Dívida ativa: um tesouro escondido - Juíza Soníria Rocha Campos D'Assunção
Artigo publicado na edição do dia 19/3 do jornal Valor Econômico, editoria Legislação e Tributos.
Soníria Rocha Campos D'Assunção*
Vivenciamos uma crise econômica. Todos os dias os jornais noticiam que os Estados buscam, de várias maneiras, equacionar as suas finanças para a manutenção das atividades estatais de relevância social. No entanto, pouco se tem considerado a total viabilidade da recuperação do bilionário crédito das Fazendas Públicas da União, Estados e municípios.
Sob a criticada denominação "dívida ativa", que não reflete o real significado do termo, tem-se, na verdade, créditos públicos como tesouros escondidos em vasos de barro, porquanto é equívoca a ideia de que o seu recebimento é frustrado. Ledo engano. Esclareço: quando mudamos a forma de lidarmos com esses créditos e os problemas que os cercam, há redução no ajuizamento de ações, redução do acervo processual, com altos índices de parcelamento e pagamento do débito e, consequentemente, créditos fiscais são recuperados, e há aumento da arrecadação.
Cerca de metade das ações em trâmite no Judiciário são de execução fiscal. Segundo o Relatório Justiça em Números 2014 – CNJ, a cada cem ações que ingressaram em 2013, apenas nove foram extintas.
É certo que o modelo tradicional de recuperação do crédito público, seja por meio do procedimento administrativo, seja por meio do processo judicial encontra-se em crise e precisa ser urgentemente revisto. A atuação conjunta dos três poderes, sobretudo a cooperação e integração entre o Executivo e o Judiciário, que têm papel ativo na cobrança administrativa e judicial do crédito fiscal não pago pelos contribuintes, são de fundamental importância para o êxito na recuperação do crédito.
As causas da crise são multifatoriais e residem tanto no âmbito administrativo quanto no judicial, bem como refletem a própria cultura de pagamento de tributos no Brasil. Nesse aspecto, existe uma certa resistência como forma de protesto ao pagamento, em face, dentre outros, da falta de transparência na destinação dada ao crédito público (produto da arrecadação), da corrupção endêmica e da alta carga tributária.
De modo algum se pode aqui atribuir ao Judiciário a pecha de morosidade para justificar um problema que nasce, desenvolve-se no Poder Executivo e teria grande parte evitada ou resolvida se houvesse uma atuação administrativa diferenciada, mas termina por culminar no ajuizamento de centenas de milhares de ações de execução fiscal, em sua maioria na véspera da ocorrência da prescrição. Daí, o juiz tem à sua frente o desafio quase desumano de processar, movimentar e encontrar, com criatividade e celeridade, a porta de saída dessas ações peculiares, a fim de entregar, com efetividade, o crédito ao seu dono, o próprio ente público integrante do Poder Executivo.
Se o grande número de ações de execução fiscal em curso no Judiciário assusta, o que dizer do que representa em crédito público a ser recuperado. Somente o da União corresponde à metade do PIB nacional! O Distrito Federal tem a receber R$ bilhões, e apenas no ano passado, a Secretaria de Fazenda inseriu no cadastro de dívida ativa 170 mil proprietários de imóveis e 153 mil de veículos, referentes a débitos de IPTU e IPVA, que somados, chegam a cerca de R$ 200 milhões. Se considerarmos que, na capital federal, a cada R$ 3,50 de tributos recolhidos aos cofres públicos, R$ 1,00 deixa de ingressar, por inadimplência, a conclusão é a de que a tendência é desse número crescer vertiginosamente e, em breve, de novas ações serem ajuizadas.
Ao Legislativo cabe o aprimoramento e a elaboração de leis que estimulem e facilitem o recebimento desse crédito, bem como disciplinar a transação tributária de forma racional, levando-se em conta a capacidade econômica do contribuinte/executado. Apenas a edição de leis esporádicas de anistia e benefícios fiscais (Refis, Refaz, Recupera etc.) não resolve a situação. Se, por um lado, cumpre a finalidade de aumentar a arrecadação em um determinado período, por outro, acaba por estimular a inadimplência daqueles que somente pagam os tributos nesses "momentos favoráveis". De modo contrário também desestimula o pagamento pelo cidadão cumpridor dos seus deveres, que se sente "injustiçado" ante a sua própria pontualidade.
Se queremos resultados diferentes, não adianta fazermos sempre as mesmas coisas. A criatividade do magistrado, aliada à gestão estratégica desses processos, conforme tipo de tributo, valor do débito e perfil do executado têm se mostrado eficientes para a resolução da crise.
Práticas exitosas de conciliação e negociação fiscal de débitos ajuizados ou não têm alcançado altos índices de acordo (83% a 88%), não obstante a indisponibilidade do crédito público, que, por si só, não é óbice ao excelente resultado obtido. A realização de audiências em que o Judiciário promove e facilita o diálogo do executado/devedor com o Estado/credor, eliminando os entraves burocráticos para a regularização fiscal do cidadão e empresas é um incentivo à cidadania tributária, previne o inadimplemento e novas demandas, porque tem função educativa. Com efeito, o juiz assume o papel ativo de agente de transformação social para a solução dos conflitos fiscais.
Contudo, causa perplexidade perceber que a grande maioria dos que lidam com o crédito público parece adormecida e desmotivada, sequer acredita que a sua soma, ou grande parte dela, possa ingressar, um dia, nos cofres públicos. Temos a dívida ativa como um tesouro escondido em vasos de barro. A estrutura dos vasos não é tão difícil de romper, mas passa por uma mudança de mentalidade. A cultura de ineficiência da execução fiscal e de que a recuperação do crédito é praticamente frustrada precisa ser combatida. A aparência rústica do barro encobre a preciosidade existente no seu interior. O crédito não está perdido, apenas guardado. Precisamos recuperá-lo!
juíza de Direito do TJDFT, juíza auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça e Coordenadora do Programa Nacional de Governança Diferenciada das Execuções Fiscais.