Crime sem vítima? - Juíza Gláucia Falsarella Foley

Artigo publicado na edição do dia 7/3/2017 do jornal Correio Braziliense e no site do TJDFT, página Imprensa - Artigos
por ACS — publicado 2017-03-07T09:55:00-03:00

Glaúcia Falsarella Foley*

A criminalização do consumo pessoal de drogas é inconstitucional porque, ao punir conduta de natureza estritamente individual e inofensiva a terceiros, o art. 28 da Lei 11.343/2006 afronta os princípios da inviolabilidade da intimidade e da vida privada, da lesividade e da garantia à liberdade individual consagrados na Constituição Federal. A adequada interpretação do art. 28 — adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar — demanda a compreensão de qual o bem jurídico que a norma pretende proteger.

Nesse sentido, a prática de quaisquer das condutas ali previstas será adequada à norma penal se, e somente se, a motivação do agente for o consumo próprio da substância entorpecente. Caso a conduta tenha qualquer traço de alteridade, sugerindo que a ação do sujeito transcendeu a esfera pessoal e envolveu terceiros, o agente responderá por crime mais grave. E, nessa hipótese, caberá ao Ministério Público o oferecimento da denúncia por tráfico de drogas e não por uso próprio.

Muito embora a Lei 11.343 anuncie que seu objetivo é a proteção da saúde pública, o bem jurídico tutelado pelo art. 28 é exclusivamente a saúde individual do usuário. É o que diz literalmente a norma. A justificativa ideologicamente construída para a criminalização da conduta é a de que o consumo pessoal de entorpecentes enseja expansibilidade de perigo abstrato à saúde pública. A partir dessa premissa de lógica duvidosa, consolidou-se uma infundada ilação da existência de nexo de causalidade entre um comportamento que se limita à esfera da subjetividade e a ofensa ao interesse público.

Em outras palavras, se o tipo penal em análise só existe se a ação for voltada para o consumo pessoal, o âmbito da lesão é estritamente individual, não podendo a sua interpretação ser alargada em detrimento das garantias individuais. A alegada má influência exercida por um usuário a seus pares deve se limitar aos debates no âmbito da saúde pública, jamais podendo servir de fundamentação para a intervenção penal, que não opera com meras suposições.

Criminalizar conduta no presente com vistas exclusivamente a prevenir danos incertos, eventuais e futuros não é compatível com o direito penal. Sob a ótica de uma política criminal bastante restrita, cunhou-se a máxima de que a penalização do consumo individual é essencial para o combate ao tráfico de drogas. A mera opinião (a doxa platônica), sem qualquer lastro em estudos multidisciplinares sobre o fenômeno do uso de drogas pela humanidade, transformou-se em verdade científica e o proibicionismo passou a ser hegemônico.

A adoção de tal premissa, contudo, traz graves consequências para o direito penal, na medida em que implica admitir a responsabilidade de natureza objetiva, além de reproduzir a lógica – felizmente estranha ao nosso ordenamento jurídico — de punir a vítima (o usuário) para alcançar o criminoso (o traficante). É evidente a violação aos direitos fundamentais da pessoa — autonomia e liberdade — quando há intervenção estatal nas chamadas zonas livres do direito penal (Arthur Kaufmann). Não pode haver relevância penal nesse sagrado espaço da subjetividade e da liberdade.

A política criminal não deve ser manejada como instrumento de educação moral, tampouco servir de ferramenta para ditar, fiscalizar e punir condutas consideradas avessas aos costumes temporariamente hegemônicos. O direito penal só deve ser acionado quando o resultado dessa ofensa afeta negativamente o interesse de terceiros. Daí por que não se pune a prostituição, a autolesão, a tentativa de suicídio, os danos a bens patrimoniais próprios, a ofensa moral a si mesmo, dentre outros.

Estaríamos dispostos a correr o risco de aceitar a criminalização de um cidadão baseados em julgamento moral de que suas opções individuais acarretam danos prováveis para a sociedade? Apesar de legítima a preocupação com os efeitos do consumo de entorpecentes, uma sociedade democrática e generosa deve respeitar, acolher e, quando  for o caso, cuidar dos cidadãos que — por inúmeras razões, todas de natureza estritamente pessoal — deles façam uso. Adotar uma ideologia proibicionista, bélica, punitiva, criminalizando e estigmatizando os usuários parece ir na contramão da sociedade livre e fraterna que todos nós desejamos construir.


*juíza de Direito e coordenadora do Programa Justiça Comunitária do TJDFT e membro da Associação dos Juízes para a Democracia