Restrição do Foro Privilegiado pelo STF - Marcio Del Fiore

por ACS — publicado 2018-05-29T12:20:00-03:00

Com o perdão do clichê, mas em tempos estranhos é preciso ver o copo meio cheio. Foi dado o primeiro passo para acabar com “uma reminiscência aristocrática, sem réplica comparável em outras democracias”[1], o denominado foro por prerrogativa por função. No Brasil, a nomenclatura mais apropriada é a de foro privilegiado, por verdadeiramente constituir um privilégio, uma diferença de tratamento injustificável entre as pessoas.

O foro privilegiado favorece as autoridades públicas de maior escalão, em detrimento do cidadão comum. Os princípios republicano e da igualdade não se harmonizam com arranjos voltados a assegurar tratamentos privilegiados aos governantes e às autoridades de plantão. Trata-se de instituto compatível com a Constituição aprovada pelos porcos na obra “Revolução dos Bichos”, de George Orwell, segundo a qual “todos animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”.

Incompleta, mas em boa hora, foi a decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal no bojo da Ação Penal 937, julgada em 3/5/2018, na qual foram fixadas as seguintes teses:

“(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será́ mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo. Essa nova linha interpretativa deve se aplicar imediatamente aos processos em curso, com a ressalva de todos os atos praticados e decisões proferidas pelo STF e pelos demais juízos com base na jurisprudência anterior, conforme precedente firmado na Questão de Ordem no Inquérito 687 (Rel. Min. Sydney Sanches, j. 25.08.1999).”

Em que pese ser o Legislativo o Poder com maior representatividade para modificação do texto constitucional, não é dado retirar do Supremo Tribunal Federal a função de interpretar a Constituição. Nesse contexto, é importante registrar que tramita, no Congresso, a PEC 333/17 para por fim à prerrogativa do foro especial. Ademais, os atuais Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal deram declarações públicas favoráveis à restrição do foro privilegiado.

Na Ação Penal 937, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação restritiva das competências e prerrogativas constitucionais. Para tanto, o Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado pela maioria, fez uso “da chamada ‘redução teleológica’ ou, de forma mais geral, da aplicação da técnica da ‘dissociação’, que consiste em reduzir o campo de aplicação de uma disposição normativa a somente uma ou algumas das situações de fato previstas por ela segundo uma interpretação literal, que se dá́ para adequá-la à finalidade da norma. Nessa operação, o intérprete identifica uma lacuna oculta (ou axiológica) e a corrige mediante a inclusão de uma exceção não explícita no enunciado normativo, mas extraída de sua própria teleologia. Como resultado, a norma passa a se aplicar apenas a parte dos fatos por ela regulados. A extração de ‘cláusulas de exceção’ implícitas serve, assim, para concretizar o fim e o sentido da norma e do sistema normativo em geral”[2].

É bem verdade que não se trata de uma técnica sem precedentes. A jurisprudência do STF tem enfatizado “a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, atuando na condição de intérprete final da Constituição, proceder à construção exegética do alcance e do significado das cláusulas constitucionais que definem a própria competência originária desta Corte” (ADI 2797).

O Ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto, colaciona vários exemplos relacionados à interpretação restritiva, mas limito-me a citar dois. São eles:

i) a Carta Magna prevê que compete ao Supremo processar e julgar “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual” (art. 102, I, “a”). Embora o dispositivo não traga qualquer restrição temporal, o STF consagrou o entendimento de que não cabe ação direta contra lei anterior à Constituição, porque, ocorrendo incompatibilidade entre o ato normativo infraconstitucional e a Constituição superveniente, fica ele revogado (ADI 521, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 7.2.1992);

ii) o Supremo definiu que a competência para julgar “as causas e os conflitos entre a União e os Estados” (CF, art. 102, I, “f”) não abarca todo e qualquer conflito entre entes federados, mas apenas aqueles capazes de afetar o pacto federativo (ACO 359-QO; ACO 1048-QO; ACO 1295-AgR-Segundo).

Após a análise do que foi decidido pela Suprema Corte, respeitáveis juristas, a exemplo do Professor Aury Lopes Júnior[3] e do Procurador de Justiça do Ministério Público da Bahia Rômulo de Andrade Moreira[4], elogiaram e criticaram a referida decisão. Passo a tratar de alguns aspectos negativos para, posteriormente, demonstrar os positivos.

 

Relatam os seguintes pontos negativos da decisão:

i) foi incompleta e desigual, pois apenas abrangeu os parlamentares federais;

ii) um juiz de primeiro grau poderá julgar um parlamentar em exercício, o que pode gerar constrangimentos, pressões, favorecimento ou perseguição política (lawfare), enfim, embaraços e problemas para a independência e imparcialidade da jurisdição[5];

iii) a prerrogativa somente se aplica aos crimes praticados durante o exercício do cargo e relacionados às funções, ou seja, propter officium. Cria-se, assim, a possibilidade de um perigoso exercício de subjetividade que pode conduzir ao decisionismo judicial, pois ficaria ao alvedrio do julgador verificar e decidir se o ato praticado é ou não próprio do ofício;

iv) o novo entendimento aplicar-se-á a todos os processos pendentes no Supremo Tribunal, de modo que, com isso, a Corte pretende remeter aos Juízos competentes os processos que lá aguardam julgamento de ex-parlamentares e também daqueles acusados por crimes praticados anteriormente à posse ou não cometidos em razão do cargo. Isso, na visão de alguns, seria alterar a competência jurisdicional em momento posterior ao fato e no curso do processo, o que violaria a garantia do juiz natural.

 

Passo aos contrapontos.

Realmente a decisão foi incompleta por não abranger outras autoridades, mas não há dúvida de que foi o primeiro passo rumo ao fim do foro privilegiado. O próprio Ministro Luís Roberto Barroso afirmou: “Eu acho que, a partir desta decisão, tudo vai ter que ser repensado. Apenas como que o caso concreto envolvia um prefeito que se tornou parlamentar, a tese que eu propus no meu voto se referia a parlamentar, mas a ideia de que regime de privilégio não é bom… O regime de privilégio não é bom e que, portanto, o foro deve ser repensado de alto a baixo, eu acho que ela vai se espraiar pela sociedade e esta matéria vai voltar para cá[6].”

Não comungo da ideia de que um juiz de primeira instância não seja imune a pressões ou constrangimentos para julgar certas autoridades, pois todos os membros do Poder Judiciário, da primeira à última instância, desfrutam das mesmas garantias constitucionais de independência e imparcialidade. Se há preocupação com influências políticas nos julgamentos, essas parecem mais prováveis em órgãos jurisdicionais em que a investidura dos magistrados depende de escolhas também políticas do que na primeira instância, onde ela se dá pela aprovação em concurso público. É preciso valorizar o juiz de primeira instância, o juiz dos fatos.

Talvez a crítica menos irrefutável seja a da ausência de um critério claro para definir o que é ou não ato próprio do ofício, o que resultaria, como mencionado anteriormente, em um perigoso decisionismo judicial. Entretanto, considero que a Corte fixou um parâmetro, qual seja, somente os atos praticados durante o mandato e relacionados às funções do parlamentar devem ser valorados no caso concreto. Não havendo ato próprio do ofício, o julgamento será remetido à instância competente. Criar uma regra clara nesse sentido é função difícil tanto para o legislador quanto para o julgador.

O último contraponto diz respeito à pretensa quebra de garantia ao juiz natural em razão da alteração de competência pós-fato e no curso do processo. Com todo o respeito, a violação da referida garantia parecia ser mais evidente com a aplicação do entendimento anterior, tendo em vista o efeito gangorra que havia nos processos relacionados às autoridades. Era comum o sobe-e-desce dos processos, pois, com a eleição, o processo era transferido para o STF e, depois, com a vacância do cargo, o processo descia para a instância competente. Agora, com as teses fixadas pelo Supremo Tribunal Federal, isso tende a diminuir.

Os efeitos dessa decisão já repercutem nos Tribunais. A exemplo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que, em 15/5/2018, por intermédio do Conselho Especial, por unanimidade, acolheu a questão de ordem suscitada pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, e determinou que a ação penal que apura a suposta prática de crimes de falsificação de documento público pela deputada distrital Telma Rufino seja remetida para a 8ª Vara Criminal de Brasília.

Em razão de tudo o quanto exposto, considero que foi dado o primeiro passo para cessar esse privilégio do estamento público brasileiro. Uma pergunta final há de ser feita: A sociedade brasileira não deseja mais o foro privilegiado, mas o Brasil está preparado? A saudosa Professora Ada Pellegrini Grinover assim respondeu: “Então vamos cruzar os braços e esperar que o Brasil se prepare? É o imobilismo que também impede efetivamente mudanças. A mudança assusta, a mudança preocupa e na verdade, principalmente, quem é beneficiário de benesses quer que tudo permaneça como está.[7]

 

Marcio Del Fiore é supervisor do Núcleo de Pesquisa e Informativo de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, sócio do Instituto Avançado de Direito – IAD e editor do site www.jusdf.com.br.



[1] Palavras do Ministro Luís Roberto Barroso em discurso proferido na abertura da XXII Conferência Nacional dos Advogados.

[2] Trecho extraído do voto do Min. Luís Roberto Barroso proferido na AP 937.

[3] Disponível na página do Facebook do Professor Aury Lopes Jr.

[5] Esse era o argumento utilizado pela doutrina e pela jurisprudência para - antes da mudança de entendimento - justificar que, uma vez empossado, o agente adquiria a prerrogativa para julgamento inclusive dos crimes praticados anteriormente.