Silêncio da vítima: direito ou armadilha?
*Ana Luiza Morato
Quem trabalha em Varas de Violência Doméstica já deve ter se deparado com pedido articulado pela Defesa do agressor/réu para que a vítima, mulher, seja previamente orientada sobre a possibilidade de permanecer em silêncio durante a audiência de instrução e julgamento.
Geralmente, o requerimento vem acompanhado pela argumentação da aplicação direta do artigo 13 da Lei Maria da Penha, que prevê a possibilidade de aplicação subsidiária e complementar de outras legislações específicas, bem como do inciso IV do artigo 5º da Lei 13.431/2017, que trata do direito da criança e do adolescente de permanecer em silêncio, quando vítimas ou testemunhas de violência.
Além disso, vem mascarado por uma suposta cautela, que é evitar a revitimização da ofendida, preocupação essa que também norteou a edição do Enunciado 50 do FONAVIDi, in verbis: “Deve ser respeitada a vontade da vítima de não se expressar durante seu depoimento em juízo, após devidamente informada dos seus direitos.”
Em que pese a pretensa invocação do espírito de proteção, essa estratégia defensiva deve ser examinada criticamente pela(o) magistrada(o).
Inicialmente, cabe registrar que nem na Constituição Federal nem no Código de Processo Penal – CPP, tampouco na Lei Maria da Penha, há a consagração do direito da vítima em permanecer em silêncio. A previsão dessa garantia em nosso ordenamento jurídico é taxativa em benefício do acusado, regra consentânea, aliás, com o sistema acusatório, pelo qual, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo (art. 186 do CPP).
Em sentido diverso, o regramento processual para o ofendido (vítima), traz a necessidade de seu depoimento e, ainda, previsão de medida judicial para que a sua falta, quando desmotivada, seja suprida pela condução coercitiva (art. 201 do CPP). Não tivesse as declarações da vítima singular relevância para a elucidação dos crimes, não teria a lei processual conferido à(ao) magistrada(o) o poder de convocá-la, sob vara, ao fórum.
Nesse cenário, cumpre à(o) magistrada(o) ficar atenta(o) às armadilhas do cotidiano forense, para evitar que diligências como essa, que, em verdade, possuem apenas o verniz de proteção, acabem por afastar a adoção de medidas que efetivamente cumpram esse papel, como, por exemplo, reenquadrar o alcance do fenômeno da revitimização institucional da mulher em situação de violência. Novo enfoque de compreensão sobre esse tema pode ser um passo substancial em busca de mudanças significativas dentro de um ideal sistema de proteção.
Pois bem. Desde a sua edição, o êxito da Lei Maria da Penha está atrelado às campanhas estatais e institucionais de incentivo para que a mulher em situação de violência “denuncie” o seu agressor. Assim, desde 2006 é crescente o número de mulheres que procuram uma delegacia para registrar boletim de ocorrência e requerer medidas protetivas de urgência. No entanto, observa-se que a corrente do “denuncie” perde força persuasória à medida que o processo criminal toma corpo, uma vez que a mulher, seja por falta de esclarecimento, seja por falta de acolhimento ou até mesmo tomada pelo comodismo inaugural proporcionado pelas medidas cautelares (MPUs), não reconhece a importância de sua participação ativa no processo judicial, que é desencadeado pelo seu comparecimento à delegacia, mas não se encerra lá.
Despertar e incentivar na mulher a consciência sobre a necessidade de sua efetiva integração ao processo penal integra as diretrizes e os princípios estabelecidos pela Lei Maria da Penha e satisfaz os comandos da Recomendação Geral nº 33/CEDAWii, norma internacional paradigma que regulamenta o acesso das mulheres à Justiça. Ao recomendar práticas voltadas a garantir o direito de acesso irrestrito à Justiça para as mulheres, inclusive como instrumento de potencial emancipatório, e ao esclarecer que a desejada justiciabilidade exige políticas públicas que capacitem e empoderem mulheres para reivindicar seus direitos, a referida Recomendação impõe a adoção de estratégias proativas de enfretamento, não sendo, portanto, razoável admitir que ela contemple práticas que desestimulem o exercício desses direitos.
Essa preocupação assume acentuado relevo no trato dos processos criminais onde se apuram delitos praticados contra mulheres, normalmente na clandestinidade, ou seja, à míngua de testemunhas ou outros meios de prova.
Nesses casos, o silêncio da mulher, invariavelmente, impede a elucidação do delito e sua eventual responsabilização, e acentua a sensação de impunidade, acarretando, ainda, na própria vítima um descrédito sobre o sistema judicial.
Considerando que a(o) magistrada(o) é a autoridade proeminente na condução da audiência, qualquer recomendação sua para os atores processuais pode ser determinante para a sorte do litígio (argumento de autoridade). Assim, não atende aos comandos do sistema de proteção à mulher em situação de violência a conduta da(o) magistrada(o) de tomar a iniciativa de previamente adverti-la sobre a possibilidade de ficar em silêncio, sob pena de acentuar-lhe eventual ânimo de constrangimento, insegurança, medo ou até de indiferença processual. A única interpretação possível do Enunciado 50 do FONAVID é de que a intervenção judicial seja feita somente quando a vítima por, sponte propria, demonstre que não deseja se manifestar em depoimento. Nessa hipótese, deve a(o) magistrada(o) esclarecê-la, com profundidade, sobre o alcance processual do seu silêncio, sem prejuízo da tentativa de demovê-la da posição de inércia em prol de um protagonismo processual, atentando-se ainda para adoção de cautelas que visem afastar qualquer tentativa de infantilização da sua capacidade narrativa ou de sua infeliz comparação com pessoas em desenvolvimento (criança e adolescente).
Ainda sobre a revitimização, há de ser compreendido que o processo de cura também pode ser atravessado pela fala, de sorte que trazer para a audiência a narrativa sobre a violência experimentada não é necessariamente um sofrimento adicional para a vítima, senão instrumento emancipatório na defesa de seus interesses. Se pretende superar o ciclo de violência e buscar a responsabilização criminal de seu agressor, cumpre aos protagonistas do sistema judicial esclarecer à mulher que o “denuncie” deve ser estendido ao ambiente de contraditório judicial. Não adianta o desabafo entre amigas, parentes e vizinhos, muito menos depoimentos em redes sociais. Somente tem serventia processual a sua participação na audiência perante a(o) magistrada (o).
Aliás, o protagonismo processual da vítima vem sendo largamente consagrado pela jurisprudência, ao consolidar o entendimento de que “em crimes cometidos em cenário de violência doméstica, a palavra [não o silêncio] da vítima assume especial relevância”. A propósito, em ano de Eleições Gerais, vale destacar que recentes alterações no sistema eleitoral prestigiaram essa tendência e trouxeram expressamente em texto de lei semelhante orientação, ao introduzir o tema da violência política contra a mulher (Lei 14.192/2021, reproduzida, no ponto, no art. 93-C, § 3º, Resolução TSE nº 23.671/2021).
Por outro lado, reconhecendo a possibilidade de excessos, novas leis foram editadas para impedir seja a vítima, inclusive a mulher, submetida a constrangimento durante seu depoimento em procedimentos investigativos. No entanto, nem a Lei 14.245/2021(Lei Mariana Ferrer), que coíbe práticas de atos atentatórios à dignidade da vítima e das testemunhas, nem a Lei 14.321/2022, que tipifica o crime de violência institucional, podem ser desvirtuadas, a ponto de serem invocadas para justificar eventual tendência processual de silenciamento da mulher em situação de violência.
Por derradeiro, vale registrar que a história tem comprovado que o silêncio nunca foi, nem nunca será um aliado na defesa de interesses de grupos minoritários, especialmente das mulheres iii, senão instrumento conveniente à manutenção do “status quo”. Resta, portanto, a expectativa de que magistradas e magistrados empenhem-se na construção de um novo paradigma processual, sem prejuízo do dever de imparcialidade.
I Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher.
ii Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – CEDAW da Organização das Nações Unidas - ONU
iii vide KILOMBA, Grada: Memórias da Plantação
*Ana Luiza Morato é juíza de Direito titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Paranoá - TJDFT