A Dimensão Cultural nas Contratações Públicas Brasileiras: Avanços Sustentáveis

Adriana Tostes, Ketlin Feitosa Scartezini e Teresa Villac
por Adriana Tostes — publicado 2020-09-30T12:26:00-03:00
  1. INTRODUÇÃO

 

              Cultura e contratações públicas: qual a relação e como implementá-la? Este é o desafio a que nos propomos neste artigo para o Portal L&C, a partir da positivação da dimensão cultural da sustentabilidade nas licitações mediante pregão eletrônico:  

Art. 2º  O pregão, na forma eletrônica, é condicionado aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa, do desenvolvimento sustentável, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade e aos que lhes são correlatos.

  • 1º  O princípio do desenvolvimento sustentável será observado nas etapas do processo de contratação, em suas dimensões econômica, social, ambiental e cultural, no mínimo, com base nos planos de gestão de logística sustentável dos órgãos e das entidades.

              Há uma concepção muito relevante de cultura que se fundamenta no artigo 215 e seguintes da Constituição Federal, e constituem patrimônio cultural brasileiro os “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:  I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” (artigo 216, CF).

              Assim, sabemos que o meio ambiente se divide em natural, artificial, meio ambiente do trabalho e cultural. A cultura fundamenta, une e caracteriza um grupo, com identidades e valores compartilhados, compreensível, portanto, que em um país com diversidade e riquezas culturais tão significativas, seja ela respeitada e considerada também nas contratações públicas.

              Além de dimensões tão relevantes da cultura que podem se efetivar mediante licitações (como a preservação do patrimônio histórico, o fomento ao folclore etc.), há um ponto crucial que também se verifica nos certames sustentáveis, que é a cultura organizacional de um órgão público.

 

  1. SUSTENTABILIDADE NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

               

              Partindo do conceito de que as contratações refletem a cultura organizacional e seus padrões de consumo, de gastos, de descartes e da responsabilidade socioambiental nas relações com as partes envolvidas e com o meio ambiente, convidamos os leitores do Portal L&C a uma reflexão sobre o fator cultural da sustentabilidade nas organizações públicas.

              Entendemos que a sustentabilidade deve permear todas as fases da gestão contratual, desde que compreendida pelos agentes públicos como catalisadora das boas práticas de governança e gestão, ao alinhar os contratos e compras à real necessidade, isto é, aquela voltada à entrega de valor público à sociedade.

              Passados quase dez anos da alteração do artigo 3º, “caput”, da Lei 8.666/93, não há mais que se questionar se uma licitação é sustentável ou não. A licitação, desde o momento da identificação da demanda pelo gestor, deve ser sustentável.

              A previsão legal, disposta no referido artigo 3º, da Lei n. 8.666/93, na Instrução Normativa MPOG n. 10/2012, na Resolução CNJ n. 201/2015, e mais recentemente no Decreto nº 10.024, de 2019, reforçam o papel das compras públicas no fomento ao desenvolvimento nacional sustentável.

              E como viabilizar estas previsões normativas? Este é o desafio dos gestores públicos e o caminho é a mudança de cultura organizacional.

              O Plano de Logística Sustentável como base do Plano Anual de Contratações (artigo 7º, parágrafo único, do Decreto nº 10.024, de 2019) pressupõe o planejamento sistêmico das despesas discricionárias de custeios e dos investimentos, a partir da metodologia de análise das séries históricas de consumos; da priorização e estratégia na alocação dos recursos disponíveis; da leitura dos contextos e cenários internos e externos às organizações; das metas e indicadores anuais voltados à melhoria contínua da gestão orçamentária; e do atendimento restrito às demandas justificadas.

              Todas estas etapas invocam uma mudança de mentalidade, de mindset, da organização, e especialmente dos agentes públicos, nos níveis estratégico, tático e operacional, em especial os gestores de contratos. A sustentabilidade cultural invoca um novo comportamento, saindo do modelo reativo para o ativo. A ação baseada em análise de dados, e na visão sistêmica de todo o ambiente corporativo, com foco em soluções inovadoras e adequadas às demandas.  

              Nestes tempos de pandemia, a Administração Pública foi convocada a manter o atendimento aos cidadãos mesmo diante do necessário isolamento social. Forçada a implementar inovações de forma acelerada, superou barreiras tanto tecnológicas, quanto das resistências culturais para a mudança de modelos de gestão, que se vislumbra irreversível.

              Entre os desafios, além de manter a estrutura física para a execução dos serviços essenciais, está a estruturação da migração dos trabalhos para plataformas eletrônicas, as quais, por seu alcance, trazem maior visibilidade e consequente transparência e controle social sobre a atuação dos órgãos públicos.

              Neste contexto, alguns contratos em andamento ou previstos nos planos anuais de contratações, relacionados à manutenção predial, e àqueles necessários ao atendimento presencial, requerem atenção e reavaliação sobre suas modelagens. E neste ponto, a sustentabilidade cultural se apresenta como pauta fundamental nas capacitações dos agentes públicos.

              As culturas normativa e organizacional ainda caminham em trilhos pré-pandemia, na zona confortável da elaboração das proposições de contratações com base no trabalho no formato presencial. Como planejar a contratação dos serviços de mobilidade, como passagens aéreas, ou compra de combustível, diante de um contexto volátil e incerto? Como será a ocupação predial, a partir da tendência do teletrabalho? Os materiais do almoxarifado tendem a migrar para itens de suporte ao trabalho em formato eletrônico?

              O que se observa, no entanto, é que a sustentabilidade ainda não foi compreendida como um fator cultural nas organizações, sendo muitas vezes limitada a temáticas e contratos onde se identificam apenas critérios específicos de redução do impacto ambiental.  Existe uma real potencialidade na redução das despesas públicas quanto às aquisições e contratações que, muitas vezes, não é alcançada dada a resistência cultural para mudança de um paradigma.

              O STJ, por exemplo, a partir do monitoramento do Relatório de Impactos do Trabalho Remoto, por meio de painel de inteligência de dados em apoio à gestão, por meio do Plano de Logística Sustentável, registrou uma economia de R$ 2.210.000, de março a julho de 2020, em comparação ao mesmo período de 2019, nos indicadores monitorados (açúcar, água envasada, café em pó, combustível, impressão, papel, água, energia elétrica e impressões). Em relação à água, houve uma redução de consumo e gasto superior a 60% e, em impressões, superior a 70 %. Os dados de quilometragem relativos aos veículos próprios tiveram uma redução de 70,33%.

              Já o monitoramento dos dados sobre gastos e consumos no TJDFT, no período de trabalho remoto nesta fase de pandemia (março a julho), gerou uma economia de R$ 10.628.103,55, em relação ao mesmo período do ano anterior. Foram avaliados os custeios de materiais de expediente, impressões, energia elétrica, água, combustível, correios, suporte de TI (service desk), manutenção veicular e os contratos de serviços de limpeza, atendentes, copeiragem, gráfica e estagiários. A maior parte desses contratos é monitorada por meio do Plano de Logística Sustentável do Tribunal, que fornece subsídios para o Plano de Contratação Anual do Judiciário local.

             

  1. DA CONCLUSÃO

 

              Ainda que os instrumentos de apoio aos gestores de contrato estejam disponíveis, tanto no arcabouço da legislação federal que direciona para as contratações sustentáveis, quanto de forma mais específica em materiais de consulta como o Guia Nacional de Contratações Sustentáveis, editado pela Advocacia Geral da União, o Manual de Compras Sustentáveis do Ministério Público Federal, o Guia  Prático de Licitações Sustentáveis do STJ, entre outros, e os portais Compras Sustentáveis (CATMAT) e Bolsa Eletrônica de Compras do Estado de São Paulo (BEC-SP), notadamente, falta empenho do agente público neste sentido. Numa leitura mais apurada, os critérios adotados nos editais representam um percentual ainda tímido.

              Precisamos de novos fluxos de trabalho, atuação colaborativa e sistêmica entre os setores internos de um órgão público, mensuração e acompanhamento de dados e, primordialmente, a compreensão cultural de que atuar como servidor público é  atuar com eficiência, adotando padrões inovadores de gestão, pautados pela responsabilidade e a ética para um consumo estatal que contribua para a preservação do meio ambiente e mantenha a qualidade da entrega do valor público.

              A adoção da cultura da sustentabilidade nas contratações é mais que urgente e requer capacitação permanente de todos os atores do processo de compras, sob o risco de a gestão pública continuar reagindo às mudanças, ao invés de antecipar as estratégias de adaptação de forma sustentável. 

*sobre as autoras:

Adriana Tostes

Especialista em Gestão Sustentável. Coordenadora de Gestão Socioambiental do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Membro do Grupo de Estudos do Conselho Nacional de Logística Sustentável. Coordenadora, em parceria, do Grupo de Trabalho voluntário nacional “Gestão Pública Sustentável”, composto por membros do Judiciário, Tribunal de Contas da União, Executivo, Legislativo e Universidades Federais. Co-autora do artigo sobre contratações sustentáveis no livro “Terceirização: Doutrina e Jurisprudência” (Jacoby Fernandes, Murilo; Ed. Fórum, 2018).

 

Ketlin Feitosa Scartezini

@ketlinfeitosa

Assessora-Chefe da Assessoria de Gestão Socioambiental do Superior Tribunal de Justiça – STJ. Graduada em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília, possui MBA em Gestão e Tecnologias Ambientais pela Universidade Politécnica de São Paulo – USP e é mestre em Administração Pública pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP. Fundadora do Grupo de estudo Gestão Pública Sustentável – GPS. Atua na área de responsabilidade socioambiental há mais de 20 anos, com destaque para a implantação da Agenda Ambiental do Tribunal Superior Eleitoral – TSE e no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região.

 

Teresa Villac

@teresavillac

Doutora em Ciência Ambiental (USP). Advogada da União desde 2000. Educadora Ambiental (2018– Prefeitura São Paulo). Autora do livro "Licitações Sustentáveis no Brasil", em sua 2a edição pela editora Fórum (2020). Coordenadora da Câmara Nacional de Sustentabilidade CGU/AGU. Diretora de Consumo Sustentável do Instituto Direito por um Planeta Verde (2019-2021).