O acesso de dados de adolescentes autores de atos infracionais - Juiz Márcio da Silva Alexandre
Artigo publicado no Correio Braziliense, no caderno Opinião, em 11/12/2015.
Márcio da Silva Alexandre*
Há mais de 8 anos, trabalho com atos infracionais, de todas as celeumas, que envolvem o tema. Mas existe uma especificamente que sempre pareceu incompreensível. Refiro-me à interpretação que se dá aos artigos 143 e 144 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, em resumo, exigem autorização judicial, quando se deseja divulgar atos judiciais, policiais e administrativos referentes a adolescente que se envolve com o crime. Embora a aplicação dos artigos referidos seja restrita à divulgação, tem-se entendido que toda cópia referente ao procedimento de adolescente que apura o ato infracional careceria de autorização do Juiz da Infância.
Assim, a vítima de um roubo, para obter a cópia do Boletim de Ocorrência (BO), exigida pela seguradora do automóvel, precisa requerer autorização ao Juiz da Infância. Segundo essa linha, o Ministério Público tem que obter autorização judicial para extrair cópia do depoimento do adolescente que disse ter sido agredido por policiais, para solicitar a investigação desse possível abuso. E mais: se o promotor de Justiça, que atua em vara criminal necessitar de cópia das declarações do adolescente dadas no processo infracional também carecerá de autorização judicial.
Não há que se cobrarem essas autorizações, pois os dispositivos exigem a anuência do juiz quando se quer divulgar os atos referentes aos adolescentes que são acusados de atos infracionais. Divulgar, significa, em síntese, propagação, difusão, veiculação. Nenhum dos três casos acima se enquadra nesse conteúdo. A vítima que teve o veículo subtraído deseja a cópia do BO tão só para fazer prova perante a seguradora. A toda evidência - e não cabe ao intérprete do direito divagar, sem qualquer fundamentação plausível para sua preocupação -, é fato que não pretende ela dar conhecimento a outras pessoas sobre as informações contidas no BO. Assim, é absolutamente incabível a recusa de delegado de Polícia, ainda que lastreado por documento normativo de origem interna, em fornecer ao cidadão a cópia solicitada. Essa postura fere direito fundamental expressamente previsto nos incisos XXXIII e XXXIV, do artigo 5º da Constituição Federal/1988 (CF/88), além de ser extremamente burocrática e onerosa ao cidadão, diante da demora e dos custos com a contratação de advogado.
Na segunda situação, também não existe razão para intervenção judicial. A CF/88 afirma, no artigo 227, ser dever da sociedade e do Estado assegurar ao adolescente uma série de direitos fundamentais, entre eles, por óbvio, estão a vida, a liberdade e a dignidade. E ainda exorta ser nosso dever colocá-lo a salvo de toda forma de negligência. E mais: o MP, também por imperativo constitucional, tem o poder-dever de fiscalizar a atividade policial (inciso VII do artigo 129).
Assim, é incabível qualquer obstáculo à consecução desse desiderato. Soma-se a isso ser crime a conduta daquele que impede ou embaraça ação do MP no seu dever de proteger os direitos da criança e do adolescente (artigo 236, do ECA). Nesse diapasão, sob qual justificativa deve-se exigir do MP, no seu relevante papel de protetor dos direitos juvenis, requerimento ao Juízo Menorista para que o autorize a extrair as cópias necessárias a fim de apurar eventual abuso praticado contra o adolescente infrator? Não se vê nenhuma razão legal ou principiológica.
No mesmo sentido, deve ser resolvida a terceira situação. A juntada de declarações do adolescente em processo criminal constitui exercício legítimo da atuação do MP. Com amparo no art. 129, VIII, CF/88, tem o direito de provar o que alega no Juízo criminal. Jamais se poderia exigir decisão judicial autorizativa para tanto, até porque a obtenção dessas declarações não se encontra na esfera da cláusula de reserva jurisdicional. Para evitar eventual e posterior divulgação, basta que se requeira o sigilo doravante a juntada.
Para reforçar essa desnecessidade, observa-se que nunca se ouviu alguém mencionar a necessidade de o Delegado de Polícia requerer autorização do Juiz da Infância, para incluir, no Inquérito Policial (procedimento administrativo), informação de participação de adolescente na prática do crime que apurou. Assim, não se vê racionalidade em exigir isso do MP.
Ora, já temos cerca de 110 milhões de processos autuados em toda Justiça, sendo que, desse total, em torno de 45% poderiam ser resolvidos por acordo. Urge que não se criem procedimentos sem previsão legal. Não usemos de racionalidade para "criar dificuldades a fim de vender facilidades". Usemos da razão para extrair utilidade nas leis, de modo a imprimir celeridade e simplicidade. Não adianta a criação de lei moderna se os operadores não acompanham sua modernidade. O ECA, conquanto necessita de alguma atualização, é uma baita lei moderna.
* Juiz titular da Vara Regional de Atos Infracionais do DF