Considerações sobre a Teoria dos freios e contrapesos (Checks and Balances System) - Juíza Oriana Piske e Antonio Benites Saracho

Artigo publicado no site do TJDFT, página Imprensa em 21/5/2018
por ACS — publicado 2018-05-21T11:50:00-03:00

Oriana Piske de A. Barbosa *Antonio Benites Saracho ·

A Teoria da Separação dos Poderes conhecida, também, como Sistema de Freios e Contrapesos, foi consagrada pelo pensador francês Charles-Louis de Secondat, Baron de La Brède et de Montesquieu, na sua obra “O Espírito das leis”, com base nas obras de Aristóteles (Política) e de John Locke (Segundo Tratado do Governo Civil), no período da Revolução Francesa. Montesquieu permeando as ideias desses pensadores e, com isso, explica, amplia e sistematiza, com grande percuciência, a divisão dos poderes.

O inglês John Locke (1632-1704) estava entre os filósofos que tentava compatibilizar ciência e filosofia, por valorizar a experiência como fonte de conhecimento. O pensamento empírico de Locke influenciou as bases das democracias liberais a ponto de, no século XVIII, os iluministas franceses terem buscado, em suas obras, as principais ideias que representaram, de forma emblemática, a Revolução Francesa.

A Teoria da Separação dos Poderes de Montesquieu foi inspirada em Locke que, também, influenciou significativamente os pensadores norte-americanos na elaboração da Declaração de sua independência, em 1776. Em todas as questões sociais e políticas Locke via que o fator último é a natureza do homem. Para Locke, os homens nasciam livres e com direitos iguais. Locke sustentava que o estado da sociedade e, consequentemente, o poder político, nascem de um pacto entre os homens. Antes desse acordo os homens viveriam em estado natural, tal como pensava Hobbes, segundo o qual todos os homens teriam o destino de preservar a paz e a humanidade e evitar ferir os direitos dos outros, deveres que Locke considerava próprios do estado natural. O pacto social primordial seria apenas um acordo entre indivíduos reunidos com a finalidade de empregar sua força coletiva na execução das leis naturais renunciando a executá-las pelas mãos de cada um. O objetivo desse pacto seria a preservação da vida, da liberdade e da propriedade. Locke acreditava que os homens, ao se organizarem em sociedade, cediam ao Estado parte de sua igualdade e liberdade, a fim de manter a segurança. Na sociedade política, pelo contrato social, as leis aprovadas por mútuo consentimento de seus membros seriam aplicadas por juízes imparciais e manteriam a harmonia geral entre os homens. O soberano seria, assim, o agente executor da soberania do povo.

No pensamento de Locke, o mesmo homem que confiava o poder ao soberano era capaz de dizer quando se abusa do poder. A renúncia ao poder pessoal somente pode ser para melhor e, por isso, o poder de governo e de legislatura constituída pelos homens no acordo social não poderia ir além do requerido para as finalidades desejadas. Os pleitos deveriam ser resolvidos por juízes neutros e honestos, de acordo com as leis. E, tudo isto, não deveria estar dirigido a outro fim que não fosse o de conseguir a paz, a segurança e o bem do povo. Essas ideias estruturaram a base do moderno princípio da Separação dos poderes, que começou, pois, por transportar uma ideia de moderação e de compromisso. A ideia da divisão de poderes seria para evitar a concentração absoluta do poder nas mãos do soberano, comum no Estado absoluto, que precede as revoluções burguesas, buscando evitar o abuso de poder e garantir a liberdade dos indivíduos. Nesse sentido, Montesquieu pensou a separação de poderes como um mecanismo para evitar esta concentração de poderes e estabelecer uma espécie de controle mútuo.

Montesquieu acreditava que para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas, seria fundamental estabelecer a autonomia e os limites de cada poder. Com isto, cria-se a ideia de que só o poder controla o poder, por isso, o Sistema de freios e contrapesos, onde cada poder é autônomo e deve exercer determinada função, porém, este poder deve ser controlado pelos outros poderes. Verifica-se, ainda, que mediante esse Sistema, um Poder do Estado está apto a conter os abusos do outro de forma que se equilibrem. O contrapeso está no fato que todos os poderes possuem funções distintas, são harmônicos e independentes.

Segundo o pensamento de Montesquieu, nesse sistema, os poderes do Estado seriam divididos em: Legislativo, Executivo e Judiciário. O Poder Legislativo possui a função típica de legislar e fiscalizar; o Executivo, de administrar a coisa pública; já o Judiciário, julgar, aplicando a lei a um caso concreto que lhe é posto, resultante de um conflito de interesses. Aplicar o Sistema de freios e contrapesos significa conter os abusos dos outros poderes para manter certo equilíbrio. Por exemplo, o Judiciário, ao declarar a inconstitucionalidade de uma lei é um freio ao ato Legislativo que poderia conter uma arbitrariedade, ao ponto que o contrapeso é que todos os poderes possuem funções distintas fazendo, assim, com que não haja uma hierarquia entre eles, tornando-os poderes harmônicos e independentes. Para Montesquieu a liberdade estaria em fazer tudo o que as leis permitissem e a liberdade política só se acharia presente nos governos moderados. Por isso, Estados livres, para ele, eram os Estados moderados, onde não se abusasse do poder, muito embora a experiência lhe dissesse que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele, indo até os seus limites. Para que o abuso de poder não ocorra, é necessário que "o poder freie o poder".

Um dos objetivos de Montesquieu era evitar que os governos absolutistas retornassem ao poder. Para isso, em sua obra “O Espírito das leis”, descreve sobre a necessidade de se estabelecer a autonomia e os limites entre os poderes. No seu pensamento, cada Poder teria uma função específica como prioridade, ainda que pudesse exercer, também, funções dos outros poderes dentro de sua própria administração.

O Sistema de Freios e Contrapesos consiste no controle do poder pelo próprio poder, sendo que cada Poder teria autonomia para exercer sua função, mas seria controlado pelos outros poderes. Isso serviria para evitar que houvesse abusos no exercício do poder por qualquer dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário). Desta forma, embora cada poder seja independente e autônomo, deve trabalhar em harmonia com os demais Poderes.

A Teoria da Separação dos Poderes surgiu na época da formação do Estado Liberal baseado na livre iniciativa e na menor interferência do Estado nas liberdades individuais. Essa tripartição clássica dos poderes se dá até hoje, na maioria dos Estados, e está consolidada pelo artigo 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e prevista no artigo 2º da nossa Constituição Federal brasileira, sendo divididas e especificadas as funções de cada poder.

O poder é uma forma de controle social capaz de direcionar a conduta de um determinado grupo de pessoas. Contudo, o exercício do poder tende, a ultrapassar e, até mesmo, abusar dos limites estabelecidos pela lei. Logo, é fundamental a constante alternância dos dirigentes nos poderes Legislativo e Executivo, nos regimes democráticos. A Separação dos Poderes é princípio básico de organização da maioria dos Estados democráticos. O princípio da Separação dos poderes inspirou os modelos constitucionais das liberdades fundamentais do homem, estando presente no Estado liberal, no Estado Social e no Estado Democrático, fazendo parte de todos os modelos do Estado de Direito.

Enfim, o princípio dos poderes harmônicos e independentes acabou por dar origem ao conhecido Sistema de “freios e contrapesos”, pelo qual os atos gerais, praticados exclusivamente pelo Poder Legislativo, consistentes na emissão de regras gerais e abstratas, limita o Poder Executivo, que só pode agir mediantes atos especiais, decorrentes da norma geral. Para impedir o abuso de qualquer dos poderes de seus limites e competências, dá-se a ação do controle da constitucionalidade das leis, da decisão dos conflitos intersubjetivos e da função garantidora dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, pelo Poder Judiciário.

            Desta forma, a separação de poderes e o Checks and Balances System seriam perfeitamente compatíveis com o Estado Democrático de Direito, limitando-se o poder, mas garantindo-se a plena liberdade política dos indivíduos e dos direitos das minorias. Possibilita, de igual forma, a formação do Estado de Direito, na medida em que ele previne o abuso governamental submetendo governantes e governados as regras e aos procedimentos legais, onde ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de prévia determinação legal.

No tocante à separação de poderes e o poder constituinte temos que a soberania popular é o elo que une e integra estes dois componentes da democracia moderna. O princípio da soberania popular significa o processo pelo qual se vai diferenciar a sociedade de uma identidade nova: o Estado. A constituição do Estado – toda criação é separação – representa a transformação desse poder inicial e único, num poder derivado, repartido, titulado. Tal separação extrai o poder constituído do poder constituinte e, por esse ato, legitima a titularidade concreta do poder, estabelecendo padrões para o seu exercício legítimo.

Neste passo, a Separação de poderes é pressuposto do constitucionalismo, prevista na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. A separação de poderes carrega a mais difusa polissemia de toda a dogmática do direito público, posto que aponta simultaneamente para os princípios de desagregação e de composição, num sistema de freios e contrapesos. Entretanto, tal equilíbrio de forças não resultará necessariamente na concretização do princípio da igualdade – problemática do Estado de Direito – considerando que essa visão redutora da separação dos poderes poderá proporcionar a hegemonia de uma “formação democrática da vontade” disposta a invocar uma irrefutável racionalidade “discursiva” no confronto dos “interesses individuais”. A “falha” do Sistema da separação dos poderes (Checks and Balances System), alegada por alguns doutrinadores, consiste no fato de não ter previsto, como não poderia prever, que o mesmo seria eficaz apenas enquanto as funções atribuídas a cada titular conservarem um sentido social.

No mundo contemporâneo, percebe-se que, ao se realizar a separação dos poderes, não há regresso à espontânea harmonia segregada por uma suposta organização natural, localizada num passado mítico. E descobre-se que a separação dos poderes significa, inevitavelmente, diferenciação e equivalência, obra da razão, criação do domínio da técnica. Atualmente, vivemos numa sociedade complexa, em constantes transformações, pelo que surgiram diversos institutos como o devido procedimento legal, os regimes de incompatibilidades e de financiamento dos partidos, a limitação dos mandatos, o alargamento do referendo, a entrega de tarefas administrativas a particulares. Há cada vez mais reivindicações da sociedade civil, nos diversos países, clamando por mais transparência dos atos dos integrantes dos poderes Legislativo Executivo e Judiciário, não sendo diferente no Estado brasileiro.

O Brasil é uma República Federativa e tem como princípio fundamental o Princípio da separação dos poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), como a base para se constituir em um Estado Democrático de Direito. O preâmbulo da Constituição Federal brasileira de 1988 apresenta o Brasil, pela Assembleia Nacional Constituinte, como um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.

Analisando os princípios, as regras e os valores ora destacados na Carta Constitucional brasileira de 1988 temos que os poderes (Legislativo, do Executivo e do Judiciário) estão estruturados na independência e harmonia entre si. A separação dos poderes é uma garantia extraordinária que foi alçada à dimensão constitucional, fruto do desejo e a intenção constituinte de estabelecer funções diferenciadas, conjugando princípios por vezes aparentemente contrapostos, com o objetivo de proteger e garantir o exercício dos direitos individuais e coletivos. De todo o exposto, verificamos que a separação dos poderes se tornou o princípio essencial de legitimação do Estado brasileiro. A separação dos poderes é, no Brasil, o fundamento do Estado Constitucional Democrático de Direito, no qual cada um dos integrantes dos três poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) deve observar sua função frente a um propósito social.

 

REFERÊNCIAS

 

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. Ed. São Paulo: Malheiros, 1988.

BRASIL. Constituição 1988. Brasília: Senado Federal, 2018.

VASCONCELOS, Pedro Carlos Barbosa de. Teoria geral do controlo jurídico do poder público. Lisboa: Edições Cosmos, 1996.

WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Introdução à história do pensamento político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.



* Juíza de Direito do TJDFT.

  • · Acadêmico de Direito da FORTIUM.