Alcance o cidadão com linguagem simples

Servidora do TJDFT Joana Flor Rattes Nunes, integrante do Laboratório de Inovação Aurora
por Joana Flor Rattes Nunes — publicado 2022-02-22T14:02:00-03:00

“As pessoas, de maneira geral, não compreendem as decisões judiciais. Falamos e escrevemos para especialistas, sem preocupação em sermos entendidos pelo destinatário final dos serviços judiciais: a população.” O autor dessa fala é Ricardo Pippi Schmidt, Desembargador do TJRS.

Fruto de nossa herança ibérica, o Estado brasileiro tem a tradição de ser paternalista e centralizador. Nesse contexto, o formalismo jurídico, manifestado em discursos elegantes e linguagem rebuscada da legislação, mantém a separação entre agentes públicos e a população.  É como se existisse um corpo de guarda imaginário que impõe distância da linguagem acessível ao cidadão comum e, por consequência, intimida. E muitos de nós, desavisadamente, conservamos essas práticas sem questioná-las, atribuindo uma profundidade semântica, e um valor filosófico, intelectual à linguagem formal que, na realidade, é vazio, esbarrando no preciosismo. A linguagem, então, deixa de cumprir seu papel: o de comunicar.

No Judiciário, essa prática, além de impedir a comunicação necessária entre as partes evolvidas em um processo, o tecnicismo da linguagem também reafirma o afastamento do cidadão comum do pleno acesso à Justiça.  A linguagem, então, reforça as desigualdades sociais herdadas.

Segundo Cappelletti e Garth, especialistas no assunto, o acesso à Justiça pode ser encarado "como o requisito fundamental (...) de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não proclamar os direitos de todos".

O uso de técnicas processuais baseadas na simplicidade e informalidade contribui para o empoderamento de grupos desfavorecidos, pois promove o acolhimento e a interação do público leigo com a cultura jurídica. Adequar a linguagem jurídica ao interlocutor amplia a clareza e a transparência na relação entre as partes e do Estado. Isso pode estimular as pessoas a participar mais ativamente do processo decisório. O resultado desse esforço de mudança é a democratização do acesso à Justiça e a garantia da consciência de direitos próprios, à luz do princípio da dignidade humana. E isso é a melhor prestação jurisdicional que pode ser desempenhada.

Ainda, o movimento em direção à simplificação da comunicação reflete a inserção da carta de direitos na cultura corrente, compartilhada por todos. É certo, pois, que toda língua evolui, dá origem a novos sentidos e a novos vocábulos: a língua materna, a vernácula, é um ser vivo para seus falantes.

Se considerarmos que cerca de 30% da população brasileira economicamente ativa não consegue compreender textos simples, e apenas 37% da população brasileira possui níveis de alfabetismo intermediário ou proficiente (ONG Ação Educativa/ Instituto Paulo Montenegro, 2018), parece óbvio que, para alcançar as pessoas, comunicar-lhes e lhes garantir direitos, há de se requerer do Estado, como política pública e por meio pessoal de seus agentes, valores como empatia – tudo começa na empatia -, clareza e transparência. Esses valores estão de acordo, inclusive, com o princípio da boa governança. Se o Estado não alcança a população, o aproveitamento dos serviços públicos é menor e gasta-se mais tempo e mais recursos por menos retorno.

Nos anos 1940, na Inglaterra e nos Estados Unidos, surgiu um movimento pelo uso da linguagem simples para comunicações oficiais para promover a aproximação entre o Estado e as pessoas. Na década de 1970, a linguagem simples (plain language) foi colocada em prática por governos como o dos Estados Unidos, Inglaterra, Suécia e Canadá, que sistematizaram uma técnica de comunicação para transmitir informações de maneira simples, objetiva e inclusiva. Hoje, mais de 10 países possuem iniciativas de Linguagem Simples no setor público, inclusive o Brasil, que, na lei de direitos do usuário de serviços públicos (Lei 13.460, de 26 de junho de 2017), que, em seu artigo 5º, inciso XIV, reserva ao cidadão usuário de serviços públicos o direito de ser informado em linguagem simples e acessível.

Neste ano de 2022, a diretoria da Plain Language Association International (PLAIN), organização fundada em 2018 e formada por voluntários de mais de 30 países, passou a contar com a participação da brasileira Heloisa Fischer, pesquisadora, professora, jornalista e ativista de linguagem simples. A indicação dela para compor a PLAIN é um reflexo também da amplitude do movimento no nosso país.

A sistematização para elaborar comunicações em linguagem simples parte da resposta a algumas perguntas:

  • quem é o publico alvo?;
  • qual a finalidade da comunicação?;
  • quais os objetivos da comunicação, por que ela existe, o que se espera de consequência dessa comunicação?;
  • quais as principais informações precisam estar na comunicação, qual a mensagem?;
  • como expor as informações de maneira clara e ordenada?

Essas perguntas devem ser respondidas tendo-se em mente os princípios de brevidade, com orações curtas; objetividade, com emprego de frases na ordem direta; clareza vocabular e inclusão, com a pessoa de maior dificuldade como o público-alvo. Deve-se, ainda, evitar o uso de termos técnicos, jargões, estrangeirismos – afinal, a linguagem simples busca o universal. E, tendo em vista que linguagem não é apenas a língua falada, mas o conjunto de informações trocadas, a organização, o tamanho e tipo da fonte e o uso de ícones também são considerados na sistemática da elaboração de comunicações em linguagem simples.

Considerando suas origens históricas, é compreensível que as instituições públicas tendam a ser mais rígidas e menos propensas à evolução, tanto por seu papel de estabilidade social quanto por inércia, pois representam a estabilidade e segurança, o status quo. É fácil ser absorvido na “burocracia pela burocracia” Weberiana! Ainda que entendamos, no campo pessoal, a finalidade da prestação dos serviços públicos e a necessidade do alcance à população, mudar uma cultura leva tempo.

Nesse cenário, tem sido reconhecido que Laboratórios de Inovação criam propostas em que se pode testar modelos e práticas a partir de ideias novas, na escala menor de projetos piloto, para sondar e assimilar anseios, impressões e derrubar receios sobre mudanças. Isso favorece conhecer os públicos interno e externo da organização e testar novos modelos de serviços. Não há apego a ideias. O objetivo é o aprimoramento contínuo do servir.

O Laboratório Aurora incubou um projeto de linguagem simples no TJDFT, com a realização de oficina de mandados elaborados em linguagem simples, divulgação de tirinhas com os princípios da técnica, elaboração de um manual e um canal no Yammer. Estamos caminhando na trilha da inclusão e da plena cidadania, e a linguagem simples é certamente um instrumento a ser incorporado por todos! 

 Joana Flor Rattes Nunes é Integrante do Laboratório de Inovação Aurora do TJDFT