O real perfil da criança cadastrada para adoção - Walter Gomes de Sousa

por ACS — publicado 2015-03-16T13:20:00-03:00

Artigo publicado no site do TJDFT, página da Imprensa em Artigos e na página da Vara da Infância e da Juventude do DF, em 13/03/15.

Walter Gomes de Sousa*

Costuma-se tecer rasgados elogios ou severas críticas às pessoas que manifestam interesse em adotar uma criança. Isso demonstra que, por mais elevado e auspicioso que seja esse instituto, sua natureza continua sendo objeto de controvérsias e restrições.

Pelo fato de a adoção impor elevados desafios e desprendimentos, os pais adotivos são retratados com adjetivos superlativos: heróis, seres especiais, pessoas extraordinárias, bem aventurados, etc. Isso decorre do sentimento generalizado de que essa modalidade de exercício parental afetivo é cercada de obstáculos, apreensões e dor e de que a pessoa que o abraça merece toda forma de louvação.

A legislação impõe que os candidatos ofereçam ambiente familiar adequado e equilibrado, que suas pretensões estejam baseadas em razões corretas e legítimas, que tenham o discernimento e entendam que a adoção é de caráter irrevogável (para sempre, sem retorno) e que proporcionem à criança elevadas vantagens e inquestionáveis benefícios.

No processo de adoção, deve-se ter a garantia de que o principal beneficiário será a criança. Esse é o sentido primeiro e último de qualquer ação dessa natureza. Ou seja, o processo judicial de adoção só alcança legitimidade quando se torna instrumento de promoção do bem- estar e da felicidade da criança.

Mas afinal de contas, quem é essa criança que é disponibilizada para adoção pelo Sistema de Justiça e apresentada às famílias postulantes?

Via de regra, ela é vitimada pela ruptura de vínculos com sua família natural, passou pela traumática experiência do desamparo e foi marcada pela privação do afeto familiar. Sua história pode ser um entremeado de dolorosas lembranças, de sonhos e desejos dilacerados e de futuro nebuloso e incerto. A depender da idade e da capacidade de entendimento e discernimento, ela poderá indagar-se: a partir de agora, quem cuidará de mim?

A criança terá que aguardar a definição de seu destino a partir de uma complexa tramitação processual cujo tempo vai depender de como os atores que compõem o sistema de justiça se manifestarão. É certo que, independentemente de qualquer variável, sua situação sempre exigirá celeridade, urgência e prioridade. O tempo é implacável e pode escoar em absoluto desfavor da criança. Enquanto não se decide, ela permanece aguardando, sob o manto de uma medida judicial de proteção, o momento de possivelmente ser cadastrada para adoção.

Para quem atua no contexto da defesa e promoção dos direitos da infância e juventude, o tempo do processo judicial nunca corresponde ao tempo das necessidades, direitos e expectativas de uma criança. A demora na definição jurídica quanto ao futuro de um sujeito de direitos abandonado e privado de afeto familiar pode decretar a condição de absoluta impossibilidade de vir a ser adotado, visto que as exigências, sobretudo etárias, estabelecidas

pelos postulantes podem resultar na permanência indefinida de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento.

Ressalte-se que essas instituições, por mais organizadas, humanizadas e qualificadas que sejam, não representam o melhor e mais adequado espaço para o desenvolvendo e amadurecimento de uma criança. Para um ser indefeso e afastado das figuras protetivas de pai e mãe a experiência de viver em um contexto institucional será inospitamente marcante com repercussões negativas em seu repertório psíquico e comportamental.

Não raro, deparamo-nos com crianças absolutamente incapazes de estabelecer vínculos afetivos e mantê-los e isso se deve possivelmente a uma instintiva reação de autoproteção e autopreservação, tamanha a dor emocional carregada resultante da traumática experiência do abandono e da ruptura dos laços de parentesco com sua família natural.

Esse é o perfil da criança que passa a figurar no cadastro de disponibilizados para adoção do Poder Judiciário. Não é aquela criança idealizada e projetada por desejos seletivos e caprichosos, de pele alva, olhos claros, saudável em todos os aspectos e que não faça parte de grupo de irmãos. Que não carregue traumas e marcas de sofrimento em seu psiquismo e muitas vezes nem em seu corpo. Essa criança desenhada pelos arquétipos do desejo de muitos postulantes e com conotações angelicais inexiste no Cadastro de Adoção.

O cadastro de disponibilizados para adoção gerenciado pelo Poder Judiciário retrata o nosso rico e diversificado contexto étnico e sociorracial, no qual há predominância de pardos e afrodescendentes e também de significativas parcelas de excluídos e depauperados. O contexto familiar originário das crianças disponibilizadas possui características peculiares e similares: precariedade financeira; numerosa prole; elevada incidência das violências física, emocional e sexual; presença ostensiva de dependentes químicos; desempenho negligente das funções parentais de cuidado e proteção. É desse ambiente que, na maioria dos casos, advém a criança que será inserida no Cadastro de Adoção.

Frequentemente, quem trabalha na área da adoção nas diversas Varas da Infância do País depara-se com enormes dificuldades de encontrar uma família habilitada para conhecer e acolher uma criança com determinadas características, história e configuração familiar. Como exemplo, cito uma criança de apenas 06 meses de idade, cujos pais eram dependentes químicos, negligentes e violentos. Os demais membros da família extensa eram também dependentes químicos e alguns com comprometimento mental. Embora relatórios médicos apontassem para um quadro de saúde excelente daquela criança de tenra idade, quase duas dezenas de famílias habilitadas consultadas acabaram, em razão desse histórico familiar, recusando a adoção dela. Os medos, receios e fantasias foram mais fortes que o desejo de ser pai ou mãe daquele ser inocente com curta e conturbada história de vida.

Recentemente a mídia noticiou o caso, em São Paulo, de uma criança que foi rejeitada por três famílias adotivas por ser muito negro e feio. A cor da pele e os seus traços esteticamente indesejáveis determinaram de forma surpreendente a recusa por parte daquelas famílias em adotá-lo. Felizmente, o final desse caso foi notável visto que um casal homoafetivo masculino habilitado acabou por adotá-lo sem quaisquer restrições, exigências ou reservas.

Para muitas crianças, o instituto da adoção passa a ser a única possibilidade concreta de reencontro com o afeto e o pertencimento familiar e a chance de reescrever sua história de vida, ressignificando fatos, circunstâncias e pessoas. Adoção é o renascimento afetivo em um novo útero, formado a partir da aceitação incondicional, do amor, da proteção e da segurança, expressado por pessoas que querem apenas ser pais e mães de forma plena, responsável e contínua.

*Psicólogo e supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal – SEFAM/VIJ-DF