É preciso unificar os sistemas judiciais eletrônicos
No Brasil, a Justiça vem passando por um processo de modernização via Processo Judicial Eletrônico (PJe), exigindo-se repensar o acesso à Justiça, adequando a realidade social e que requer respostas ágeis do Poder Judiciário. Com base no relatório Justiça em Números (2020), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1], tem-se cerca de 77,1 milhões de processos — entre físicos e eletrônicos —, sendo que no período 2008-2019 foram ajuizados cerca de 131,5 milhões de processos exclusivamente eletrônicos. Não se pode olvidar que a modernização dos serviços da Justiça e a promoção da efetividade dos princípios constitucionais representam novas provocações ao exercício do acesso aos ditames do Poder Judiciário.
Indubitavelmente, o tema em comento é atual e se reveste de impacto para a sociedade civil, para o legislador e para todo o ordenamento jurídico, pois sob o prisma das garantias processuais e constitucionais faz-se necessário contextualizar o processo eletrônico, em meio a um acesso (digital) à Justiça, para a garantia do ingresso à ordem jurídica justa [2]. Outrossim, a característica virtual e desmaterializada advinda do processo digital apenas reflete as características da sociedade moderna e líquida [3]. Na atualidade brasileira, a maioria dos processos tramitam no sistema PJe, com cerca de 25%, outros 20% tramitam no sistema E-Saj, os demais estão distribuídos pelo E-STF, E-STJ, E-Proc, Creta, Tucujuris, Apolo e Projudi, entre outros [4].
Os tribunais, que cada vez mais devem estar perto dos cidadãos, estão se adequando a era digital, com serviços online, que conduzem a uma revolução digital do Poder Judiciário, vislumbrando a possibilidade da criação de juízos 100% digitais [5]. Não obstante à transformação do processo físico em digital ser uma realidade no Brasil, tem-se ainda uma conversão mundial, como, por exemplo, o Pacer (Public Access to Court Electronic Records) nos Estados Unidos da América e o Citius em Portugal — este utilizado no processo civil comum ordinário na medida em que houve a devida atualização do CPC português [6]. Segundo Leite e Antunes, no contexto europeu, existem alguns sistemas de e-Justice que permitem a redução de custos e proporcionam o acesso real à Justiça, quais sejam: sistemas da Inglaterra e País de Gales — MCOL (Money Claims On Line), Finlândia (Tuomas/Santra); França (e-Barret), Itália (Proceso Civil e Telemático) e Áustria (ERV/webERV) [7].
Conforme Mauro Capelletti, "o acesso à Justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental — o mais básico dos direitos humanos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar o direito de todos" [8]. A questão a ser proposta, tendo em vista os cibernéticos ao STJ e ao TSE, órgãos de cúpula do Poder Judiciário brasileiro, é: por que há uma multiplicidade de sistemas judiciais eletrônicos? Além disso, não seria mais seguro ter apenas um sistema nacional?
O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou auditoria, em especial no Sistema PJe, sob a ótica da contribuição da desburocratização do Poder Judiciário (federal, estadual, militar, trabalhista e eleitoral), estrutura de governança, ganhos de eficiência, entre outros critérios. O que resultou em duas premissas: 1) devido às lacunas de liderança e de estratégia a versão nacional do PJe restou fragmentada, ocasionando inclusive na implementação de sistemas próprios, que impactou na burocratização do Poder Judiciário, aumento dos custos e a falta de comunicabilidade entre os sistemas; 2) pela ausência de implementação de uma governança, com base em instruções normativas previstas pelo Conselho Nacional de Justiça, além de existirem falhas nas avaliações e acompanhamento dos sistemas informatizados, o que resultou em prejuízo ao acesso à Justiça ao cidadão e pouca efetividade na celeridade processual, conforme relatório (TC 008.903/2018-2) [9].
Dessa forma, a fim de garantir a efetividade do acesso ao sistema, com maior proteção a segurança dos dados — em prol da eficiência — deveria estar sob uma única governança, no caso, pelo CNJ, em atenção aos artigos 194 [10] e 196 [11] do CPC/15.
A informatização do processo judicial deve ser examinada sob o prisma de uma política pública, e não como apenas um procedimento de modernização tecnológica. Portanto, temos como necessidade a adoção de um sistema único, que se demonstra viável, com governança centralizada, utilizando-se do mesmo software e arquitetura (modelagem), resultando em melhor desenvolvimento do sistema com caráter evolutivo, além de otimizar a racionalização de recursos. Enfim, precisamos de uma padronização.
[1] BRASIL. CNJ em Números 2020: ano-base 2019. Brasília: CNJ, 2020, p. 112.
[2] Consagrada expressão de Kazuo Watanabe.
[3] Conceito utilizado por Zygmunt Bauman ao longo da obra Modernidade Líquida.
[4] RABELO, Tiago Carneiro. Manual do Processo Judicial Eletrônico. Porto Alegre, Ed. Verbo Jurídico, 2019, p. 199.
[5] https://atos.cnj.jus.br/files/original175500202010145f873b7482503.pdf
[6] PORTUGAL. Decreto-Lei n. 97, de 26 de julho de 2019. Procede à alteração do Código de Processo Civil, alterando o regime de tramitação eletrónica dos processos judiciais. Lisboa, 2019. Disponível em: <https://dre.pt/home/-/dre/123513819/details/maximized>. Acesso em: 29 ago. 2019.
[7] LEITE, Francisco; ANTUNES, Pedro. Acess to Justice: analysis of divergences in Citius. In: Conferência da Associação Portuguesa de Sistemas de Informação (CAPSI), Guimarães, 2012. Anais.
[8] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Trad. e rev. de Ellen Gracie Northfllet e Mauro Cappelletti. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 12.
[9] Disponível em <https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/acordao-completo/1.534%252F2019/%20/DTRELEVANCIA%20desc,%20NUMACORDAOINT%20desc/0/%20?uuid=290af640-a1a9-11e9-8050-7d5646f645d1> <acessado em 27 de ago de 2020.
[10] "Artigo 194 — Os sistemas de automação processual respeitarão a publicidade dos atos, o acesso e a participação das partes e de seus procuradores, inclusive nas audiências e sessões de julgamento, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções".
[11] "Artigo 196 — Compete ao Conselho Nacional de Justiça e, supletivamente, aos tribunais, regulamentar a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico e velar pela compatibilidade dos sistemas, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, para esse fim, os atos que forem necessários, respeitadas as normas fundamentais deste código".
Tiago Carneiro Rabelo é Analista Judiciário do TJDFT, professor de PJe da ESA/DF (OAB/DF) e autor do "Manual do Processo Judicial Eletrônico" (Ed. Verbo Jurídico — 2019).