Adoção de irmãos: desafios e possibilidades

Walter Gomes de Sousa*
por Walter Gomes de Sousa — publicado 2018-07-17T11:35:00-03:00

         A maioria das famílias habilitadas para adoção no Brasil deseja adotar crianças sem irmãos, saudáveis e com idade entre 0 e 2 anos: esse é o chamado perfil clássico. Em que pese a prevalência dessa preferência em nível nacional, gradativas mudanças nesse cenário vêm sendo registradas por diversas varas da infância e juventude do país em razão do substancial aumento de acolhimentos adotivos envolvendo crianças com idade avançada, com graves problemas de saúde e em especial grupos de irmãos. Isso se deve ao fato de a Justiça Infantojuvenil estar habilitando novas famílias que têm optado por perfis mais flexíveis e amplos, favorecendo assim a concretização de adoções diferenciadas em prazos mais encurtados e em números crescentes. 

O instituto da adoção representa, por todas as controvérsias que o cercam, um grande desafio para quem deseja exercer de forma incondicional e plena as prerrogativas parentais de pai ou mãe em relação a uma criança ou a um jovem com histórico de abandono e de privação do convívio familiar. Criar laços verdadeiramente parentais e filiais com quem não se tem elos biológicos é a marca diferencial da adoção. Se adotar uma criança já é uma experiência cercada de compromissos e responsabilidades, imagine aquela família postulante que se predispõe a adotar um grupo de irmãos. Vou além: imagine uma família que se mostra aberta e motivada para adotar um grupo de seis irmãos tendo já em seu histórico a concretização de outras dezesseis adoções. Não é coisa de novela, nem de filme. É fato, foi registrado no Distrito Federal e merece ser retratado com reverência e muito respeito.           

No mês de maio de 2018, a equipe psicossocial da Vara da Infância e da Juventude do DF (VIJ-DF) concluiu o estágio de convivência envolvendo a referida família com um grupo de seis irmãos.  A adoção de crianças de idades mais avançadas tem-se tornado uma ocorrência comum no Distrito Federal, entretanto uma adoção tardia envolvendo um grupo numeroso de irmãos é um fato que merece registro especial. E não apenas isso. Saliente-se que a família que acabou de acolher em adoção o mencionado grupo de seis irmãos já carrega o histórico de outras dezesseis adoções realizadas e todas cercadas de total sucesso.         

Um aspecto particularmente interessante a despontar nessa última experiência de adoção é que os filhos adotivos mais velhos estimularam os próprios pais a procurarem a Justiça Infantojuvenil para novas adoções, e o desafio não só foi aceito como se transformou em realidade. No caso em apreço o tempo entre o ajuizamento da ação de habilitação e o acolhimento definitivo dos seis irmãos foi de sete meses, e isso denota a tramitação prioritária do processo em razão do perfil desejado pela família adotante. Destaque-se que, no referido grupo de irmãos, o mais velho tem 14 anos e o caçula 5 anos.

Esse novo perfil de adoção que começa a se desenhar em diversas comarcas do país sinaliza que aos poucos a sociedade tem procurado rever o perfil clássico da criança desejada e se inclinado a conhecer melhor quem são os disponibilizados no Cadastro Nacional de Adoção. Isso denota que o trabalho de conscientização e sensibilização realizado pelas varas da infância e juventude de todo o país em estreita parceria com os grupos de apoio à adoção tem resultado na gradativa substituição, no imaginário das famílias candidatas, da criança ideal pela criança real. O sonhado está cedendo lugar ao possível e ao real. Os desejos estão se aproximando da realidade, e os encontros entre adotantes e adotandos têm sido viabilizados pelo surgimento de uma nova percepção e de um novo olhar sobre adoção tardia e de grupos de irmãos. Convém destacar que isso não significa que os anseios e preferências legitimamente apresentados pelas famílias candidatas não sejam respeitados e validados pelo sistema de justiça. Entretanto não se pode deixar de enfatizar que tão importante quanto conceder legitimidade ao pleito dos postulantes é também garantir maior espaço de visibilidade aos disponibilizados para adoção, enfatizando o direito deles de terem uma família por terem sido abandonados e apresentarem uma história de fragilidade emocional e privação de afetos e de convivência familiar.          

 A adoção de um grupo tão numeroso de irmãos com idades variadas é o resultado de uma escolha cercada de convicções, desejos e responsabilidade para com o efetivo, afetivo e zeloso exercício das funções parentais. Urge salientar que as adoções bem-sucedidas e garantidoras do superior bem-estar do adotando resultam de planejamento estratégico de vida, do compromisso com a preparação emocional e cognitiva, do apaixonado envolvimento da família extensa (avós, tios, sobrinhos), da predisposição para investir todos os esforços na construção de vínculos de afeto e de pertencimento familiar e, o mais importante, de garantir à adoção pleiteada prioridade absoluta na agenda de vida da família. 

 Neste primeiro semestre de 2018, a equipe psicossocial da VIJ-DF logrou êxito em promover a adoção de 59 crianças e adolescentes, sendo que nesse total estão incluídos 10 grupos de irmãos, assim configurados:

Grupo de 02

06

Grupo de 03

03

Grupo de 06

01

 

No cadastro de disponibilizados da VIJ-DF, existem 23 grupos de irmãos, cujo número varia de 2 a 5 membros, assim configurados:

Grupo de 02

14

Grupo de 03

03

Grupo de 04

04

Grupo de 05

02

 

O artigo 50, § 15, do Estatuto da Criança e o Adolescente (ECA), que foi acrescentado pela Lei 13.509/17, preconiza que “será assegurada prioridade no cadastro a pessoas interessadas em adotar criança ou adolescente com deficiência, com doença crônica ou com necessidades específicas de saúde, além de grupo de irmãos”. Por outro lado, o ECA, em seu artigo 28, § 4º, preconiza que “os grupos de irmãos serão colocados sob adoção, tutela ou guarda da mesma família substituta, ressalvada a comprovada existência de risco de abuso ou outra situação que justifique plenamente a excepcionalidade de solução diversa, procurando-se, em qualquer caso, evitar o rompimento definitivo dos vínculos fraternais”.

A legislação prevê que os irmãos cadastrados para adoção sejam preferencialmente acolhidos em conjunto, e a eventual separação deverá ter uma justificativa fundamentada. A intenção do legislador é garantir a proteção dos laços fraternos, sobretudo devido à ruptura dos vínculos com os pais biológicos, e com isso minorar o sofrimento emocional decorrente do abandono. No caso de irmãos em regime de acolhimento institucional, é natural que se crie entre eles, na maioria dos casos, uma mutualidade protetiva, em especial dos mais velhos em relação aos mais novos. Na hipótese de o magistrado autorizar a separação dos irmãos, a recomendação da Lei é no sentido de se tentar manter, mesmo após a adoção, os laços de fraternidade. Se a separação entre pais e filhos é um processo que impinge elevada dor e sofrimento, igualmente o é a separação entre irmãos que usufruam de afinidade e cumplicidade emocional.

Essa realidade também desperta incômodo e angústia nas equipes psicossociais da Justiça Infantojuvenil, pois, a depender da composição dos grupos de irmãos, é possível se deparar com aqueles de idades mais restritas com elevadas possibilidades de, em caso de autorização judicial para desmembramento, serem adotados rapidamente. Ao passo que para os com idades mais avançadas, sobretudo pré-adolescentes e adolescentes, a possibilidade de adoção já se torna mais remota. O que fazer diante dessa desafiadora realidade? Autorizar ou não a separação dos irmãos, garantindo a uns a possibilidade de passarem a fazer parte de uma família socioafetiva e, de outro turno, impondo aos outros a inevitável e indesejável permanência em ambiente institucional? O ideal que se encontra materializado na previsão legal é o da adoção conjunta, entretanto a realidade do cadastro de habilitados conspira contra tal possibilidade à medida que a maioria das famílias pretendentes opta por crianças sem irmãos e com idades mais restritas. Esse impasse, via de regra, é tratado com muita cautela, sensibilidade e rigor técnico, considerando sempre as peculiaridades de cada caso e o foco no superior bem-estar das crianças.

Em nível nacional, é crescente o cadastramento de grupos de irmãos para adoção. No Distrito Federal, a realidade não é diferente, e os grupos disponibilizados e aptos para adoção neste momento apresentam a seguinte configuração:

Grupos de irmãos

Crianças sem irmãos

59

Grupo de 02

14

Grupo de 03

03

Grupo de 04

04

Grupo de 05

02

Total de crianças em 2018

122

 

Os desafios e as possibilidades da adoção de irmãos estão postos. E qual família estará disposta a responder afirmativamente? Se os desafios são grandes, as possibilidades são ainda maiores. E a melhor forma de entender isso é parar e refletir sobre algumas falas entoadas por alguém que já adotou irmãos e por quem já foi adotado juntamente com seus irmãos. Duas declarações dentre tantas ouvidas me tocaram profundamente e as utilizarei para finalizar este artigo. A primeira foi dita por uma adolescente de 14 anos adotada com outros dois irmãos: “Para mim a adoção é uma experiência sem igual, que só se torna linda quando encontramos uma família que nos transforma no melhor que podemos ser. Hoje somos melhores irmãos e filhos extremamente felizes”. A segunda foi proferida por uma postulante que adotou três irmãos: “Não tive nenhuma dúvida quando os conheci, mas confesso, quando o sentimento deles me tocou, nunca mais fui a mesma e desde então os amo mais a cada dia e não canso de me entregar de forma plena, apaixonada e sem reservas. Para mim adoção é um encontro que não se desfaz”.

 

* Psicólogo judiciário e supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal 

Artigo publicado no site da VIJ-DF e no TJDFT, na página da Imprensa, em 16/07/2018.