Daquelas cartas que se deixa para abrir alguns anos depois
Com carinho a todos os colegas LGBTQIAP+ do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios e a todos os demais. Esta carta é na intenção de que sejamos empáticos, respeitosos e que tenhamos em mente que a justiça é para todos e independe da sua orientação sexual, identidade de gênero, credo e cor. Só existe potência no dissenso quando a intenção é trazer fomento na união e nossa vida pode ter mais estrelas e mais amores se o preconceito não fizer morada em nossas práticas diárias.
Se houvesse alguma dica, algum tipo de manual, prescrição ou sei lá, talvez alguma bula ou receita, dessas que a gente faz um bolo maravilhoso, mas também pode sair una paella extremamente saborosa, um prospecto, panfleto, teses, anúncios ou quem sabe um livro da vida que nos permitisse saber o que fazer com nossas inquietações, dores, receios e lamúrias, eu acho que poderia talvez começar por alguns desses pontos:
Vai lá, toca Maria Bethânia pra ela, mostra que você é intensa. Aproveita e corre uma maratona, chega primeiro, grita que "é por você, amor" e sem perder tempo, beije seu mino na frente dos outros.
Grite a plenos pulmões e risque no céu que aquela travesti é sua namorada;
Andem de mãos dadas; façam serenatas; façam amor e revolução; vão às manifestações porque a realidade do mundo só gira com novos pensamentos e saberes; comprem flores, contem [quando achar que for a hora] aos seus pais sobre sua sexualidade, orientação sexual e/ou identidade de gênero; ou não contem, até porque às vezes a sua família não será a sua família nuclear cosanguínea...já dizem por aí que quem tem um amigo tem tudo.
Ajudem os amigues trans com as primeiras novas roupas e doem blusas, vestidos, calças porque serão precisos e pode ser que seus amigues não tenham dinheiro para comprar após uma expulsão de casa;
Estudem, porque muito provavelmente, precisaremos provar que somos melhores e a sociedade nos fará pensar que só teremos paz e tranquilidade se tivermos um espaço privado para nos relacionar afetivo sexualmente com nossos amores.
Bebam muita água para dar conta do preconceito que vem; ao menos estaremos hidratadas e pleníssimas.
Não se mantenham em relacionamentos abusivos só para mostrar para suas famílias que vocês deram certo no amor – pessoas começam e terminam relações e isso é normal, não se trata de estar ou não no caminho certo.
Fiquem todos tranquilos, vocês pessoas cisgêneras, para usarem o banheiro unissex, está tudo bem! Nunca foi sobre vocês, tem muito mais questões e camadas acontecendo e de maior importância;
Sim, eu sei, tem sido duro lidar com a lgbtfobia...olhar para o lado e ver casal de lésbicas sendo xingado, mulheres lésbicas sofrendo estupros corretivos, gays sendo mortos por seus pais, pessoas trans cometendo suicídio, pessoas bissexuais sendo estigmatizadas como promíscuas.
O total descaso político por estas pautas e o emaranhado semântico construído sobre nossos corpos – abjetos, sexuais, impuros – nos relegam a um lugar de vulnerabilização e fragilidade emocional e para combater e vencer esse cenário fazemos do gueto, e da margem pontos de escape e refrigério – a verdade é que o periférico sempre foi o central, mas isso a gente vai aprendendo com o tempo.
Realmente nossas lutas não têm sido fáceis e nunca foram, mas todo dia 28 de junho a gente lembra do primeiro emprego em que se pode falar o seu nome, sem ser o de registro; lembra como foi levar a namorada na primeira confraternização do trabalho e todos os desdobramentos que isso traz, a gente lembra como foi chegar pela primeira vez na festa da universidade de mãos dadas com a crush, como é conversar - aqueles que conseguiram - tranquilamente com seus colegas de trabalho sem que a sua orientação sexual ou identidade de gênero seja sempre colocada como foco; aquele abraço de acolhimento da família junto com a frase “ te amamos do jeito que você é” –
infelizmente tão almejada por tantos e exitosa para poucos; a gente lembra de quando foi expulso/expulsa de casa e de tudo o que aconteceu para chegarmos até aqui; a gente lembra como foi entrar no banheiro para fazer xixi sem que ninguém importunasse, lembra como foi andar de mãos dadas sem que houvesse um policial dizendo que sua forma de amar era inadequada; a gente lembra como foi colocar aquele salto e manter a pose para sair bela na foto; a gente reza, porque, honestamente, nunca entendi porque separam homossexualidade das religiões; a gente vibra, luta e persiste em acreditar que as coisas mudarão porque é preciso esperançar e viver.
Já viram como a cidade tá linda? Celebrem em todos os pontos coloridos e simbólicos, tirem fotos, sorriam, não deixem que projetem em nós o destempero do preconceito e devolvam a semente da generosidade, exuberância e plenitude.
Sejamos, pão com ovo, barbie, siga bem caminhoeiras, amapôs, monas, scanias, emocionadas, poc, ursos.
Sejamos sempre orgulhosas, orgulhosos e orgulhoses.
Brasília, 28 de junho de 2022
*Rebecca Christina R. J. de Oliveira é servidora do TJDFT, lotada na Coordenadoria de Ensino Presencial - COEPE.