Acesso à Justiça para os invisíveis
Eles estão entre nós. No centro da cidade, nas periferias, nos cantos escuros e úmidos, sobrevivendo à dureza, aos perigos e desafios de uma vida marginalizada e invisível. Uma vida que não merece ser vivida.
Estar em situação de rua não é motivo de orgulho. Ter um teto para se abrigar, provavelmente é um dos primeiros instintos que surgem quando o ser humano passa a compreender o mundo e as suas complexas dinâmicas. Além do abrigo físico, ter uma moradia é condição de aceitação e inserção social, para obter documentos, abrir uma conta no banco, para se candidatar a uma vaga de emprego, eis a exigência ali presente, endereço fixo.
A questão referente ao estar em situação de rua é mais do que um problema social, mas um problema público, centro de inúmeras ações e políticas estatais, mas que ainda não tinha ganhado dimensão expressiva no âmbito da gestão judiciária. Mas, a miséria está exposta.
O sistema de Justiça quer enxergá-la? O acesso à Justiça é pleno para que a população em situação de rua exerça seus direitos fundamentais? Acessar a Justiça é tarefa que impõe certas condições que, a depender do usuário, são de difícil superação, pois exigem conhecimento do direito e do funcionamento dos serviços e do sistema.
A Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, criada pela Resolução 425/2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), traz à tona a dura realidade dos invisíveis. Provoca o sistema de Justiça a pensar soluções de inclusão e adaptação dos seus serviços às necessidades desse público, a partir da identificação das principais dificuldades e obstáculos que se apresentam no dia a dia de quem precisa conseguir a segunda via de documento, discutir judicialmente benefício previdenciário/assistencial, resolver questões de família ou qualquer outro conflito.
A jornada do usuário é árdua e se inicia com a dificuldade de acessar os prédios públicos, seja em razão das condições precárias de higiene e de vestimenta, seja pela falta de local para guarda dos bens que carrega consigo. Mas, ainda que ultrapassada essa barreira, é preciso lidar com a necessidade de percorrer grandes distâncias, com a falta de informações em linguagem acessível, incompreensão dos fluxos e a necessidade de esperas excessivas frente à urgência que a situação exige.
No Brasil, a primeira experiência de implantação da política pública aconteceu em Brasília, por meio da articulação e do diálogo entre o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a Justiça Federal, a Justiça Eleitoral, as Defensorias Pública do Distrito Federal e da União, a Polícia Civil e diversos órgãos do GDF.
As instituições se mobilizaram rapidamente e realizaram dois mutirões batizados de PopRuaJud-DF, que contabilizaram juntos mais de 3.900 atendimentos jurídicos, expedição de documentos e outros serviços públicos que seguiram a proposta de desburocratização e superação de barreiras para a resolução dos problemas. Não houve inovação propriamente dita nos serviços prestados, a grande inovação do PopRuaJud foi a integração interinstitucional com a finalidade de prover o atendimento pleno e concentrado.
Destaque-se, a mobilização institucional do TJDFT transborda ao atendimento jurídico e alcança o viés social ao promover campanha permanente de arrecadação de doações de agasalhos e cobertores em todos os fóruns do Distrito Federal e, ainda, por meio da adesão de servidores e magistrados, que voluntariamente trabalham nas ações com a intenção de ajudar o próximo.
O mais recente atendimento ocorreu neste 28 de junho. E, a cada edição do PopRuaJud-DF, muitos são os impactos positivos. Para as pessoas atendidas, é um pequeno ganho frente às dificuldades do dia a dia. Mas, em termos institucionais, representa o início de uma mudança paradigmática na qual a Justiça está mais próxima e acessível.
A Resolução 425/2021 é o primeiro passo para o longo caminho construído a muitas mãos, de forma fraterna e solidária. Com o coração definitivamente tocados, com a persistência e a esperança daqueles que acreditam em um sistema de Justiça humanizado, inclusivo e empático, ainda há muito trabalho a ser feito.