Considerações sobre os dilemas da bioética e da judicialização da saúde no Brasil - Juíza Oriana Piske

por ACS — publicado 2017-07-03T10:50:00-03:00

Oriana Piske de Azevêdo Barbosa*, Caroline Piske de Azevêdo Mohamed*, Ana Cristina Barreto Bezerra* Dirce Guilhem*

 

RESUMO

O escopo deste estudo foi analisar os desafios da Bioética e da judiciação da saúde no Brasil e apresentar sugestões para reduzir este fenômeno. Levou-se a cabo uma revisão crítica da literatura mediante livros e artigos médicos e jurídicos. A aliança entre a Bioética e os direitos humanos anuncia uma nova forma de humanismo, que reconhece os componentes biológicos e éticos da natureza humana, cuja dignidade deve ser preservada. È preciso garantir a vida e a saúde considerando o direito individual sem detrimento do coletivo. Donde a igualdade e a equidade de um Sistema de Saúde deve alcançar a todos. Por isso, frente a invocações de possíveis vulnerações os tribunais tendem a deferir a tutela de maneira urgente. Estamos presenciando o incremento avassalador dos litigios que envolvem questões de saúde – a chamada judicialização da saúde – uma “enfermidade” do Setor Sanitário. O tratamento para essa “enfermidade” requer, entre outras propostas, que os juízes sejam assessorados por um corpo de peritos, proporcionando acesso aos conhecimentos da Ciência e dos Consensos Internacionais, que permitam, resolver as questões de forma mais justa possível.

 

Palavras-chave: bioética, biodireito, saúde, Brasil, judicialização.

 

ABSTRACT

The aim of this study is to analyze the challenges of bioethics and the judicialization of health in Brazil and present suggestions for reducing this phenomenon. Was carried out a critical review of the literature by medical and legal books and articles. The alliance between bioethics and human rights heralds a new form of humanism, which recognizes the biological and ethical components of human nature, whose dignity must be preserved. It must guarantee the life and health considering the individual right but not run over the collective. Where equality and equity of a health system must be comprehensive for all. So invocations against possible violations courts have to urgently provide protection. We are seeing an increase in litigation involving health issues - the so-called judicialization of health - a "disease" of the health sector. The treatment for this "disease" requires, among other proposals, that judges are advised by a body of experts, providing access to knowledge of science and international consensus, to resolve the questions as fairly as possible.

Key words: bioethics, biolaw, health, Brazil, judicialization.

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INTRODUÇÃO

O surgimento da Bioética pode ser explicado por fatores históricos, científicos e sociais. Nos últimos 50 anos, o progresso espetacular da medicina abriu possibilidades, até então, imprevistas para a investigação científica e trouxe melhoras irrefutáveis na saúde da população mundial e passou a apresentar dilemas inesperados em termos éticos, morais e legais (1).

Cada avanço da Biologia e das Ciências da saúde como trasplantes de órgãos, as técnicas de reprodução assistida enfrenta obstáculos sociais e psicológicos, além de levantar questões religiosas, éticas e jurídicas. O mesmo ocorreu na investigação sobre embriões humanos, um tema muito sensível, pois se trata das origens da vida e envolve conceitos morais, assim como interesses científicos e financeiros (1).

Nesse passo, se verifica que a genética capacitou a humanidade para intervir em sua própria natureza biológica – uma perspectiva inquietante. Essas descobertas não se encontram isoladas ou limitadas. Estamos presenciando uma genuína revolução biológica. De outra parte, nos encontramos com uma quantidade extraordinária de atores com uma gama enorme de interesses, potencialmente geradores de conflitos que buscam resolvê-los através da justiça, sendo que sua escalada leva a chamada judicialização da saúde – uma “enfermidade” do Sistema Sanitário.

O direito à saúde é inquestionável e devemos fazer todo o necessário para preservá-lo. Por isso, em defesa de um Sistema de Saúde solidário e sustentável objetivamos questionar, nesse artigo, certas práticas: médicas, de gestão sanitária, de políticas públicas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, que lhe põe em risco e apresentamos algumas sugestões para a redução da judicialização da saúde no Brasil.

METODOLOGIA

Este trabalho é uma revisão crítica bibliográfica. Foram utilizados livros e artígos jurídicos e médicos. Dessa investigação surgiram dois eixos temáticos: os dilemas da Bioética e da judicialização da saúde no Brasil.  Construímos uma síntese pessoal a partir das abordagens teóricas (dogmáticas) e sociológicas (pesquisa sobre decisões judiciais em matéria de assistência famacêutica), com o propósito de delinear o papel do juiz brasileiro na concretização do direito à saude e o fortalecimento da cultura de direitos humanos.

A BIOÉTICA E SEUS DESAFIOS

Em apenas algumas décadas, os cientistas decodificarm a base química do código genético e lançaram as bases para a Biologia molecular e a Engenharia genética. Atualmente, a humanidade é capaz de alterar a informação genética para fins práticos e, inclusive, intervir em sua própria natureza biológica, como espécie – certamente o aspecto mais perturbador em termos de Bioética.

A Bioética deve reconhecer os benefícios dos avanços científicos, enquanto se mantém constantemente alerta para os riscos e perigos que eles apresentam. Embora possa levar a novas e promissoras formas de erradicar enfermidades que há muito tempo afetam o homem; esse progresso também levanta temores que se justificam sobre os efeitos indesejáveis e o uso indevido, como a manipulação genética e suas aplicações, a volta das doutrinas eugenéticas (que agora possuem uma gama de ferramentas sofisticadas a sua disposição) ou experiências com genes em populações vulneráveis. (1).

Na atualidade, a comunidade científica demonstra perplexidade e rejeição contra a manipulação de células germinais, que foi realizada pela Equipe dos pesquisadores Liang, P. et al., do laboratório de Junjiu Huang, na China, apesar da moratória para as tentativas de edição genética de embriões humanos, pela Sociedade Internacional de Pesquisa de Células-Mãe (ISSCR) (2). A publicação dos resultados dessa experiência, na revista Protein & Cell, no dia 18 de abril de 2015, iniciou um debate ético entre os cientistas de todo o mundo (3). Os defensores da modificação genética argumentam que o método poderia levar a eliminação de enfermidades como a Beta Talessemía, a Síndrome de Down, a Doença de Parkinson e outras, mesmo antes que nasça a pessoa (3). Os críticos comentam que destruir uma enfermidade antes de que a vida possa se desenvolver, poderá trazer inesperadas consequências genéticas que poderão ser inclusive piores que o presente. Destacam, também, que a técnica carece de segurança e é questionável do ponto de vista ético (4-5).

Vale recordar que, o surgimento da Bioética coincidiu com o clamor generalizado levantado pelos horrores da Segunda Guerra Mundial, reação que culminou com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. O objetivo primordial da Bioética se baseia no princípio humanista de afirmar a primazia do ser humano e defender a dignidade e a libertade inerentes ao mero fato de pertencer a espécie, diante de um contexto mutante e em constante evolução das ciências da vida (1).

A Bioética é baluarte tanto em termos de metas quanto em sua natureza multidisciplinar e interdisciplinar. A fim de prover soluções adequadas aos novos desafios científicos, para os que a ética tradicional foi revelado insuficiente, se busca encontrar formas de que as Ciências naturais e sociais se comuniquem entre si, cada qual com suas metodologias e pontos de vista específicos, e unir diferentes campos de conhecimento, desde a medicina, a filosofia e a biologia até chegar a  sociologia, a antropologia  e ao direito (1).

A Bioética deflagrou uma consciência global que está auxiliando a transformar os ideais de justiça mundial na realidade, através das iniciativas dos Comitês de Ética nacionais e dos Comitês de Bioética hospitalares, ademais do ensino e da investigação. Também se deve notar que, quase sem exceção, as escolas médicas passaram a incluir a disciplina em seus programas de ensino, demonstrando seu papel essencial na prática médica (6). Com efeito, os códigos, as normas e os protocolos relativos a  Bioética foram adotados em diversos lugares, e a Unesco os considerou essenciais para criar um foro de reflexões e debates – o Comitê Internacional de Bioética (7).

DILEMAS DOS SISTEMAS DE SAÚDE E AS VIAS DA JUDICIALIZAÇÃO

A experiência internacional nos mostra que existem dois grandes modelos de Sistemas de saúde: os Sistemas Públicos universais – Suécia, Dinamarca, Reino Unido, Canadá e outros países – nos que a saúde é, na realidade, um direito dos cidadãos e os Sistemas segmentados em que uma parte significativa dos serviços se vende por seguros privados de saúde – Estados Unidos, Brasil, Argentina e outros (8).

É notório que os Sistemas Públicos universais, geralmente, prestam serviços mais efetivos, mais eficientes e mais equitativos. Nos países desenvolvidos, com exceção dos Estados Unidos, os Sistemas de saúde são verdadeiramente universais. Lá não existem seguros privados competindo com os serviços que oferta o Estado (8).

Quando isso ocorre, como no Brasil, o Sistema de saúde tende a estar insuficientemente financiado porque os pobres, a grande maioria dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), tem baixa capacidade de articular seus interesses e de vocalizar-los  nos grandes foros de decisão política. Por outro lado, é necessário ter claro que todos os Sistemas Públicos de saúde do mundo, inclusive os dos países desenvolvidos, apresentam filas para algum atendimento ao público em que há desequilíbrio entre a oferta e a demanda (8).

Podemos afirmar que em matéria de saúde existem conflitos difíceis de serem resolvidos tendo em vista a quantidade de atores que intervêm, muito deles com interesses diferentes e, em alguns casos, contrapostos. A medicina se tornou muito complexa pelo que as possibilidades de cometer erros são cada vez maiores. Por outra parte, com  desenvolvimento tecnológico é possivel viver mais anos e com uma boa qualidade de vida, mas tem aumentado os custos dos serviços na saúde. Somamos a esses fatores, a existência de pacientes mais informados pelo auge dos meios de comunicação e informação, além do surgimento dos “grupos de pacientes” e os conflitos de interesses entre os profissionais da saúde e organizações; e a variedade da prática médica, as novas tendências dos Direito de danos de considerar o «paciente» como um «consumidor» e o reconhecimento da saûde como um Direito humano fundamental; tudo isso, também, tem contribuído na maior ou menor medida na judicialização no ámbito sanitário (9).

A medicina trabalha conforme as evidências científicas e os consensos para que os avanços da ciência e da tecnologia cheguem a maior quantidade de pessoas. Seus altíssimos custos obrigam a um uso adequado e estratégico dos recursos para poder financiá-la. O fator importante e a tendência moderna de incorporar a Teoria dos Direitos do consumidor ao Direito à saúde. È uma tendência que vem da mão do neoliberalismo que teve seu máximo alcance na América Latina na década de 90’(9). O consumidor, muito bem informado, exige e escolhe, é ele o protagonista na relação de consumo. A incorporação desta Teoria obedece a necessidade de lhe ofertar maior proteção jurídica ao paciente por considerá-lo o elo mais frágil da corrente. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 1 de cada 300 pacientes sofrem efeitos adversos, patologias e mortes, produto do Sistema de saúde, seus atendimentos e prestações, então se pergunta: Como não judicializar? Como evitar os pleitos?(10)

É preciso garantir a saúde considerando o direito individual mas sem que se atropele o coletivo. Donde a igualdade e a equidade de um Sistema de saúde deva ser abarcativo para todos. A vida, a libertade e a saúde são bens que necessitam tutela imediata. Por isso, frente a invoçações de possíveis vulnerações os tribunais tendem a ofertar proteção de maneira urgente. Estamos vendo, na atualidade, um aumento exponencial dos litígios que envolvem questões de saúde.

A judicialização passou a ser o primeiro desafio que hoje devem suportar os Sistemas de saúde. Os conflitos sanitários originários dos eventos adversos, erros médicos ou falta de prestações por parte dos financiadores, terminam sendo resolvidos pelos juízes quando na realidade deveríam ser resolvidos dentro do âmbito sanitário (11).

O avanço tecnológico e científico originou situações novas que contribuirão para o aumento das reclamações por parte da comunidade: os diagnósticos genéticos, as fertilizações “in vitro”, o tratamento com células-tronco, os novos tratamentos para combater a obesidade como a cirurgía bariátrica e a incorporação do suporte vital, etc.

Outro dos desafios se constitui no envelhecimiento da população e as novas enfermidades crônicas. Na atualidade é possível viver mais anos, com enfermidades que até não faz muito tempo eram mortais, e com uma muito boa qualidade de vida. Tudo isso, graças a outro desafio: as novas tecnologias. Portanto,  o surgimento de novos medicamentos e tratamentos que alargaram a vida e melhoraram sua quaalidade, mas a um custo muito elevado. O desafio é tornar-los acessíveis a toda a população e ao menor custo possível.

Quando nos referimos ao tema das vias da judicialização podemos fazer alusão as três formas possíveis:

 

a. Ações judiciais; Casos como de medicamentos e prestações de serviços de saúde de alto custo.

b. Reclamações por responsabilidade profissional médica; Casos de erros médicos por negligência, imperícia, má-conduta, etc..

c. Conflitos éticos, que terminam se resolvendo, muitas vezes, na Justiça. Casos como o aborto não punível, nos que apesar de contar com normas claras ao respeito, o temor a possíveis reclamações provoca que se judicializem.

O uso do mandado judicial também remete a uma discursão mais abarcadora da origem das ações e da diversidade de interesses em jogo que, a grande maioria das vezes, sobrepassam a situação individual que ali se apresenta. Assim, a justiça foi a via preferencial utilizada por o movimento dos portadores do virus HIV/AIDS no Brasil, na década de oitenta, havendo sido um canal importante para a garantía de medicamentos e exames para o tratamento e controle da enfermidade nos programas conduzidos nacionalmente pelo Poder Executivo. Entretanto, temos que considerar o marketing e as pressões da indústria farmacêutica sobre os médicos, as ONGs, as instituições e as pessoas portadoras de HIV/ AIDS para a incorporação de novos medicamentos e exames, na origem de muitos desses processos, independentemente das questões relacionadas ao uso racional de procedimentos médicos e dos possíveis danos associados a indicação inapropiada e ao mal uso. Essa mesma situação se aplica nos mandados da atualidade em outras condições como neoplasias e enfermidades raras com tratamentos experimentais e/ou de alto custo (12).

O fato é que em um contexto de restrições e de baixa capacidade do Estado brasileiro em responder aos problemas de saúde, teve destaque a ação do Poder Judiciário e do Ministério Público. Assim, as ações judiciais se movem muitas vezes contra os gestores estaduais e municipais, dos serviços públicos de saúde, particularmente nas áreas em que a política nacional expressa maiores lacunas e contradições. Exemplo disso são as exigências de compra de determinados medicamentos em situações duvidosas ou contraditórias com as políticas em vigor, como para pessoas atendidas no Setor Privado; quando não existe segurança sobre a eficácia da droga; ou no caso de medicamentos essenciais na falta na rede básica de serviços, eventualmente disponíveis como genéricos em farmácias comuns ou nas conveniadas ao Programa Farmácia Popular (12).

A própria atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público na Brasil acaba por levar a questionamentos de outra natureza. Que critérios se tem utilizado por essas Instituções nas suas orientações? E, o que se percebe é que a ação do Poder Judiciário e do Ministério Público está fragmentada entre diversas autoridades que, frente a carência de parâmetros objetivos do Poder Executivo e, inclusive, da lei, muitas vezes se definem critérios próprios para decidir e julgar. Se revelam, desta forma, a fragilidade e as deficiências na relação entre os poderes do Estado no que se refere a concretização do Direito à saúde (12).

De fato, existem duas correntes de pensamento: uma que vê na "judicialização" um importante passo rumo ao aperfeiçõamento do exercício da cidadania, ou seja, de forma positiva; e outra que sustenta o oposto. As consequências negativas da judicialização em relação as ações judiciais, gera iniquidade e ameaça contra a saúde do paciente, já que muitas vezes se solicitam por esta via de tratamentos sem suficiente evidência científica quanto a sua segurança e eficácia (13).

Nesse quadrante é fundamental desenvolver a gestão de riscos na saúde. Com efeito, o programa de gestão de riscos busca a abordagem anticipada de cada incidente ou evento adverso. (13). Hoje se considera que os fatores de risco não estam referidos exclusivamente ao ato médico, pelo que a análise dos erros na saúde devem se focar mais em fatores organizacionais. A própria Organização Mundial da Saúde aconselha uma abordagem sistêmica. (10).

               A mediação, a negociação e a busca de metas compartilhadas se tem convertido em ferramentas imprescindíveis que requerem pessoal bem treinado e apto para a implementação de unidades, dentro de cada estabelecimento, capacitadas na resolução dos conflitos na saúde. 

 

JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL

O Direito a saúde está garantido pela Constituição Federal de 1988. O art. 6º descreve a saúde expresamente como um Direito social e o art. 196 da Carta Magna, por sua vez, estabelece que este direito se garantirá mediante a elaboração de políticas sociais e econômicas por parte do Estado (14). As políticas públicas, a sua vez, se destinam a racionalizar a prestação coletiva do Estado, com base nas principais necessidades da saúde da população, de forma a promover a tão aclamada Justiça distributiva.

Como o Poder Judicial atua sob a perspectiva da Justiça comutativa ou, como denomina Amaral (2001), sob o âmbito da micro-justiça do caso concreto, o desafio de incorporar as políticas públicas de saúde nas suas decisões se revela indispensável para o avanço da jurisprudência, no sentido de compatibilizar a Justicia comutativa, dentro de cada processo, com a Justiça distributiva, representada pela decisão coletiva formulada e formalizada por meio dos diversos atos normativos que compõem a política de assistência à saúde, emanadas dos Poderes Legislativo e Executivo (15).

Estudos emprendidos por Messeder et al. (2005), Marques e Dallari, (2007) Vieira e Zucchi (2007) apontam para um grande e exponencial número de ações judiciais individuais que demandam essas prestações do Estado (16-18). Campilongo (2002), baseado na Teoria do Sistema elaborada pelo filósofo alemão Niklas Luhmann sustenta que ocorre a "judicialização" da política quando o Poder Judicial, órgão central do Sistema jurídico, passa a atuar além dos limites estruturais deste sistema, operando com ferramentas próprias do Sistema político, sem ter capacidade para tanto, e exercendo assim a função que só o Sistema político pode exercer na sociedade, qual seja: a tomada de decisões coletivamente vinculantes. O seja, é a superposição das decisões judiciais ao marco normativo elaborado pelo Sistema político (19).

Os estudos emprendidos até o momento no Brasil por Messeder et al (2005); Marques e Dallari (2007); Vieira e Zucchi (2007), que analisam as decisões judiciais em matéria de assistência farmacêutica contra o Estado, publicados nas principais revistas nacionais de Saúde Pública, versam sobre investigações regionais, que não permitem generalizações e afirmações em nível nacional (16-18). Tampouco temos dados precisos sobre a representação da população nestes processos, principalmente no que toca ao apoio de associações, fato que se vem imputando como uma possível manipulação da demanda, frente ao financiamento de algumas dessas associações por indústrias farmacêuticas interessadas na comercialização deste ou de aquele fármaco (12).

Vieira e Zucchi (2007) demonstram que entre as ações analisadas contra o Municipio de São Paulo os 2% versam sobre medicamentos constantes nos serviços ofertados pelo SUS – Sistema Único de Saúde (18). Marques e Dallari (2007) indicam que entre os processos investigados os 9,6% tratavam de medicamentos sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (17). Tampouco temos informações científicas oriundas destes processos, capazes de promover um sério debate sobre a eficácia terapêutica dos medicamentos não padronizados concedidos pelo Poder Judicial, ou seja, sim estes possuem equivalentes terapêuticos oferecidos pelos serviços públicos. Entre os processos analisados, em 2005 e 2007, no Estado de Rio de Janeiro, a maioria provinha de serviços do SUS (16,18).

O impacto financeiro dessas ações frente a política pública de saúde também merece dados precisos e nacionais, assim como informações sobre outros bens e serviços de sáude demandados em juízo, como leitos de Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), órteses, próteses, entre outros (18). Deve-se questionar também o verdadeiro impacto do total do financiamento da saúde e das ações planejadas e executadas em matéria de assistência farmacêutica e terapêutica.

Assim, se pode evidenciar, baseado em dados significativos, os benefícios e prejuízos da atuação judicial na garantia do Dereito à saúde e sua relação com a política de saúde estabelecida. E, garantir o Direito à saúde de forma efetivamente integral e universal, com a equidade necessária e com o devido equilíbrio entre os Sistemas jurídico e político do Estado, assim como com a necessária participação da sociedade neste debate (11). O fundamental é a conjugação das necessidades individuais postas nos processos e das necessidades coletivas, formalizadas mediante políticas públicas e indispensáveis a garantia do Direito à saúde como Dereito social.

Atento ao problema da judicialização da saúde, no Brasil, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituiu, em 2010, o Foro Nacional do Judiciário para a Saúde. Como providência inicial criou-se um Sistema electrônico de acompanhamento das ações judiciais que envolvem a assistência à saúde. Em junho de 2012, o Foro foi reestruturado, com uma nova composição do Comitê Executivo, agora formado por julgadores, representantes do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e, mais recentemente, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

Desde então, foram definidas muitas providências pelo CNJ: investigação diagnóstica da judicialização; incorporação, na lista de cobertura da ANS, das decisões sumuladas ou de repercusão geral, para que os contratos das operadoras de planos de saúde não contemplem cláusulas nulas de pleno direito, evitando-se demandas judiciais futuras e abastecimento aos julgadores de informações científicas de credibilidade na área de tecnologia da saúde, por meio da incorporação, no sitio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), das Notas Técnicas da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Disponíveis, também, no sitio do CNJ, se encontram os nomes dos conciliadores representantes das operadoras de planos de saúde, para estimular a conciliação.

O CNJ estabeleceu propostas de homologação e encaminhamento para sua execução judicial imediata dos acordos firmados no âmbito dos PROCONs e não cumpridos, além da obrigatoriedade de abastecimento pelas operadoras da razão da negação da prestação, na linguagem acessível. Foram elaborados memoriais sobre as competências no Sistema de Saúde e a estruturação e atividades dos Comitês Estaduais do Foro de Saúde brasileiro. Ocorreram reuniões com representantes de todos os Comitês Estaduais, com representantes das operadoras de planes de saúde, com dirigentes da ANVISA e representantes dos PROCONs. O CNJ apresentou sugestões ao Ministério da Saúde brasileiro para a limitação da prática de sobrejornada e da tercerização nos serviços de saúde. Ademais dos projetos para o combate do encarecimento artificial dos serviços de saúde e de Curso de Direito Sanitário, para qualificação dos julgadores.

Com efeito, verifica-se que a desarticulação entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no Brasil, revela a importância do aperfeiçoamento dos mecanismos de "pesos e contrapesos" na saúde e dos canais de diálogo entre as instituições públicas que operam na garantia dos princípios do Sistema Público de Saúde e, também, do Sistema Privado. A despeito de ter havido avanços, permanece como grande desafío do Estado brasileiro, entendido de forma amplia, garantir a democracia e exercer o papel mediador de interesses e demandas, estabelecendo prioridades e atuando de forma equilibrada, dirigindo ao bem estar coletivo e não simplemente atendendo aos interesses de grupos específicos, para isso necessitam vencer inúmeros dilemas (12).

SUGESTÕES

Apresentaremos, a seguir, algunas sugestões para reduzir a judicialização da saúde no Brasil:

  1. Trabalhar desde a prevenção, tanto dos erros médicos que podem levar a juízos de mala praxis, como nos conflitos que conduzem a judicialização por outras diferentes causas (falta de prestação, atenção com os prestadores desconhecidos ao financiador, etc.);
  2. A implementação dos programas de gestão de riscos médico-legais como as unidades de gestão de conflitos que propiciem a possibilidade de trabalhar com programas de qualidade já que tendem a buscar a segurança do paciente;
  3. È preciso que os gestores públicos avancem com relação a elaboração e implementação das políticas de saúde no Brasil;
  4. A organização administrativa da prestação dos serviços de saúde, que, muitas vezes, deixam os cidadãos sem a correta assistência médica e farmacêutica;
  5. Ampliar um canal administrativo capaz de ouvir e processar as diferentes demandas da sociedade neste campo;
  6. È preciso que o Poder Judicial avance com relação a incorporação da dimensão política que compõe o Direito à saúde;
  7. O Poder Judicial deve buscar a especialização com a criação de varas especializadas na saúde e regulação, pretendendo, sobre todo, a formação de parâmetros objetivos de decisões judiciais atentas as especificidades do setor, num conceito multidisciplinar;
  8. Criação de Câmaras técnicas e/ou audiências públicas;
  9. Uma maior regulação que possa promover a integração entre o Sistema Público e o Privado deve ir mais além da questão do ressarcimento.
  10. Deve avançar na estruturação de redes de saúde, com autonomia e governança própria, donde se possam integrar aqueles que possuem ou não cobertura de Saúde Suplementar.
  11. A inovação, a busca pela racionalidade e pela complementariedade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Dereito à saúde é um Dereito fundamental do cidadão e um dever do Estado brasileiro, embora esteja garantido de forma integral e universal pela Constituição Federal brasileira de 1988 (art. 196), não está garantido plenamente na prática (14). O Sistema Único de Saúde (SUS), apesar de configurar uma política consistente e sólida, com inegáveis avanços, não consigue ofertar cuidados integrais e universais de saúde a todos os cidadãos brasileiros. E, a sociedade civil, por meio da atuação combativa de órgãos como o Ministério Público e a Defensoria Pública buscam subsídios para pleitear este direito através do Poder Judicial. A inserção destes atores na reivindicação da saúde como um direito está contribuindo, notoriamente, ao que se convencionou chamar de "judicialização da saúde" no Brasil, com todos seus aspectos positivos e negativos.

A atuação judicial ganha espaço quando não existem políticas públicas eficientes e eficazes ou quando elas são insuficientes para atender minimamente, tanto na área da Saúde Pública como na área da Saúde Complementar (seguros de saúde privados). O Direito à saúde não se pode entender como o direito de estar sempre saudável, senão como o direito a um Sistema de proteção a saúde que dá oportunidades iguais para que as pessoas alcancem os níveis mais altos de saúde possíveis.

A atuação do Poder Judicial revela o controle judicial de eventuais violações tanto por parte do Estado na atenção à saúde e, inclusive, a participação nas políticas públicas, especificamente dos seguros de saúdes privados, no controle judicial de abusos de cláusulas contratuais leoninas. Por outro lado, o excesso de ordens judiciais pode desestabilizar a universalidade da saúde, um dos fundamentos do Sistema de Saúde Pública, como não tornar viável o Sistema de Saúde Complementar no Brasil.

A solução para o conflito de interesses envolvendo o Direito individual à saúde e o Direito coletivo de viabilidade do Sistema de Saúde demanda, dentre outros aspectos, a especialização da magistratura na área de saúde, numa concepção multidisciplinar na que o magistrado possa subsidiar-se de toda uma estrutura técnica, conjugando esforços com o auxílio de peritos especialistas em medicina, em cálculos atuariales, com o escopo de garantir maior segurança jurídica a suas decisões.

 Consideramos que somente com uma maior eficiência na formulação de políticas públicas, com proposição de critérios e parâmetros de monitoramento, baseados em evidências científicas, se fará efetiva a garantia do uso e acesso racional das tecnologias e aos medicamentos, sem necessidade da intervenção do Judiciário brasileiro evitando-se, igualmente, que o acesso aos serviços de saúde se transforme em um fator a mais de iniquidade. Neste sentido, vale recordar a imperiosa necessidade do aumento de um número maior de associações no sentido do desenvolvimento das Relações de Cooperação Técnica Internacional, na área de Engenharia Genética e Biotecnologia.

Com efeito, o Direito a saúde no Brasil está em construção permanente e provavelmente passará, com a importante contribuição do planejamento e da gestão sistêmicos, de um período de intervenção judicial desmedida para um período de intervenção judicial com mais critério, assim como por um período de maior efetividade por parte do Poder Público, fatores que, por certo, contribuirão para reduzir as demandas judiciais e reafirmar as políticas públicas existentes.

 

REFERENCIAS

 

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15- AMARAL, Gustavo. Direitos, escassez & escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.      

16- MESSEDER, A. M.; OSÓRIO-DE-CASTRO, C. G. S; LUÍZA, V. L. Mandados judiciais como ferramenta para a garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 525-534, 2005.      

17- MARQUES, S. B; DALLARI, S. G. A garantia do direito à assistência farmacêutica no Estado de São Paulo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 41, n. 2, p. 101-107, 2007.     

18- VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paola. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista Saúde Pública [online], v. 41, n. 2, p. 214-222, 2007. [cited 2008-06-19].      

19- CAMPILONGO C. F. Política, sistema jurídico e decisão judicial. São Paulo: Max Limonad, 2002.    

 



* Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especializações em: Teoria da Constituição; Direito do Trabalho; e Direito Civil-Constitucional pelo UNICEUB (Centro Universitário de Brasília). Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).

* Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Brasilia (UNB). Especialização em: Odontologia da Saúde Pública pela Universidade Federal de Brasilia (UNB). Professora de Odontologia de Saúde Coletiva I, do UDF  (Centro Universitário do Distrito Federal).

* Pós-Doutora pela School of Dentistry pela University of Michigan. Pós-doutora pela Faculdade de Odontologia da USP. Pós-Doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em Odontologia (Odontopediatria) pela Faculdade de Bauru/USP. Professora de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências da Saúde – UnB (Universidade de Brasília). Professora de Odontopediatria do Curso de Odontologia do UNIEURO (Centro Universitário Euroamericano).

* Pós-Doutora em Bioética e Ética na Investigacão em Seres Humanos pela Facultad Latinoamérica de Ciencias Sociales (FLACSO-Argentina) em colaboração com o Colégio Albert Einstein de Medicina, EE.UU. e Pós-Doutora em Bioética pela Universidad Complutense em Madri. Professora e investigadora pela UnB, Coordenadora do Laboratório de Bioética e Ética da Investigação. Diretora dos Programas de Pos-graduação em Enfermagem e Ciências da Saúde da UNB.