Muito além da anistia - Juiz Fernando Brandini Barbagalo

Artigo publicado na edição do dia 28/11/2016 do jornal Correio Braziliense, Editoria Opinião.
por ACS — publicado 2016-11-28T11:15:00-03:00

Fernando Brandini Barbagalo*

O texto do Projeto de Lei nº 4.850/2016, das medidas anticorrupção, em nenhum momento, em sua redação original, trata de anistia para crimes praticados por agentes públicos. Há a inovadora criminalização do chamado caixa 2 pelos arts. 32-A e 32-B a serem acrescentados à Lei nº 9.504/1997. O caixa 2, como lembrou a ministra Cármen Lúcia no julgamento do mensalão, já era crime, mas não um crime próprio, utilizava-se para tipificação o art. 350 do Código Eleitoral, pois se tratava de omissão de valores (que deveriam constar) em documentos eleitorais, uma espécie de falsidade ideológica eleitoral.

Agora, foram descritas as condutas consideradas criminosas. Como se trata de uma inovação, a referida lei penal não pode retroagir para atingir fatos praticados anteriormente à sua entrada em vigor por proibição expressa da Constituição (art. 5º, XL). Isso, na realidade, não cria qualquer tipo de anistia. A impossibilidade de punição decorre da proibição da lei penal incriminadora ser aplicada a fatos pretéritos.

Contudo, a proibição de retroatividade, por óbvio, não se aplica a outros crimes eventualmente praticados para obtenção de recursos 'não contabilizados' para as campanhas, ou seja, se o agente público participou de algum ato de corrupção, por exemplo, e utilizou a propina em sua campanha, não poderá ser processado pelo 'novo' crime de caixa 2, mas poderá ser processado por corrupção passiva (art. 317, CP).

Caso se queira realmente criar anistia para essas infrações conexas, deverá constar expressamente no corpo da lei a extensão para esse tipo de delito. Por se tratar de matéria excepcional, o ideal seria o tratamento em lei própria e não inserida em texto legal junto a outras diversas matérias.

Divulgou-se pela imprensa uma 'emenda plenária' (sem indicação de autoria), para ser incluída 'onde couber' e que pretende afastar a punição do caixa 2 no âmbito criminal, civil ou eleitoral. Trata-se de inovação questionável, eis que ultrapassa o aspecto criminal, adentrando em questões cíveis e eleitorais e, ainda assim, o faz sem qualquer referencial, limite ou orientação.

O projeto de lei, se aprovado com a inclusão da referida emenda, além de revelar patente casuísmo, criaria incerteza quanto à aplicação de diversos institutos, na medida em que, pela forma genérica como redigida, é impossível determinar sua influência sobre outros dispositivos legais, podendo impactar, por exemplo, no processo em análise no TSE sobre a prestação de contas de campanha eleitoral do atual e da ex-presidente da república, já que a realização de caixa 2 também é ilícito eleitoral punível com a sanção de cassação do mandato (art. 30-A, § 2º, Lei n. 9.504/97). E como ficaria a responsabilidade civil das empresas envolvidas em situação de caixa 2? Deixaria de existir para os fatos passados? Os eventuais acordos de leniência realizados, com base na Lei nº 12.846/12, perderiam sua exequibilidade? Os possíveis reflexos jurídicos decorrentes da aprovação da referida emenda são imensuráveis e seriíssimos.

A anistia sempre foi reservada para casos de ruptura ou grave crise institucional, para apaziguar ânimos e evitar possíveis injustiças, e não deveria ser utilizada indevidamente para beneficiar agentes estatais possivelmente envolvidos em ilícitos, sob pena de total desvirtuamento desse excepcional instituto democrático.

 

*Juiz de direito do TJDFT, professor de direito penal e processo penal da Esma-DF, da Escola de Formação Judicial do TJDFT, da Unip-DF. Foi juiz eleitoral entre 2014 e 2016.