O invisível assédio sexual nosso de todos os dias

Juíza de Direito Rejane Jungbluth Suxberger, titular do Juizado de Violência Doméstica de São Sebastião/DF
por Juíza Rejane Jungbluth Suxberger — publicado 2021-06-16T13:51:00-03:00

A pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil” realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com patrocínio da Uber, concluiu em sua terceira edição que, durante a pandemia de COVID-19, 5 em cada 10 brasileiros (51,1%) relataram ter visto uma mulher sofrer algum tipo de violência no seu bairro ou comunidade. A mesma pesquisa indicou que 73,5% da população brasileira acredita que a violência contra as mulheres cresceu durante a pandemia, assim como a precarização das condições de vida no último ano é maior entre as mulheres que sofreram violência. A residência segue como o espaço de maior risco para as mulheres e 48,8% das vítimas relataram que a violência mais grave vivenciada no último ano ocorreu dentro de casa. 

Com o assédio sexual não foi diferente. 37,9% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de assédio sexual nos últimos 12 meses, o que equivale a 26,5 milhões de mulheres. O assédio mais frequente são as cantadas ou comentários desrespeitosos nos espaços públicos (31,9% das mulheres foram vítimas, ou seja, 22,3 milhões). Na sequência, aparecem as cantadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho, que atingiram 12,8% das entrevistadas, e o assédio no transporte público para 7,9% das respondentes. 

Recentemente algumas notícias circularam no país sobre o assédio sexual de homens brasileiros ocorridos em lugares públicos e no ambiente de trabalho. Uma frase ofensiva, um olhar obsceno, toques no corpo da mulher são experiências vividas por grande parte das brasileiras. No entanto, o assédio sexual ainda é invisível. A maneira velada com que ocorre, camuflado sob o manto dos elogios, sussurrado ao ouvido ou misturado à multidão, normaliza a conduta violenta, assim como torna a palavra da vítima contestável. 

O mundo é organizado em oposições, dentre as quais estão o masculino e o feminino. A normalidade em que se organiza a convivência e as relações sociais é construída por uma cultura de homens que faz com que o masculino seja universal e o feminino, algo particular, em que as mulheres servem de sustento e apoio desse modelo. Há uma dupla discriminação estrutural das mulheres: de um lado, consideradas por sua condição, valem menos e sua capacidade é menor. De outro lado, elas são situadas em espaços e funções inferiores sob a supervisão e o controle dos homens (isso tanto no espaço privado quanto no espaço público). 

Esta divisão é baseada numa relação hierárquica. A dominação masculina no mundo social se justifica pela “ordem das coisas”, na qual se naturalizam as relações de dominação e as diferenças socialmente estabelecidas entre os sexos. De igual modo, na vida cotidiana, a ordem masculina dispensa qualquer justificativa e a visão androcêntrica é imposta como neutra. Essa dominação do homem sobre a mulher é um exemplo por excelência da submissão paradoxal chamada de violência simbólica, aquela invisível para as vítimas e que se exerce pelas vias simbólicas da comunicação e do conhecimento. 

Essa violência é definida como legítima e não reconhecida como violência. Apresenta-se em situações moderadas de dominação que ganham adesão dos dominados. “Violência” porque, por mais branda que seja, não deixa de exercer uma agressão aos (às) que a sofrem. “Simbólica” porque exercida na esfera da significação ou, mais precisamente, do sentido que os dominados conferem ao mundo social e a seu lugar nesse mundo. É tão ofensiva e perigosa como a violência física, já que não necessita de justificação e se apresenta como predisposição natural do indivíduo.

Na dominação masculina, a violência simbólica aparece como uma violência oculta, que é operada por meio da linguagem, do comportamento e da representação. Além de se impor por meio do poder e da cultura, sua peculiar maneira de domínio auxilia as relações de forças. A violência simbólica, explicitada por Pierre Bourdieu e outros, tem origem na divisão sexual do trabalho de produção e reprodução biológica e social, que confere aos homens a melhor parte. Sua presença se transforma em esquemas previamente estabelecidos e universais numa sociedade. A opressão sexual, por exemplo, é efeito da violência simbólica. Outra consequência da violência simbólica é a representação androcêntrica investida no senso comum, dóxico, plasmado ao sentido das práticas. 

No assédio sexual, a virilidade dos homens está em prova, associada à força e à potência sexual. As manifestações da virilidade se situam na lógica da aventura, da façanha, que engrandece e exalta as ações realizadas na esfera pública, a fim de reafirmar e manter sua condição de grupo dominante. O homem é socializado para dominar a mulher e a violência resulta dessa socialização machista. A mulher, por sua vez, em razão da socialização de submissão aos comandos masculinos, submete-se à violência como destino natural e imutável, desconsiderando que se encontra numa relação desigual de poder. 

O assédio sexual nem sempre tem como fim a posse sexual, mas a mera afirmação de dominação. É utilizado como instrumento para o qual o homem prova aos seus pares, que ele é mais viril do que os demais e que ele está numa posição dominante, o que lhes permite realizar essas ações publicamente e com impunidade. O entendimento do que se considera “violência contra mulher” é uma construção histórica do movimento feminista. No campo do Direito, Catherine MacKinnon teorizou a violência contra as mulheres encontrando resposta na dominação a partir da construção social da sexualidade da perspectiva masculina. A questão da igualdade é uma questão de distribuição de poder, assim como o gênero que está fortemente ligado à supremacia masculina e da subordinação feminina. Essa contribuição feminista provocou uma mudança na compreensão da sexualidade e das relações entre homens e mulheres ao identificar a violência sexual como um elemento importante na manutenção da subordinação das mulheres.

A tarefa do feminismo consiste em descobrir e desarticular as diversas formas de manutenção da violência contra as mulheres. Sob uma perspectiva crítico-feminista, por exemplo, as causas de violência de gênero foram identificadas e analisadas sob o viés das questões estruturais e sociais que permeavam as condutas de homens e mulheres como normas naturais e generalizadas. A violência de gênero não podia ser entendida como um fato isolado, mas como um reforço da posição masculina de domínio, que se mantinha perpetuado na vida político-social das sociedades, em que a autoridade de um sexo sobre o outro se apresenta como estrutura central da relação. 

Numa sociedade supostamente igualitária, como explicar que homens ainda continuem a assediar sexualmente as mulheres? Os corpos femininos são livros abertos em que se escrevem as regras dos pactos patriarcais, e por consequência, a violência. O sistema socializador do domínio masculino exerce um rigoroso controle sobre as ações e movimentos da mulher no espaço público. Em situações de violência sexual, por exemplo, é comum a introdução do medo na socialização das meninas ou a sua culpabilização na hipótese de agressão. 

A socialização nos valores e normas patriarcais é tão perfeita que mesmo após anos de luta do feminismo, ainda existe quem defenda estereótipos de comportamentos como sendo livremente eleitos. A ruptura de modelos como: “os homens são mais violentos”, “a prostituição é impossível de erradicar”, “as mulheres gostam de homem agressivos”, exige um esforço para que ocorra uma notável desintoxicação ideológica, pois a sociedade se resignou com mandatos de gênero e com a violência que passa desapercebida. Exemplo disso é o assédio sexual que ainda é interpretado como uma série de incidentes sem que haja compreensão do fenômeno estrutural que ele representa. 

Por meio dos movimentos e teorias feministas, como ocorreu com a “Política Sexual” de Kate Millett (1974) e “Against our will” de Susan Brownmiller (1981), a violência contra as mulheres passa a ser visualizada como violência estrutural sobre o coletivo feminino, no qual reproduz o sistema de desigualdade sexual e o medo condiciona o comportamento cotidiano das mulheres, no sentido de que todas são vítimas. A mensagem que essas autoras feministas transmitem é: “uma mulher sozinha está em perigo”. E isto funciona como um mecanismo eficaz para retê-las no espaço que o patriarcado sempre lhes atribuiu: o espaço privado. Todavia, o espaço privado também está comprometido e é atualmente o lugar de maior risco para a mulher. 

O movimento feminista que se ocupa da violência sofrida pelas mulheres tem perseguido um único objetivo que é proteger a vítima mediante a utilização da justiça. Contudo, há uma tensão entre o conservadorismo e machismo judicial e as propostas feministas, que se deparam com um novo desafio: apresentar ao sistema de justiça meios que sejam capazes de alterar a visão misógina de julgamento dos processos que envolvem questões de gênero. Avançar diante da complexidade das relações e dos retrocessos na política brasileira, significa aperfeiçoar mecanismos que possibilitem às mulheres uma nova cidadania política. O desconforto teórico de um pensamento crítico sobre as epistemologias das ciências sociais e jurídicas que ainda apresentam a dicotomia “razão” e “sensibilidade” – que reflete a oposição entre masculino e feminino – precisa continuar sofrendo mudanças. Essa mudança somente será possível quando a reprodução tradicional e inquestionável do poder for reconhecida e modificada.

 

Rejane Jungbluth Suxberger

Juíza de direito, Titular da Vara de Violência Doméstica de São Sebastião/DF; Mestre em Direito pelo UniCeub. Máster em gênero e igualdade pela Universidade Pablo de Olavide - Sevilha/Espanha e Doutoranda em Ciências Sociais na linha de gênero e igualdade pela Universidade Pablo de Olavide.