O Tribunal do Júri

Juiz de direito substituto do TJDFT Frederico Ernesto Cardoso Maciel
por Juiz Frederico Ernesto Cardoso Maciel — publicado 2019-11-04T19:25:00-03:00

Leciona com propriedade Márcio Schlee Gomes que “o Tribunal do Júri representa a Justiça realizada pelos próprios cidadãos. Tem sua origem na luta do povo contra os poderes imperiais, soberanos, impondo que os julgamentos fossem resultado de um processo analisado pelos próprios membros da comunidade”.[1]

O Tribunal do Júri tem origem remota na história e a doutrina já identificou sua existência entre os gregos, os romanos, os primitivos germanos[2], mas na doutrina há consenso de que o Tribunal do Júri, nos moldes atuais, se originou em 1215 na Inglaterra[3] com a promulgação da Carta Magna pelo rei João Sem Terra[4] e se aponta a Revolução Francesa como responsável pela difusão do júri no resto da Europa ao retirar a competência dos magistrados vinculados à monarquia e entregá-la àqueles vinculados ao povo.[5]

Hoje, com as suas respectivas peculiaridades, o júri é instituído em vários países como Estados Unidos, Austrália, Portugal, Espanha, França, entre outros[6] e no Brasil o júri surgiu em 1822 por meio de um decreto do Príncipe Regente D. Pedro e posteriormente foi incluído na Constituição Política do Império em 1824. Desde então figura em todas as Constituições brasileiras, salvo a de 1937.[7]

O Tribunal do Júri é um direito fundamental delineado no inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição da República de 1988 e é tão importante para a sociedade que sequer pode ser extinto, pois é considerado uma cláusula pétrea[8] nos termos do inciso IV do parágrafo 4º do artigo 60.

O júri tem como características fundamentais a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, tentados ou consumados, (homicídio; Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio; infanticídio e aborto, todos disciplinados nos artigos 121 a 128 do Decreto-lei n.º 2.848/40 – Código Penal) e outros que com aqueles tiverem alguma conexão.

De acordo com o Decreto-lei n.º 3.689/41 – Código de Processo Penal (CPP), o procedimento do júri é escalonado, pois possui duas fases de julgamento.

Na primeira fase, após o Ministério Público e/ou querelante apresentarem a acusação e o juiz admiti-la, o réu é citado e apresenta sua resposta. Produzem-se as provas pertinentes, produzem suas alegações finais e então o juiz togado pode absolver sumariamente o réu, pode entender que o fato não se trata de crime doloso contra a vida e remeter o processo ao juízo competente para seu julgamento, pode extinguir a punibilidade, pode impronunciar ou pronunciar o réu.

Para que haja a pronúncia, o artigo 413 do CPP determina que o juiz togado se convença da existência da materialidade (existência do fato) e ainda da existência de indícios suficientes de autoria. Em não havendo esses elementos, a impronúncia se impõe e o processo só pode voltar a tramitar diante da descoberta de novas provas.

Conforme ensina Márcio Schlee Gomes, “a pronúncia consiste na decisão que remete o réu a julgamento pelo Tribunal do Júri (...)”.[9] A pronúncia é a porta de entrada para a segunda fase do procedimento escalonado do júri e nela se faz constar não uma certeza, mas apenas uma possibilidade da existência do fato e de o réu ter concorrido de qualquer modo para ele. Em havendo essa possibilidade, o caso será decidido pelo Conselho de Sentença composto por sete jurados maiores de 18 anos e de notória idoneidade.

Em chegado o momento do julgamento em plenário, a experiência indica que aos atores do júri, em especial o Ministério Público, o assistente e a defesa, não basta apenas o conhecimento do direito, mas também a sabedoria da vida, pois toda a prova e todo o debate é dirigido ao Conselho de Sentença, o juiz da causa, que, em tese, é desprovido de conhecimento jurídico.

Como afirma Guilherme de Souza Nucci ao tecer considerações sobre a plenitude de defesa (que também serve para os demais atores), para desenvolver as teses diante dos jurados se exige preparo, talento e vocação.[10]

Não basta postar-se na frente dos jurados e iniciar uma a leitura enfadonha de artigos de lei, citações doutrinárias ou de acórdãos. Claro que não se está aqui desrespeitando essas fontes do direito, mas o jurado é leigo e espera que lhes seja trazido da forma mais clara e simples possível o que mais lhes importa para a decisão da causa: os fatos.

Às vezes os fatos devem ser expostos com alguma “pitada” de direito, pois se está em discussão uma legítima defesa, deve ser indicado aos jurados no que consiste esse fenômeno, mas a experiência recomenda não exagerar na “dose”.

A acusação e a defesa tarimbadas já resolvem logo essas questões fáticas e jurídicas com uma boa história, um “causo”, até uma anedota e assim cativam a atenção do jurado, ao passo que o neófito ou o não vocacionado se mune do código penal e passa a ler em voz alta (bem alta se conseguir) o artigo 25 do Código Penal: Entende-se em legítima defesa quem (...). Pronto! Conseguiu ganhar o quesito dos bocejos, e/ou da antipatia, por 4 x 0.

A plenitude de defesa não se confunde com como um salvo conduto para que se atue de qualquer forma em plenário. Pode até permitir-se algo inusitado como um advogado tocando violão[11] ou outro que resolveu dar uma pirueta[12].

Contudo as solenidades exigidas pelo Poder Judiciário recomendam a todos que observem a seriedade da liturgia desse importante momento na vida em sociedade. Vale o conselho aristotélico: a virtude está no meio e não nos extremos.

Atos abusivos como xingamentos, fraudes, ameaças, vandalismo, tumultos, e o famigerado abandono do plenário, por óbvio, não são abarcados pela plenitude de defesa. Sequer podem ser classificados como defesa, mas sim como atos ilegais que devem ser repudiados de forma veemente.

O júri decide de acordo com sua íntima convicção e não deve expor seus motivos, e a lei os faz prometer a examinar com imparcialidade a causa e a proferir sua decisão de acordo com a sua consciência e os ditames da justiça.

A experiência aponta que o júri julga com a razão e o coração. Julga o fato, mas também julga o homem – réu e vítima. O júri ora condena, ora perdoa. Ora faz a justiça da lei, ora faz a justiça dos homens. O júri indica a justiça do caso, penitência ou clemência, seja ela qual for.

E a decisão é soberana, apesar de ainda se permitir um recurso quando se entende que o júri decidiu de forma manifestamente contrária à prova dos autos. Mas há vozes que repudiam esse recurso, sob o argumento de que ele retira a soberania dos veredictos.[13]

Novembro é o mês nacional do Júri e em vários fóruns do DF o povo poderá assistir como ocorrem os julgamentos. Serão todos bem vindos.

E em conclusão a este breve artigo, no júri o homem é julgado pelos seus semelhantes, com base na íntima convicção e os ditames da justiça, e a decisão deve ser soberana, imutável, e nada ilustra melhor a justiça do júri, mutatis mutandis, do que estas breves linhas do ilustre Ariano Suassuna, ao narrar o momento em que após as acusações do Encourado contra João Grilo, Manuel (Jesus) lhe pergunta como dar-se-á a defesa:

 “MANUEL – Com quem você vai se pegar, João? Com algum santo?

JOÃO GRILO – O senhor não repare não, mas de besta eu só tenho a cara. Meu trunfo é maior do que qualquer santo.

MANUEL – Quem é?

JOÃO GRILO – A mãe da justiça.

ENCOURADO – rindo – Ah, a mãe da justiça! Quem é essa?

MANUEL – Não ria, porque ela existe.

BISPO – E quem é?

MANUEL – A misericórdia”.[14]

[1] GOMES, Márcio Schlee – Júri: Limites Constitucionais da Pronúncia. 1º ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2010. p. 21.

[2] GOMES, Márcio Schlee – Júri: Limites Constitucionais da Pronúncia. pp. 21-24.

[3] TUBENCHLAK, James – Tribunal do Júri: Contradições e Soluções. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p.3.

[4] GOMES, Márcio Schlee – Júri: Limites Constitucionais da Pronúncia. p. 21.

[5] NUCCI, Guilherme de Souza – Tribunal do Júri. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. P. 42.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza – Tribunal do Júri. p. 29.

[7] TUBENCHLAK, James – Tribunal do Júri: Contradições e Soluções. pp.5-8.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza – Tribunal do Júri. p. 41.

[9] GOMES, Márcio Schlee – Júri: Limites Constitucionais da Pronúncia. p. 65.

[10] NUCCI, Guilherme de Souza – Tribunal do Júri. p. 26.

[11] Disponível em URL<https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI277374,91041-Defensor+publico+toca+musica+do+Rappa+em+Tribunal+do+Juri.>

[12] Disponível em URL<https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/justica-e-direito/advogado-que-deu-mortal-no-tribunal-do-juri-tambem-ja-fez-cafe-em-audiencia-1m23tj4ab4zfjde8bzbohp8zw/>

[13] NUCCI, Guilherme de Souza – Tribunal do Júri. pp. 31-34.

[14] SUASSUNA, Ariano – Auto da Compadecida. 35ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 2005. pp. 143 – 144.

Juiz  de direito substituto do TJDFT Frederico Ernesto Cardoso Maciel