O artigo 3º da Lei nº 14.010 e a violação ao princípio da isonomia

Juíza de Direito substituta do TJDFT Acácia Regina Soares de Sá
por Juíza Acácia Regina Soares de Sá — publicado 2020-06-24T09:31:00-03:00

Com a aprovação no dia 10 de junho de 2020 da Lei nº 14.010/20 que dispôs sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia da Covid-19, ficaram impedidos ou suspensos os prazos prescricionais a contar de sua vigência até 30 de outubro de 2020, excetuando-se as hipóteses previstas em leis específicas.

A edição do diploma legal acima mencionado se deu, conforme previsto em sua própria ementa, por conta da pandemia de Covid-19 que veio impôs o distanciamento e o isolamento social, o que dificultou a propositura de determinadas ações, além de trazer consigo questões de ordem social e econômicas que também acabam por influenciar nas referidas ações.

De fato, diante do quadro social e econômica no qual nos encontramos, a edição da referida lei visa atender os anseios da sociedade abalada com a presente crise. No entanto, temos que refletir sobre a situação das ações em face do Poder Público, isso porque o diploma legal em comento é taxativo em se referir ao regime jurídico das relações privadas, o que exclui as ações em face da fazenda pública.

Nesse sentido, a Lei n.º 13.979/20 que tratou das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública para o combate ao coronavírus previu apenas em seus art. 6ºC e 6º-D que não correriam os prazo processuais em desfavor da administração, como os prazos contra os acusados e entes privados processados em processos administrativos enquanto perdurar o estado de calamidade, suspendendo a também o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas no regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, na lei que trata do exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, na lei que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira e nas outras normas aplicáveis a empregados públicos e, suspendeu ainda, a o transcurso dos prazos prescricionais para aplicação de sanções administrativas previstas na lei de licitações, na lei do pregão e na lei que tratou do RCD (Regime de Contratação Diferenciada).

Diante desse quadro, é necessário questionar se ausência de previsão quanto à prescrição nas relações entre particulares e a administração pública não fere o princípio da isonomia, isso porque as regras de prescrição não admitem interpretação analógica ou extensiva, tema já pacífico entre os civilistas, conforme sustentam Washington de Barros Monteiro e Yussef Said Cahali, entre outros, trazendo a baila ainda as palavras de Pontes de Miranda nesse sentido “as regras jurídicas sobre prescrição hão de ser interpretadas estritamente, repelindo-se a própria interpretação analógica”.¹

Dessa forma, contatando-se a impossibilidade da aplicação das disposições do art. 3º da Lei n.º 14.010/20 às relações entre particulares e o Estado, já que não é possível realizar sua interpretação analógica ou extensiva, podemos então chegar a um conclusão, ainda preliminar, a inexistência de regra similar em relação as relações acima elencadas fere o princípio da isonomia, isso porque trata particulares de forma desigual a depender da parte contra quem litigem, se um outro particular ou se um ente federado.

Imaginemos a situação de um particular que cobra uma dívida de outro particular, na atual situação, teve o prazo prescricional para ingressar com a presente ação suspenso, no entanto se um outro particular em condições similares tiver uma dívida a ser cobrada de um Estado não se beneficia de tal suspensão ante a impossibilidade da ausência de previsão legal, ante a impossibilidade de utilização da interpretação analógica ou extensiva quanto ao tema, o que, par de todas as prerrogativas das quais gozam os entes federados, não se justifica no presente caso, já que as razões para criação do art. 3º da Lei n.º 14.010/20, expostas no início do presente texto são comuns a todos, independentemente da parte da adversa.

Assim, diante da situação acima exposta, fica clara a violação ao princípio da isonomia, já que não se trata aqui da utilização da expressão “tratar os desiguais de forma desigual na medida de suas desigualdades”, já que a crise sanitária, econômica e social atinge a todos. 

1. Miranda, Pontes de. Tratado de direito privado, Tomo VI. Rio de Janeiro. Editor Borsai. 1970. p.317.

Acácia Regina Soares de Sá é juíza de Direito substituta do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, professora de Direito Constitucional e Administrativo da Escola de Magistratura do Distrito Federal–ESMA, especialista em Função Social do Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina–UNISUL e mestranda em Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília–UNICEUB.

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