"A multiparentalidade traz todas as implicações inerentes à filiação, com deveres e direitos recíprocos"

Juíza do TJDFT Silvana Chaves e socióloga Letícia Sant'Anna
por ACS — publicado 2019-08-17T21:15:00-03:00

Silvana da Silva Chaves e Letícia Sant’Anna.jpgA configuração das famílias mudou ao longo do tempo e o direito vem buscando reconhecer e amparar juridicamente essas mudanças. Antigamente o vínculo parental admitido era apenas o biológico. A sociedade se modificou e o vínculo socioafetivo também foi reconhecido como forma de parentesco civil. Hoje esses dois modelos convivem pacificamente em diversas famílias e passou a haver uma demanda para que o Estado reconheça tais situações. Em decisão recente, o STF entendeu que não há hierarquia entre a paternidade/maternidade socioafetiva e a biológica, abrindo espaço para a multiparentalidade. É esse o tema que a juíza de Direito Silvana da Silva Chaves, titular da 6a. Vara de Família de Brasília, e a técnico judiciário do TJDFT e socióloga Letícia Sant’Anna irão abordar nesta entrevista.

 

O que é multiparentalidade?

A multiparentalidade ou pluriparentalidade é o termo utilizado para o reconhecimento jurídico da coexistência de mais de um vínculo materno ou paterno em relação ao mesmo indivíduo. Ou seja, o reconhecimento estatal de que uma pessoa possui “dois pais” ou “duas mães”, permitindo que essa situação seja formalizada perante o registro civil, fazendo constar em seus documentos essa dupla filiação, materna ou paterna. Esse reconhecimento jurídico, por sua vez, traz todas as implicações inerentes à filiação, com deveres e direitos recíprocos, sem qualquer hierarquia entre os pais ou mães. 

Como essa questão foi inserida no texto jurídico?

Inicialmente a multiparentalidade foi recepcionada pelo direito para o reconhecimento da filiação por casais homossexuais que tiveram filhos biológicos ou adotivos, uma vez que, antes deste instituto [multiparentalidade], constava no registro das crianças apenas um pai ou uma mãe, com a consequente exclusão do outro genitor. Em um casal homossexual masculino, por exemplo, não faria sentido permitir que somente um deles figurasse nos registros civis do filho como figura paterna. Era preciso incluir os dois para fazer jus à situação por eles vivenciada. Assim, a multiparentalidade passou a reconhecer o vínculo afetivo de dois pais ou mães, sem a necessidade de que um deles tenha ascendência biológica. Posteriormente, a multiparentalidade veio abarcar também situações de filiação afetiva e biológica, tornando possível a uma pessoa fazer constar em seus registros a dupla paternidade ou maternidade, adicionando o genitor afetivo àqueles já constantes em seus documentos. 

Quais são os critérios para este tipo de registro?

A multiparentalidade gera direitos e obrigações filiais recíprocos. Antigamente, seu reconhecimento somente podia ser realizado diretamente nos cartórios civis nos casos de inseminação artificial realizada por casais homoafetivos, bastando a apresentação do laudo médico que comprovasse o procedimento. Nos demais casos, o reconhecimento da multiparentalidade exigia o reconhecimento judicial da situação. 

Em 14/11/2017, o Provimento 63 do CNJ fixou as regras para o reconhecimento da filiação socioafetiva nos cartórios civis, sem a necessidade de ações judiciais, estabelecendo que: o reconhecimento deve ser voluntário, se o filho for maior de 12 anos, ele deverá consentir com o reconhecimento e o pai e a mãe registrais deverão manifestar concordância.

Essa situação pode ser revertida?

Não. Esse reconhecimento é irretratável, salvo se for comprovado judicialmente vício de vontade, fraude ou simulação, hábeis à anulação do ato jurídico. Também é importante registrar que o reconhecimento de filiação socioafetiva não permite acrescer mais de dois genitores no campo referente à filiação constante no assento de nascimento. Na propositura da ação judicial as partes são advertidas de que a dupla maternidade ou paternidade gera direitos sucessórios, obrigações alimentares, de guarda, previdenciários, entre outros.  Assim, considerando todas as implicações inerentes ao instituto da multiparentalidade, esse reconhecimento da dupla paternidade ou maternidade deve ser realizado com responsabilidade. 

Qual a diferença registral nos casos de multiparentalidade e adoção?

Na adoção a filiação anterior é apagada dos registros civis do adotado. O indivíduo (geralmente criança ou adolescente, apesar de também ser possível a adoção de adultos) passa a ter em seus assentos registrais somente os dados do(s) adotante(s) como seus ascendentes. Na adoção a intenção é a de constituição de novos vínculos familiares, uma vez que os vínculos anteriores foram rompidos pelos mais diversos motivos (abandono, etc). 

Na multiparentalidade, o que ocorre é a coexistência concomitante dos vínculos paternos/maternos, exercidos por mais de uma pessoa. Em tais casos é possível constatar o real exercício das funções inerentes à paternidade ou maternidade, com toda sua extensão em direitos e obrigações.

Em resumo, quais os institutos que temos hoje no Brasil quanto à situação registral, nos casos de reconhecimento de paternidade?

Em termos didáticos, podemos dizer que atualmente temo

a) a paternidade biológica e registral típica;

b) a adoção, que culmina na exclusão dos registros anteriores e na confecção de novas certidões fazendo constar apenas os nomes dos adotantes e adotados;

c) a multiparentalidade, na qual é possível a coexistência do duplo vínculo materno e/ou paterno nos registros civis do indivíduo; e

d) a paternidade/maternidade socioafetiva que pode ser realizada diretamente nos cartórios civis, com o reconhecimento da situação fática de diversas famílias brasileiras que passaram por processos de agregarem novos membros, como os padrastos e madrastas, e não implicando no registro de mais de dois pais ou duas mães nos assentos civis, como na multiparentalidade. 

Juridicamente há dificuldades em resolver a guarda de filhos nos casos em que é reconhecida a multiparentalidade?

Entendemos que não há essa dificuldade específica. O processo de definição de guarda é sempre complexo e pressupõe a análise do caso concreto. Contudo, considerando que no instituto da multiparentalidade não há hierarquia entre os pais ou mães, a situação deve ser analisada tendo em conta o melhor interesse da criança ou do adolescente envolvido. A diferença é que, nesses casos, pode haver mais do que duas pessoas que disputam essa guarda, como no modelo tradicional familiar. Contudo, mesmo nas famílias em que não há a multiparentalidade esse conflito estendido é possível, como quando os avós passam a disputar a guarda da criança. Então, o fato de tratar-se ou não de famílias multiparentais não traz maiores dificuldades na definição da guarda. O nível de conflito entre eles é o que agrega os fatores dificultadores, o que também pode ocorrer em casos de famílias tradicionais. 

Nos conflitos decorrentes da guarda de filho, os interesses dos pais biológicos se sobrepõem aos da família socioafetiva?

Há muitos anos que isso não ocorre. Desde o advento da Constituição de 88, não há hierarquia entre os pais biológicos ou socioafetivos e nem entre os filhos havidos dentro ou fora do casamento. O que é fundamental nessa análise é a sobreposição dos interesses do menor tutelado, que deve ser atendido da melhor maneira possível. Sem também ser alijado da convivência com todos os seus familiares, salvo se algum deles lhe oferecer riscos. 

Muitas vezes a multiparentalidade pode ser usada para sanar questões financeiras. Como isso é encarado na Justiça?

São casos esporádicos. Mas eles podem ocorrer sim. Por isso a necessidade de um olhar mais atento pelo Poder Judiciário quanto a situações fáticas revestidas de questões de multiparentalidade, na tentativa de burlar o sistema previdenciário. Uma pessoa de determinada idade, por exemplo, pode vir a requerer o reconhecimento da paternidade/maternidade de um menor com o intuito de deixar-lhe em situação financeira confortável no caso de falecimento, com o recebimento de pensões ou seguros de vida. Entendemos que esses são casos isolados. Mas daí a necessidade de pronunciamento judicial a respeito,  após análise minuciosa da real situação vivenciada pelos envolvidos,  verificada por meio de provas testemunhais e documentais. 

Vocês acreditam que a multiparentalidade pode, de alguma forma, ser prejudicial para o desenvolvimento psicológico da criança?

Entendemos que não, mas tudo vai depender da forma como a parentalidade é exercida no núcleo familiar. A princípio, tanto a filiação tradicional quando a multiparentalidade tem o objeto de agregar mais amor, carinho e cuidado com os filhos. O desenvolvimento psicológico da criança somente vai ser afetado se essa família passar por algum episódio disfuncional, que pode ocorrer tanto em famílias multiparentais quanto em famílias com o tradicional vínculo biológico único.

Uma vez reconhecida a multiparentalidade, a Justiça exige algum tipo de acompanhamento psicossocial?

A necessidade de acompanhamento psicossocial é analisada conforme o caso concreto. Geralmente só é necessário nos casos de conflito envolvendo filhos menores de idade. Em casos de filhos maiores, a situação costuma ser exposta à justiça em forma de comum acordo entre os pais e filhos, como fruto de uma situação já naturalmente vivida e consolidada na prática, durante anos, e carecedora apenas do reconhecimento estatal.