido acaba renunciando ao próprio direito, por saber que a morosidade do Judiciário lhe trará mais prejuízo do que benefício. Em geral, é a camada menos favorecida da população quem sofre com as consequências mais desastrosas da dificuldade do acesso à Justiça. A falta de acesso ao Judiciário constitui, ainda hoje, um dos problemas que mais afligem a sociedade brasileira.[1]
Uma justiça demorada é causa, também, do difícil acesso do cidadão à prestação jurisdicional. A Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais diz isso expressamente no § 1o do artigo 6o “(...) a Justiça que não cumpre suas funções dentro de um prazo razoável é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível. ”[2]A tempestividade compreendida como sendo a utilidade da prestação jurisdicional para aquele que quis ver o seu direito salvaguardado, preocupa os estudiosos de todo o mundo, os quais buscam instrumentos eficientes para o combate da lentidão judiciária.
Esses fatores, em uma sociedade que anda à velocidade da luz e em constante competição globalizada, assumem destaque como a espinha dorsal da qualidade de todo e qualquer serviço. A Justiça, como serviço e instrumento de pacificação social, precisa comungar com as ideias que estão modificando a civilização, sob pena de perder-se no tempo e no espaço.
É certo que a entrega da prestação jurisdicional não pode deixar de transitar por um processo, previamente regrado, no qual os interessados possam ser ouvidos. Trata-se de elemento essencial para a legitimação da atividade do juiz. Mas, este processo deve ser caminho de realização da Justiça desejada pelos cidadãos, não estorvo incompreensível e inaceitável.
Neste passo é que a Lei dos Juizados Especiais veio propiciar Justiça ágil, simplificada e acessível a todos os cidadãos. Desta forma, os Juízes estão despertando para deixar de lado o monólogo criptografado nas suas sentenças para exercitar um diálogo compreensível que aproxime a Justiça de todos.
Com os Juizados Especiais, o Poder Judiciário tem sido exposto à questão social em sua expressão bruta, tomando conhecimento dos dramas vividos pelos segmentos mais humildes da população, dos seus clamores e expectativas em relação à Justiça. Os juízes desses Juizados estão, por isso, independentemente da compreensão que possam ter acerca das suas novas atribuições, em posição de potenciais “engenheiros” da organização social, papel cujo desempenho dependerá dos nexos que lograrem estabelecer com a sociedade civil.
Como expressão de um Judiciário que visou estender sua malha de prestação jurisdicional, buscando atingir a litigiosidade contida, os Juizados Especiais passaram a se constituir no locus da criação jurisprudencial do Direito, num instrumento de aproximação da sociedade brasileira com o ideal de auto-organização, num movimento em que o Direito sirva, efetivamente, à consolidação da cidadania e à ideia de bem-comum.
A República Federativa brasileira, constituída em Estado democrático de direito, erigiu, dentre seus pilares fundamentais, a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Verificamos que o aludido Diploma Constitucional deu um passo marcante na história do Judiciário, ao traçar e imprimir as balizas de um dos instrumentos mais eficientes e eficazes para o exercício democrático da cidadania – os Juizados Especiais (art. 98, I), que se apresentam como uma estrutura dinâmica, rápida, desburocratizada, com procedimentos pautados pela racionalidade e pela otimização, num baixo custo processual, avançando seus objetivos para setores sociais, atuando através de parcerias interinstitucionais, com órgãos governamentais ou não, bem como com a sociedade civil, a fim de ampliar e facilitar ao máximo o exercício democrático da cidadania.
A sociedade vem clamando uma postura cada vez mais ativa do Judiciário, não podendo este ficar distanciado dos debates sociais, devendo assumir seu papel de partícipe no processo evolutivo das nações. Eis que é também responsável pelo bem comum, notadamente em temas como a dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e a defesa dos Direitos de cidadania.
O Judiciário, nos tempos atuais, não pode se propor a exercer função apenas jurídica, técnica, secundária, mas deve exercer papel ativo, inovador da ordem jurídica e social, visto que é chamado a contribuir para a efetivação dos direitos sociais, procurando dar-lhes sua real densidade e concretude. O juiz deve estar atento às transformações do mundo moderno, porque, ao aplicar o Direito, não pode desconhecer os aspectos sociais, políticos e econômicos dos fatos que lhe são submetidos.
Os Juizados Especiais possuem como principal caraterística a humanização democrática das relações entre Poder Público e particulares, na medida em que concede à vítima e ao agente o poder de deliberação na solução de seus conflitos, sem a imposição de fórmulas legais rígidas e pré-concebidas, de aplicação genérica, as quais presumem, de forma difusa, a igualdade de todas as situações fáticas, desconsiderando o caso concreto e a individualidade dos cidadãos.
A necessidade de adaptar o Poder Judiciário às múltiplas demandas do mundo moderno, a premência de torná-lo mais eficiente, de definir suas reais funções, sua exata dimensão dentro do Estado Constitucional e Democrático de Direito, a incessante busca de um modelo de Judiciário que cumpra seus variados papéis de modo a atender às expectativas dos seus usuários, tudo isso tem contribuído para que a tão esperada reforma do Judiciário ganhe efetiva prioridade. Acredita-se que as experiências adquiridas com a implantação das inovações simplificadoras do processo nos Juizados Especiais poderão servir de embrião para avanços relativamente às demais questões submetidas ao Judiciário.
Os Juizados Especiais Estaduais e Federais representam uma das maiores contribuições da Justiça brasileira para a construção de uma sociedade mais justa, por contribuir sobremaneira para a concretização dos Direitos de cidadania. A atuação criativa dos juízes pode ser constatada mediante a diuturna e efetiva prestação jurisdicional nos Juizados, ao darem solução adequada a cada caso, revelando um compromisso inequívoco com o Direito e a Justiça.
Portanto, a experiência dos Juizados Especiais Federais, Estaduais e do Distrito Federal representa a Justiça cidadã do terceiro milênio, na qual depositamos a confiança e a esperança de que todos os brasileiros e estrangeiros residentes no nosso País possam ter um acesso cada vez mais amplo a um dos valores supremos da nossa sociedade – a Justiça – ainda que, para se alcançar esse ideal, haja muitos desafios a serem superados.
Referências
CAPPELLETTI, Mauro [et al.]. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Título original: Acess to Justice: the worldwide movement to make rights effective: a general report.
CARVALHO, Ivan Lira de. Eficácia e democracia na atividade judicante. Eficácia e democracia na atividade judicante. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, v. 171, jul./ago. 1999, p. 53-63.
FUX, Luiz; BATISTA, Weber Martins. Juizados Especiais Cíveis e Criminais e suspensão condicional do Processo Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
GOMES, Clóvis. Juizados Especiais: Justiça mais ágil ao alcance de todos. Justiça, a revista dos Magistrados, AMAGIS-MG, Belo Horizonte, v. 4, n. 17, abr./maio 2001, p. 10-13.
SALOMÃO, Luis Felipe. Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis. Rio de Janeiro: Destaque, 1997. p. 24.
* Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA).
*Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
Diretor de Secretaria do 4° Juizado Especial Cível de Brasília.
Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho-RJ e Pós-Graduado pela Escola da Magistratura do DF.
*Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
Diretor de Secretaria-Substituto do 4° Juizado Especial Cível de Brasília.
Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).
[1] SALOMÃO, Luis Felipe. Roteiro dos Juizados Especiais Cíveis. Rio de Janeiro: Destaque, 1997. p. 24.
[2] CAPPELLETTI, Mauro [et al.]. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Título original: Acess to Justice: the worldwide movement to make rights effective: a general report.