Um ano após: de utopias e realidades

Juiz de Direito Substituto do TJDFT Lucas Sales da Costa
por Juiz Lucas Sales da Costa — publicado 2021-03-19T15:06:00-03:00

Poderia ter sido diferente. Enxergaríamos hoje autoridades dos três poderes desempenhando gestões harmônicas, cooperativas e eficazes destinadas, prioritariamente, à realização de políticas públicas no combate sanitário.

Veríamos pela televisão mandatários com empatia e apreço no que diz com o bem comum, proferindo humildes discursos reveladores de nossa pequenez diante de um inimigo tão gigante quanto invisível e instável.

Enfocaríamos o interesse coletivo em face do individual e a proteção dos mais vulneráveis, sempre valorizando a vida humana, cuja tutela é inigualável.

Um ano depois, neste mês de março, teríamos como resultado avanços significativos e alvissareiros no combate à pandemia do coronavírus.

Entre os lábios e a taça, entretanto, o líquido pode derramar. A frase não é minha, mas dela me recordei subitamente, num desses momentos em que nossa mente, de tão inquieta, distancia o adormecer.

É, não aconteceu.

Não se trata de assumir um pessimismo, o qual seria até facilmente capaz de surgir em situações como as de hoje, quando a crise nos faz oscilar entre a inércia e o espanto. Eu jamais escreveria com esse tom.

Não se pode, contudo, deixar de absorver que, de forma lamentável, a esperança pode estar sucumbindo ao medo e à descrença. Até quando, afinal, ficaremos sem vislumbrar dias melhores no horizonte?

O coronavírus mostrou seu lado mais traiçoeiro, causando danos de vastidão difícil de aquilatar. É sempre triste e desanimador tecer repetições acerca das lesões, das mortes e dos lutos vivenciados.

Falo, francamente, com conhecimento de causa: a irreversibilidade das grandes perdas é a maior de todas as dores. A saudade não se dissipa com o tempo; ela aumenta. Nunca mais somos a mesma pessoa. Quero aqui, porém, enaltecer coisas boas. E elas sempre existem para os que pretendem apreendê-las.

Dizem os gregos não importar o que acontece com a gente, mas sim o modo como reagimos a cada acontecimento. É verdade. Esta filosofia é apta a modificar um mundo.

Olhemos ao nosso redor: a solidariedade pulsa na comunidade. É impossível não notar que, num canto ou no outro, o altruísmo entrou na pauta do dia. Por necessidade ou voluntarismo, as pessoas parecem endossar a convicção de não poder viver sozinhas. Nunca a irmandade foi tão vívida.

Mais do que isso, o sentimento de colocar-se no lugar do outro irrompeu no cotidiano de quem, simples assim, preocupa-se com seus iguais. Auxílios, doações, caridades, transformações: o mal certamente existe, mas o bem sempre vence o duelo.

É veementemente falsa a afirmação corriqueira de que estamos todos no mesmo barco. Miséria, fome, desemprego e desigualdade, numa lista certamente interminável, estão longe de todos atingir. Pobres e ricos, doentes e saudáveis, depressivos e alegres não estão em idêntica circunstância. É um fato, e não mera opinião. Precisamos fazer alguma coisa.

Podemos usar, já refleti uma vez, a quarentena como um gatilho de transformação. Para cada um de nós, mas para todos. Não há soluções individuais para um problema globalizado. O vírus não está aqui nem ali, mas sim em todos os lugares. A ciência ganhará o conflito na sua área, e nós, leigos nisso tudo, ganharemos na seara de nossas potencialidades mais virtuosas.

Não precisamos citar a política e as ideologias, mas ainda soa incrível constatar o egoísmo e as individualidades mundanas. O “Eu primeiro”, o “Eu na frente” e o “A gente acima de todos vocês” têm suas terminologias adaptáveis por quem acompanha a história das civilizações. Nunca deu certo.

O coronavírus apontou as inferioridades dos mais pretensamente superiores. Talvez seja o instante de baixar a bola quanto a nossas queixas e aprender com os ensinamentos derivados do vírus mensageiro.

As oportunidades não aparecem sempre. Priorizar os malefícios dos episódios mais dramáticos é uma escolha que se respeita. A outra opção é inferir-lhes as positividades e tentar mudar nossa maneira de ser. Sempre há o que alterar.

Acontecimentos impactantes provocam estragos, machucam e antecipam colossais experiências. Nós vamos sair melhores, independentemente dos danos existentes.

Assim agindo, com mais fraternidade e menos soberba, faremos tudo por cada um de nós, mas também pelo nosso próximo e, consequentemente, pelo mundo. Isso tudo pode remeter a uma utopia, mas é preferível vivê-la a entregar-se à indiferença.

É, verdadeiramente, importante pensarmos, num momento de tantas agonias, sobre o que somos e pretendemos ser. Qual será o marco inicial de uma mudança de conduta?

Lucas Sales da Costa é juiz de direito substituto no Tribunal do Júri de Ceilândia