A dignidade do animal na Constituição

Juiz da 1ª Vara Criminal do Gama e especialista em Direito Animal Manoel Franklin Fonseca Carneiro
por Juiz Manoel Franklin Fonseca Carneiro — publicado 2020-10-05T10:03:00-03:00

Sempre que tratamos do direito de um animal a não ser maltratado, abusado, mutilado ou mesmo ser morto criminosamente, surge a questão de se pretender equiparar animais a pessoas, o que é um enorme erro, fruto de séculos de indiferença à sorte dos animais, o que remonta à Idade Antiga, quando filósofos gregos, como Aristóteles e Platão, definiram que aqueles seres vulneráveis foram criados para servir ao homem e, por isso, não havia nenhum limite para o exercício desse poder, em que pese o pensamento dos filósofos vegetarianos Pitágoras e Plutarco, que acabaram vencidos em suas ideias. A situação se manteve na Idade Média, com Tomás de Aquino e Agostinho, apesar dos apelos de Francisco de Assis, tido como padroeiro dos animais.

Nas Idades Moderna e Contemporânea prevaleceu e ainda se manifesta viva a teoria de Renée Descartes, que equiparou os animais a máquinas e que assim seus gemidos não significariam dor, mas sim um mal funcionamento das suas estruturas, tendo dito que seria inútil se importar com os gritos dos cachorros dissecados vivos, tendo o próprio Descartes praticado essas vivissecções, pensamento esse que repercutiu no mundo científico, tendo o médico Claude Bernard afirmado que o cientista não se preocupa com os gritos e nem com o sangue derramado dos animais em laboratórios, o cientista produz ciência.

Mas uma voz se levantou e deu origem ao reconhecimento que os animais também têm direitos, o filósofo inglês Jeremy Bentham, após analisar a situação dos animais à luz da teoria utilitarista, concluiu que “não importa se os animais são capazes de pensar, mas sim que eles são capazes de sofrer” e com esse pensamento deu origem ao direito dos animais, por serem aqueles seres capazes de sofrer, não importando que sua inteligência seja inferior à do ser humano, pensamento que ainda está em evolução e encontra forte resistência das pessoas que ainda consideram os animais como objetos, fenômeno que é denominado antropocentrismo, que paulatinamente vai sendo substituído pelo biocentrismo, em que toda forma de vida é respeitada.

A capacidade de sofrer, tanto fisicamente, sentindo dor, fome e sede, como emocionalmente, podendo experimentar situações de depressão, ansiedade e estresse, já foi definitivamente comprovada pela ciência, tendo vinte seis dos mais renomados neurocientistas do mundo, inclusive com a participação do astrofísico inglês Stephen Hawkins,  se reunido na renomada Universidade de Cambridge/Inglaterra e, após estimular setenta e oito áreas cerebrais subcorticais de mamíferos, aves e até invertebrados como o polvo, publicaram a Declaração de Cambridge de 2012, concluindo que o funcionamento das estruturas neuroanatômicas, neuroquímicas e neurofisiológicas dos animais é tão próximo do que ocorre nas mentes humanas que aqueles seres possuem consciência da sua existência e são capazes de sentir emoções, que serão boas ou ruins, de acordo com suas mentes, e não conforme nossa percepção ou interesse.

E se os animais podem sofrer eles têm o direito de não sofrer, que nada mais é do que o conceito de DIGNIDADE, significando que humanos e também os animais têm dignidade, não ocorrendo, como muitos entendem, uma equiparação entre nós e aquelas outras formas de vida, o que é igual é o direito de não sofrer em razão da crueldade humana, e está claro que os direitos para que nós humanos não tenhamos sofrimento são mais complexos, temos os direitos de família, herança, salário mínimo, educação, previdência, direito a voto, e evidentemente direitos que tais não se aplicam aos animais, a estes são aplicados os direitos que lhes são próprios, denominados “5 Liberdades”, que são as seguintes: 1) fisiológica – direito de não sentir fome nem sede; 2) saúde – direito de não sentir dor, de não viver em ambientes insalubres, e de ser livre de doenças, tendo direito a assistência veterinária; 3) psicológica – direito de não sofrer medo, angústia e estresse; 4) ambiental - ser mantido em espaço suficiente para se movimentar e se abrigar; e 5) comportamental - direito de poder expressar seu comportamento natural, que a natureza lhes ensinou. Como exemplo dessa liberdade comportamental, os elefantes têm o instinto de tomar banho de terra e depois de água, para formar uma lama que os protege do sol e de insetos, e mesmo que sejam mantidos em cativeiro, o que não deveria acontecer, sentem uma enorme necessidade de manter esse comportamento. E nem precisa dizer que o comportamento natural de um pássaro é voar!

Então já sabemos que dignidade é um conceito que está intrinsecamente ligado ao sofrimento, como dizia o filósofo Kant, dignidade é ter valor intrínseco, é não ser instrumento para a satisfação de outro, dignidade é simplesmente o direito de não sofrer, e esse direito os animais também têm, assim existe dignidade humana e dignidade animal, e uma não existe sem a outra, a única diferença é que os direitos para garantir nossa dignidade são mais numerosos e mais complexos do que aqueles relativos aos animais.

Na Constituição Federal a dignidade do ser humano está escrita logo no artigo primeiro, inciso terceiro, sendo um dos fundamentos da estrutura política do nosso País, e a dignidade dos animais está prevista no artigo 225 e seu parágrafo primeiro, inciso sétimo, quando diz que é direito de todos ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que, na parte que respeita aos animais considerados como indivíduos, é o direito daqueles de não serem submetidos à crueldade humana, significando que direito animal é também direito humano, é cláusula pétrea, não admite retrocessos, nesse sistema político-jurídico só se anda para a frente, e a principal consequência desse dispositivo constitucional é que animais não são coisas, pela razão óbvia que uma coisa não sofre, estando assim absolutamente inconstitucional, nessa parte, o art. 82, do nosso arcaico Código Civil.

A consequência dessa intepretação das disposições civilistas sob o prisma constitucional é que o bem-estar de um animal sempre deve ser observado, mesmo que seja utilizado para produção, e isso já é reconhecido há pelo menos duas décadas pelo Governo Federal, mas o ramo do direito civilista em que esse reconhecimento do animal como sujeito de direitos mais se aplica é inquestionavelmente no direito de família, nos casos de dissolução de vínculos, para que seja determinada a guarda do animal, direito de visitas e pensão para o sustento do pet¸ não podendo, sob nenhuma hipótese, ser o animal de estimação partilhado como se fosse um bem do casal, o que infelizmente ainda se vê em algumas decisões judiciais. Essa é a posição do Superior Tribunal de Justiça - STJ e do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM (Enunciado 11), considerando a realidade social de que em mais de 44% dos lares brasileiros há pelo menos um cachorro ou gato, todos queridos pelos seus tutores, a propósito, existem mais animais de estimação do que pessoas de até 14 anos de idade (IBGE).

Portanto, o respeito à dignidade dos animais, a par de constituir direito constitucional de última geração, aprimorando os valores morais da sociedade, o que já é muito, também espelha a maneira como nós mesmos nos tratamos, estando provado pela psiquiatria forense, com base no estudo pioneiro do médico psiquiatra John Marshall MacDonald (1963), seguido por vários outros cientistas nos Estados Unidos e no mundo, que quem comete crimes violentos contra animais também irá fazê-lo contra os seus próprios semelhantes, é a denominada “Teoria do Link”, utilizada pelo FBI para traçar o perfil de assassinos seriais desde o final da década de 70, o que levou a Associação de Psiquiatria Americana (American Psychiatric Association), em seu Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais – DSM, a considerar, desde 1987, a crueldade contra animal como transtorno de conduta.

As estatísticas impressionam, estudos demonstram que nos EUA e no Brasil entre 70 a 80% das pessoas que cometeram crimes violentos contra animais também o fizeram contra pessoas, e que setenta por cento dessas pessoas também cometeram abuso infantil, o que tem levado setores da Polícia Militar do Estado de São Paulo, com base em tese de mestrado do seu integrante Robis Nassaro, a sugerir ações integradas no combate aos maus tratos a animais, violência doméstica e abuso infantil, e nesse contexto surgiu a Lei 14.064/2020, vigente a partir de 30-09-2020, que alterou o art. 32, da Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), aumentando a pena dos crimes de maus tratos contra cães e gatos para de 2 a 5 anos de reclusão, permanecendo a pena mais branda em relação aos demais animais, situação que deve ser aprimorada em futuro não muito distante.

Concluímos, destarte, que os animais, assim como os humanos, têm o direito de não sofrer, têm dignidade, e que o respeito às outras formas de vida que coabitam nosso pequeno planeta serve para aprimorar os valores morais da sociedade e refletem nosso comportamento com nossos próprios semelhantes. Direitos humanos sem direitos aos animais são incompletos, pois o que está em jogo é o sofrimento, e não a natureza dos seres que sofrem, e em segundo lugar, a integridade e coerência moral do agente, não a qualidade moral do paciente. Direitos animais são uma extensão dos direitos humanos, ambos visam garantir as necessidades primárias de seres que se importam originariamente com o que lhes ocorre, ambos tratam de seres que são fins em si mesmos, ambos são respostas à vulnerabilidade dos indivíduos dependentes entre si. Direitos humanos sem considerar os animais são incompletos, pois direitos humanos, como afirmou Cavalieri, não são apenas humanos. Por isso, de acordo com a nossa Constituição, uma tese sobre direitos animais também é sobre direitos humanos, ela é sobre o mínimo devido a seres vivos que são sujeitos, não objetos; que são alguém, não algo.

Manoel Franklin Fonseca Carneiro é Juiz de Direito titular da 1ª Vara Criminal do Gama e especialista em Direito Animal pela Escola da Magistratura Federal do Paraná.

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