A pandemia e o desejo pela adoção

Walter Gomes, Supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do DF
por Walter Gomes — publicado 2021-05-25T08:37:00-03:00

O contexto pandêmico gerado pela Covid-19 tem levado as pessoas, em todo o mundo, a repensarem valores, condutas, relações e especialmente os afetos. A necessidade de adotar um comportamento de autocuidado e de autoproteção tem levado as pessoas e as famílias a reelaborarem o próprio estilo de vida e a redefinirem de maneira mais pragmática o que de fato será mais importante daqui para frente.

As reações não são uniformes ou padronizadas, ao contrário, cada um agirá de forma peculiar consoante a sua forma de enxergar a vida e com base no que acumulou em termos de experiência e aprendizagem.

O isolamento social causou uma reviravolta nos relacionamentos intrafamiliares, visto ter aumentado enormemente a interação temporal e espacial entre seus membros, provocando a necessidade de revisão de papéis e a reelaboração das trocas emocionais e afetivas, pois muitos desgastes, conflitos e rupturas foram percebidos e ganharam formas de artigos, reportagens e pesquisas acadêmicas.

Apesar de toda essa efervescência interacional nos ambientes familiares, no âmbito da adoção verificou-se que a pandemia resultante da circulação do coronavírus, causador da Covid-19, e suas variantes não inibiu o desejo de muitas famílias concretizarem o sonho de uma adoção, isso porque, segundo os dados estatísticos do serviço de adoção da Vara da Infância e da Juventude do TJDFT (VIJ-DF), no período pandêmico de março de 2020 a março de 2021, 200 famílias ingressaram com o processo de inscrição para adoção, sedimentando com isso a intenção de ampliar o núcleo familiar e de assumir as funções e responsabilidades paterno-maternais de caráter adotivo. Em anos anteriores ao início da pandemia, a média anual era de 110 processos de habilitação para adoção ajuizados na VIJ-DF. O que se verificou agora em pleno período pandêmico foi quase o dobro de novos pretendentes em busca da realização de uma adoção no DF.

Uma dessas famílias candidatas asseverou que, “mesmo diante de um cenário com tantas vidas ceifadas em razão da letalidade da Covid-19 e com um clima de luto em nível planetário, o espaço familiar vem se mostrando como vital para o exercício do afeto, da proteção e da realização, um local onde se pode encontrar o verdadeiro sentido da vida, especialmente na alimentação dos laços paternos e materno-filiais”. Acrescentou que seu desejo de adotar uma criança não foi afetado pela crise pandêmica “por estar baseado na força do afeto e na vontade incontida de dar um lar a quem dele se encontra de alguma forma privado”.

Outra família requerente que resolveu deflagrar o processo de habilitação com vistas à adoção de uma criança relatou que, “em um ambiente apocalíptico onde milhares de pessoas estão vindo a óbito, é possível sim encontrar a renovação do pacto pela vida por meio dos vínculos de filiação, pois é na experiência do amor para com os filhos, biológicos ou adotivos, que é possível vivenciar o verdadeiro propósito de nossa existência, compartilhar amor para dar sentido à vida de alguém”.

O processo de habilitação para adoção é regulado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialmente em seu artigo 197, que estabelece a lista de documentos que devem ser providenciados pelos candidatos para a propositura da ação, as atribuições inerentes ao Ministério Público, o papel avaliador da equipe psicossocial infantojuvenil e as prerrogativas do juiz, assim como os prazos de tramitação dos autos.

O referido artigo ainda destaca que é obrigatória a participação do postulante em programa de preparação para adoção oferecido pela Justiça da Infância e da Juventude que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-racial, de crianças e adolescentes com deficiências, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde e de grupos de irmãos. Esse conjunto de regras e o curso preparatório têm por objetivo aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável e cercada de afetos e cuidados.

Tornar-se pai ou mãe por meio do instituto da adoção é um desafio reservado àqueles verdadeiramente movidos pelo princípio do amor incondicional e comprometidos com os direitos e o integral bem-estar de crianças e adolescentes vitimados pela ruptura de vínculos e privados da convivência familiar. Tornar-se pai ou mãe por adoção significa criar plenas condições psicoemocionais para que meninos e meninas possam reescrever a própria história de vida a partir do parâmetro do amor e da proteção, isso porque todos eles carregam um histórico pessoal marcado por violações de direitos e suas nefastas consequências. Tanto o emocional quanto o cognitivo desses infantes encontram-se severamente comprometidos e por isso eles precisam vivenciar relações afetivas genuinamente reparadoras.

O direito de ter uma família, ou de vivenciar o pertencimento afetivo, é uma das facetas comportadas pelo instituto jurídico da adoção. O referido instituto possui natureza essencialmente protetiva e destina-se exatamente às crianças e aos adolescentes que, por razões alheias a seu querer, foram vitimados pela ruptura de vínculos parentais que resultou na privação do afeto e da convivência familiar. Não raro, a indesejável ruptura de vínculos ocorre em contextos familiares marcados pela prática da violência, dos maus-tratos e da negligência.

Crianças e adolescentes que passam por tais situações podem receber por parte da Justiça Infantojuvenil uma medida judicial de proteção e em razão disso serem encaminhados para acolhimento familiar ou institucional em caráter excepcional e provisório. Na maioria dos casos essas crianças e jovens apresentam graus diferenciados de depressão, angústia, ansiedade, culpa e medo. Esse conjunto de disfunções emocionais decorrentes da ruptura de vínculos só pode ser revertido e superado a partir de uma experiência restaurativa de natureza afetiva e familiar. Daí a urgência em se definir juridicamente o futuro de crianças e adolescentes em regime de acolhimento familiar ou institucional, seja para o retorno à convivência com sua família natural, seja para o cadastramento à adoção e inserção nas famílias habilitadas e integrantes do Sistema Nacional de Adoção (SNA).

Os integrantes da equipe interprofissional da Justiça Infantojuvenil que atuam na área da adoção costumam observar e registrar substantivas mudanças na vida emocional, cognitiva e comportamental de crianças e adolescentes que vivenciam a adoção. A felicidade, a alegria e a satisfação que emanam dos enlaces afetivos envolvendo adotantes e adotandos são simplesmente indescritíveis.

A experiência do pertencimento familiar possibilitada pela adoção desencadeia uma série de relevantes mudanças na vida de crianças e adolescentes outrora abandonados e esquecidos, e isso reforça a máxima de que o afeto é um dos mais eficazes instrumentos de inspiração e de transformação de vidas humanas. O que constatamos por intermédio das nuances jurídicas e psicossociais intrínsecas ao processo de adoção é que o adotando vivencia um autêntico renascimento psicoemocional no contexto de sua nova família, e isso só é possível através do estabelecimento de autênticos, saudáveis e estimulantes vínculos de afetividade.

Mesmo em meio a um cenário tão assustador e ameaçador, muitos vislumbram na experiência da filiação adotiva a realização máxima do sentido da vida, pois é na doação de si mesmo, por meio do afeto, que novas histórias são escritas tanto para adotantes quanto para adotandos. Isso me faz lembrar uma impactante frase atribuída à inesquecível religiosa Madre Teresa de Calcutá: “Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação”.

Walter Gomes

Supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal