Quem deve, não teme! A conciliação como ferramenta para vencer o superendividamento

por Juiz Gabriel Moreira Carvalho Coura — publicado 2023-10-24T08:16:30-03:00

Se prestarmos bem atenção, notaremos que o crédito está por todo lugar: financiamos o imóvel que nos serve de moradia, o carro que nos serve de transporte e, até mesmo, algumas despesas básicas, quando utilizamos cartão de crédito para pagar o supermercado ou uma peça de roupa.

Portanto, endividamento é uma consequência natural de uma sociedade baseada no consumo, que tem o crédito como sua principal ferramenta. Tanto é assim que, segundo dados da Fecomercio/SP, em setembro de 2023, 68,7% das famílias brasileiras estavam endividadas.

A dívida, em si, não é algo negativo. Na maioria dos casos, ela pode servir de ferramenta para a concretização de importantes planos familiares ou, até mesmo, como fonte de recursos extras para superar momentos de crise. O problema ocorre quando o endividamento se torna insustentável, provocando desequilíbrios no orçamento familiar.

Para ilustrar a situação, ainda segundo a Fecomercio/SP, 10,9% das famílias brasileiras afirmam não ter condições de pagarem suas dívidas, ou seja, seriam potenciais superendividadas.

Segundo o Código de Defesa do Consumidor, considera-se superendividado o consumidor de boa-fé manifestamente incapaz de pagar suas dívidas de consumo sem prejuízo do mínimo existencial, entendido como os recursos necessários para a manutenção de um padrão de vida digna.

O superendividamento é um fenômeno que impacta profundamente na autoestima do devedor. É muito comum o sentimento de vergonha e as tentativas de esconder a real situação financeira de familiares e amigos, o que apenas contribui para o agravamento do quadro. Há registros de que o superendividamento reduz a produtividade da pessoa, que se sente incapaz e até desestimulada de superar a situação pelos meios próprios.

É preciso superar os sentimentos de vergonha e culpa que pesam sobre o devedor! Aquele que se endivida de boa-fé não pode ser considerado culpado pelo seu superendividamento, pois ele agiu exatamente conforme a lei e o mercado lhe permitiam e, em certa medida, até lhe estimulavam a agir.

A ideia de um consumidor racional, capaz de fazer escolhas completamente planejadas e pensadas, há muito, foi superada. Existem sólidos estudos apontando que o raciocínio humano é fortemente afetado por ilusões cognitivas (vieses) e atalhos de pensamento (heurísticas) que, muitas vezes, conduzem à tomada de decisões contrárias aos interesses da pessoa. Em termos mais simples, nem mesmo pessoas com elevado grau de instrução ou bom nível de experiência estão isentas de tomar decisões que conduzem ao superendividamento.

Não se pode ignorar que fatos imprevistos podem impactar muito negativamente no equilíbrio do orçamento doméstico. Desemprego, doença, divórcio e outros tantos acontecimentos podem reduzir a renda ou aumentar a despesa familiar, o que pode transformar um endividamento saudável em descontrole.

O Código de Defesa do Consumidor reconhece que o superendividamento é um fenômeno de interesse coletivo, cujo tratamento é responsabilidade de toda a sociedade. Partindo do princípio de que todos agiram de boa-fé, tanto devedores quanto credores, a lei adotou a conciliação como ferramenta principal para superação desse cenário.

A conciliação é um convite para que credores e devedores atuem de forma cooperativa na solução do superendividamento, construindo conjuntamente um plano de pagamento adequado ao caso.

Dos devedores, esperam-se medidas no intuito de promover a organização de suas finanças pessoais, a fim de viabilizar a construção de um plano de pagamento que permita a quitação dos seus débitos e preserve seu mínimo existencial. Nesse ponto, o Poder Judiciário do Distrito Federal conta com oficinas de educação financeira que buscam capacitar os usuários e as usuárias a realizarem uma avaliação profunda de suas escolhas e despesas pessoais e, com isso, dar o primeiro passo no seu processo de recuperação financeira.

Dos credores, espera-se a compreensão de que o superendividamento não tem solução nas condições regulares do mercado e que seu tratamento depende de regras de negócio específicas para atender tal público. A simples repactuação não é suficiente para uma solução definitiva do problema, especialmente nos casos em que o nível de endividamento alcança proporções incompatíveis com a realidade de renda do consumidor. Afinal, a maior parte dos processos de superendividamento passa por renegociações sucessivas que, no final, em nada contribuem para ultrapassar as dificuldades.

As diversas experiências realizadas pelo Poder Judiciário apontam que a conciliação realizada na presença de todos os credores é capaz de construir soluções mais bem ajustadas a cada caso. Durante os 6 anos de execução Programa de Prevenção e Tratamento dos Consumidores Superendividados pelo TJDFT, foram negociados mais de 35 milhões de reais em dívidas, demonstrando que a conciliação é capaz de promover uma recuperação responsável do crédito, atendendo os interesses dos envolvidos.

Com a publicação da Lei n. 14.181/21, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios inicia uma nova fase do programa, adaptada aos desafios de um mundo cada vez mais virtual, mas preservando o modelo de atendimento com foco na pessoa. Acima de tudo, mantém-se a firme crença no diálogo e na cooperação como ferramentas ideais para a solução eficiente dos conflitos.

Gabriel Moreira Carvalho Coura  é Juiz de Direito Substituto do TJDFT, coordenador do 4º núcleo virtual de mediação e conciliação.